Decisões - mula: para (re)compreender a ‘era dos precedentes’ tupiniquim

10/07/2017

Por Guilherme Alcântara – 10/07/2017

Defender a existência de respostas corretas ou constitucionalmente adequadas na hermenêutica constitucional sem apelar à fé no método – atitude positivista – e conservar a posição de que (na esteira de um Nietzsche) tudo é interpretação não é uma contradição em termos. Pelo contrário, trata-se nada menos que tomar uma atitude de ruptura ao teto hermenêutico imposto pelo senso comum teórico dos juristas nacionais, arraigados numa cultura manualesca, simplificadora, e liberal-individualista (cujos traços autoritários só o Brasil soube produzir). É tirar a teoria da decisão judicial do esquema sujeito-objeto.

Como afirma Umberto Eco em Interpretação e Superinterpretação, embora efetivamente toda descrição do mundo – as que assumem seu caráter interpretativo, como os romances; e as que não assumem, como as leis científicas – seja interpretação, aberta a outras interpretações, “certas interpretações podem ser reconhecidas malsucedidas porque são como uma mula, isto é, incapazes de produzir novas interpretações ou por não poderem ser confrontadas com a tradição de interpretações [ou mulas] anteriores[1].

Más interpretações e mulas – o híbrido fruto do cruzamento entre jumento e égua - são inférteis, e geneticamente distintas de seus genitores. Aí uma feliz ilustração do estado de baixa constitucionalidade do Direito brasileiro, mormente com o advento de um suposto ‘sistema de precedentes’, a partir do novo CPC. Com efeito, dos tribunais pátrios “chovem” decisões-mula, isto é, decisões (interpretações/aplicações do Direito) que não portam DNA constitucional e, portanto, são ilegítimas e incapazes de ‘dar à luz’ a um precedente. E o Supremo Tribunal Federal, que deveria dar o exemplo, não colabora.

No fim de 2016, o professor Lenio Streck apresentou uma amostragem de decisões ativistas-behavioristas de 2016 que se enquadram no conceito de decisão-mula: a) as decisões judiciais que determinaram o bloqueio do WhatsApp; b) decisão do juiz Sergio Moro, em 16 de março, de divulgar interceptação telefônica de conversa entre a então presidente da República e um ex-presidente; c) o STF fragiliza a presunção da inocência contra expresso texto de lei e da Constituição; d) "medida excepcional" da Justiça autoriza a polícia a fazer buscas e apreensões coletivas em favela no Rio de Janeiro contra expresso texto legal e constitucional; e) mesmo após a vigência do novo CPC, o STJ — guardião da legalidade — continua entendendo que nada mudou acerca do dever de fundamentação, como se o artigo 489, parágrafo 1º, com todos seus incisos, fosse “letra morta”; f) a decisão do STF na ADPF 347, assumindo a tese do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), que não serviu para nada; passado mais de ano, não colocaram um tijolo no sistema (essa decisão é de 2015, mas é como se fosse de 2016); g) Tribunal de Justiça de São Paulo anulou o julgamento dos 73 policiais condenados pelo massacre do Carandiru. O voto do relator, desembargador Ivo Sartori, foi baseado exclusivamente na sua consciência; h) a decisão do juiz Sergio Moro que autorizou a condução coercitiva do ex-presidente Lula. Com base nesse caso, a condução coercitiva tem sido autorizada de forma irregular pelo Judiciário; i) decisão do ministro Barroso em HC que afirmou — com base na ponderação alexiana — não ser crime a interrupção da gestação até o terceiro mês; j) decisão do TRF-4 que afirmou que a operação "lava jato" não precisaria respeitar as regras de casos comuns por ser uma situação excepcional; l) decisão liminar do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança 34.530, determinando "o retorno do Projeto de Lei da Câmara n. 80/2016, em tramitação no Senado Federal, à Casa de Origem", sob fundamentos que intervém perigosamente no processo legislativo; m) decisão liminar do ministro Marco Aurélio que determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da Presidência do Senado, descumprida pelo Senado até decisão do Plenário do STF, que voltou atrás para manter Renan na Presidência[2].

Pois bem, nenhuma destas decisões respeitou o princípio dworkiniano do law as integrity, tampouco o texto constitucional, ambos balizas da hermenêutica constitucional. Um dos exemplos mais marcantes é a interpretação dada ao Art. 5º, inciso LVII, da Constituição – da presunção de inocência – no julgamento do habeas corpus nº 126.929. Tanto a Corte Constitucional regrediu para um posicionamento já superado em 2009, quanto nada menos que rasgou a expressão trânsito em julgado – que no seu maior rigor técnico significa o ato que marca o esgotamento de recursos em face de uma decisão – expressamente disposta no texto constitucional como condição sine qua non da execução da pena privativa de liberdade. E os motivos – do tipo: ‘O Brasil prende pouco’ (será mesmo?) – foram todos políticos, não principiológicos.

No mesmo sentido, a decisão do massacre do Carandiru. Basta correr os olhos por outras decisões do desembargador Ivan Sartori, ou da 4ª Câmara de Direito Criminal (ou, infelizmente, de quase todas as Câmaras de Direito Criminais paulistas), para perceber que a decisão do caso Carandiru foi um caso a parte: em 99% dos casos, o réu é preso e condenado com base em artíficios retóricos abstratos e alheios ao caso concreto, totalmente prejudicado pelos (pré)conceitos do julgador.

O que dizer, então, do “precedente” aberto pelo juiz Sérgio Moro de vazar o conteúdo de interceptações telefônicas e depois pedir desculpas? Ou da evidente desobediência do senador Renan em abandonar seu posto, seguida do “arrego” do STF? É possível que tais decisões sejam repetidas e universalizadas? E mais: que tipo de história institucional estamos resgatando, a anterior ao ano de 1988, de matiz autoritárias e patriarcal, ou a pós-88, responsável pela consolidação de um Estado Democrático de Direito? Tudo indica que a primeira opção...

Estas singelas amostras de decisões-mula apenas atestam o gradativo caminhar do Brasil em direção a uma Juristocracia, como diz Ran Hirschl[3]. Mas de mulas e burros, estéreis quando a tarefa é construir algo que não seja “essa velha opinião formada sobre tudo” que assola o senso comum teórico dos juristas.


Notas e Referências:

[1] ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação, p. 177, grifo meu.

[2] Disponível em: www.conjur.com.br/2016-dez-29/senso-incomum-breve-ranking-decisoes-fragilizaram-direito-2016.

[3] Ran Hirschl, Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004).


Guilherme Alcântara. . Guilherme Alcântara é advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Toledo Prudente Centro Universitário. Estagiário docente na mesma instituição. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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