Decisões difíceis a partir de “A Balada de Adam Henry” - Por Paulo Silas Taporosky Filho

03/12/2017

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Todo ato de julgar enseja numa responsabilidade política do julgador. E por “responsabilidade política” aqui dita, leia-se aquela “responsabilidade política dos juízes” mencionada por Dworkin, na qual o julgador deve amparar e embasar suas decisões em princípios. Aqui no Brasil, Lenio Streck é uma das maiores vozes que entoam a necessidade de os magistrados se atentarem para essa responsabilidade. A questão toda é complexa e profunda, exigindo muito estudo e reflexão tanto por parte do julgador, quanto por aqueles que se debruçam no estudo da temática. 

De que modo decidem os juízes? Como devem (ou deveriam) julgar aqueles responsáveis pelas decisões judicias? Há diferença na forma de julgar aqueles casos mais comuns daquelas situações que se aparentam como mais complicadas? 

Como mencionado, o tema é de grande relevo e gera debates, não sendo possível abordar, mesmo que resumidamente, toda a densidade presente na discussão acerca da temática. Entretanto, considerando o próprio intento da presente coluna, apresenta-se um exemplo da literatura, bastante concreto no mundo não-literário, a fim de se visualizar que em determinados casos a decisão acaba recebendo ares de maior complexidade – para além da usual que se encontra implícita no próprio ato de julgar. 

Um divórcio consensual, sem partilha e filhos menores, é julgado (considerando o grau de dificuldade) da mesma forma que um divórcio litigioso onde discute-se divisão de bens e pensão de filhos menores? No âmbito penal, a liberdade é algo que está sempre em jogo, seja qual for a pena prevista para a infração penal imputada contra o acusado. Assim se considerando, existem graus diversos de dificuldades nas decisões criminais? Casos mais “simples” e casos mais difíceis? Mais uma vez Dworkin é lembrando como um autor que constrói uma teoria para explanar aquilo que se conhece por hard cases. Entretanto, reitera-se que não é a pretensão aqui a de adentrar em qualquer teoria de decisão judicial. Busquemos então na literatura algo que ilustre uma possível diferenciação que pode acabar sendo feita na análise de casos que diferem em suas situações. 

Em “A Balada de Adam Henry”, de Ian McEwan, aborda-se a forma com a qual uma juíza lida com um caso extremamente delicado. O livro proporciona ao leitor uma intrigante história que evidencia o conflito interno com o qual a magistrada convive enquanto busca prosseguir com o seu cotidiano de cabeça erguida. Estando por completar os seus sessenta anos, Fiona logrou êxito em conquistar tudo aquilo que almejou em sua carreira profissional. É uma eficiente e notável juíza da vara de família acostumada a julgar tanto casos corriqueiros, quanto situações mais complexas e polêmicas. Seu perfil racional e sua inteligência na conduta enquanto magistrada se destacam, contribuindo assim para o reconhecimento que lhe é conferido. 

No entanto, um percalço surge em sua vida no âmbito particular, o que faz com que Fiona passe a viver com o receio de tropeços em sua conduta profissional. Seu casamento, há algum tempo em crise, entra em colapso, decorrendo daí o tormento pessoal com o qual a protagonista passa a conviver. 

Uma análise jurídica que poderia ser feita nesse ponto da obra seria sobre as possíveis interferências que esse episódio da vida particular de Fiona ensejariam em seu mister profissional. Uma leitura a partir daquilo que apresenta Alexandre Morais da Rosa em seu “Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos”, ou ainda Paulo Ferrareze Filho no seu “A Sogra como Fonte do Direito: o inconsciente dos julgadores no direito”, seria possível, a fim de se buscar compreender como e de que modo essas influências podem surgir e se apresentar quando da decisão judicial. É uma proposta que possui um viés próprio, um chão específico, uma roupagem particular, a qual contribui para com o debate sobre a temática. 

Fiona, contudo, busca se manter firme com afinco. Mesmo considerando as dificuldades íntimas com a qual passa a viver, evita que seus problemas interfiram em seu trabalho. Isso pelo menos até quando no âmbito de sua carreira Fiona se depara com um caso que a titubeia. 

Adam Henry, um rapaz de dezessete anos, encontra-se internado no hospital e necessita de uma transfusão de sangue para que possa sobreviver. Porém, por ser testemunha de Jeová, recusa a transfusão, contando com o apoio em tal sentido de sua família e membros da religião. Considerando a situação peculiar, o hospital recorre ao Judiciário buscando uma autorização para a realização do procedimento necessário. É esse o emblemático caso que cai nas mãos de Fiona para julgar. 

De que forma deveria Fiona decidir no processo? Seria possível ou até mesmo necessário determinar que o hospital realizasse a transfusão de sangue no paciente, mesmo com a negativa deste? É possível à juíza evitar que seus problemas particulares interfiram na condução de sua atividade jurídica? 

O romance de Ian McEwan vai além dessa problemática exposta. Sua abordagem literária se insere também em outras questões, trabalhando particularidades em demais personagens com o fito de estabelecer outras reflexões e questionamentos para o leitor. Mas o ponto que aqui é trazido à reflexão é justamente o caso emblemático da transfusão - que também é o principal da obra. 

A partir de “A Balada de Adam Henry”, é possível observar de que forma se dá a condução de um magistrado na tomada de decisão de um caso difícil. Não que o modo de agir de Fiona deva ser um exemplo-base a ser seguido no meio jurídico, mas se menciona a situação por vivenciada pela personagem como um possível exemplo de como a questão é procedida. Fiona possui suas dúvidas, claro, pois se trata de um caso difícil. De um lado, o hospital – preocupado com a vida e o bem-estar do paciente, de outro, o rapaz – que possui capacidade de discernimento e entende o que significa a sua decisão. A morte de Adam Henry é certa no caso de não ser realizado o procedimento médico. Mas a não morte, para Adam, significa a sua morte num outro nível. Fiona chega a realizar uma visita ao paciente no hospital, a fim de verificar in loco se há uma compreensão exata dos resultados trágicos que surgirão contra Adam no caso de insistência na recusa do tratamento. A juíza possibilita todas as partes a produzirem provas e apresentarem seus argumentos. Direito de petição, contraditório e ampla defesa são assegurados a todos os envolvidos no litígio judicial. Mesmo presentes todos os requisitos devidamente cumpridos no procedimento judicial, conseguirá a juíza julgar de acordo com a responsabilidade política que o caso (e o cargo) exige, ou acabará se deixando levar (mesmo sem que assim saiba) pelo seus problemas e opiniões pessoais, refletindo da forma que seja na decisão do caso? 

Eis um exemplo que pode ser observado e estudado na literatura, possibilitando ao pesquisador analisar se há, quando há e de que modo há interferências da vida pessoal do julgador refletidas na decisão de um caso, seja ou não complexo ou difícil. “A Balada de Adam Henry” permite uma série de reflexões nesse sentido. Fica o convite para a leitura da obra. 

 

[1] Texto originalmente escrito para o portal “Sala de Aula Criminal” – Publicado em 25/07/2017 em: http://www.salacriminal.com/home/decisoes-dificeis-a-partir-de-a-balada-de-adam-henry

 

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