Decisão e ativismo judicial: a da vontade de poder ao poder obediencial – Por Rosivaldo Toscano Jr.

21/09/2016

Hoje damos início a uma série muito importante para compreendermos o papel que o Judiciário vem exercendo na vida social, onde reside a legitimidade de suas decisões e quais os seus limites. Enfim, qual a relação que deve(ria) se estabelecer entre o juiz e a normatividade. Decisão como ato de vontade? Mas que vontade seria essa?

Para tanto, começamos trazendo à baila as reflexões de Enrique Dussel.[1] À época da invasão militar que o senso comum chama de “descobrimento das Américas”, como a Europa há séculos vivia em lutas internas, cruzadas e guerras contra povos estrangeiros, adquiriu know-how bélico. Nas Américas, os invasores europeus se depararam com povos belicamente inferiores.[2] E assim, aqui foi possível, através do maior genocídio da história humana, exercer o domínio militar, primeiro, e depois o político, o econômico, o cultural e o religioso, tanto sobre os povos conquistados que aqui já viviam quanto sobre os que foram trazidos como escravos da África negra.

Com o passar do tempo, impondo-se e explorando as terras e os povos recém-conquistados, a Europa começou a ocupar a posição de “senhor”, sobrepujou a Ásia e assumiu a centralidade mundial. Esse contexto – de não haver nenhum senhor sobre o ego eurocêntrico – edificou uma concepção de poder exclusivamente como dominação.[3] Em face da inexistência de outro poder que lhe faça frente, o ego dominante passou a ser a definição do que se pode fazer ao se deter o poder.

Formou-se uma relação assimétrica com o mundo colonial: uma relação de domínio pelas metrópoles. A dominação do sujeito poderoso ante ao impotente era interpretada como a definição mesma de poder político, como algo natural (ideologia legitimante).[4] As raízes da (de)formação social da América Latina – de altos níveis de desigualdade e de marcada diferenciação étnico-econômica –, advêm dessa nossa formação colonial. Dela, também, nosso déficit democrático – constatado pelos tantos e periódicos episódios de estado exceção, resultados de golpes brutos ou suaves, como o recentemente ecoado por aqui, ainda que urdido de uma pretensa normalidade artificialmente construída e vendida, adubada por um utilitarismo que tem questões classistas como pano de fundo e que é capitaneada pelos meios de comunicação corporativa e massiva.

Dussel busca, então, um fundamento positivo último que permita descrever a relação vontade-poder em um sentido forte, com pretensão de verdade e legitimidade, de onde se permita criticar as descrições reducionistas de dito poder.[5] E propõe uma reflexão ontológica – que se preocupa com os fundamentos ou com aquilo que sustenta o ser. A pergunta ontológica é: qual o fundamento de tudo o que chamamos Político?

Ele faz uma distinção entre potentia – o ser oculto, o poder da própria comunidade – e potestas (o fenômeno, o poder delegado por representação, exercido por ações políticas através das instituições).

potentia (o poder originário, não dividido, indeterminado, referência última na construção de todas as categorias) da comunidade política (origem e lugar em que a potestas é gerada) é como o “ser”, o fundamento da política (do político, do campo político como político). Tudo que se chama “político” terá que se fundar, em última instância, nessa potentia.

Dito em poucas palavras, a potentia é o poder da própria comunidade política; é (para) a pluralidade de todas as vontades por meio da mediação que reconheça o direito do outro, do distante do poder (que no exercício da vontade de poder é o oprimido) ser igual. Um poder que vem das bases, é positivo, da vida que quer viver e ter os meios de sobreviver. O poder político como potentia não é dominação ou opressão. É afirmação da comunidade.[6]

Por outro lado, o poder visto como mera dominação autoritária é um reducionismo. Para Dussel, há muitas falácias reducionistas atreladas ao político – pois se fixam em um aspecto importante, mas insuficiente. a) a política só como ação estratégica; b) a política só como teleologia instrumental meio-fim (um formalismo sem conteúdo); c) a política só como competição amigo-inimigo (Carl Schimitt); d) a política como hegemonia; e) a política só como consenso discursivo (Habermas); f) a política só como o espaço de negociação de acordos para resolução de conflitos; g) a política como superestrutura do econômico; h) a política como completamente independente do campo econômico; i) a política como a referência exclusiva ao Estado (como “tomada do poder”) ou como a luta pela dissolução do Estado; j) a política só como a afirmação ou como a absoluta negação de princípios normativos.[7]

Como explicado acima, o poder político é clivado por uma diferença ontológica entre a potentia[8] (o poder político existente difuso na comunidade política – fonte de todo poder estatal que é o povo) e a potestas (o mero exercício delegado do poder político institucionalizado). A potestas se cliva, novamente, no exercício obediencial[9] do poder delegado, exercício realizado pelas ações e no cumprimento das funções das instituições políticas que respondem às exigências da comunidade política, do povo.

O poder obediencial é institucionalizado. E ele se desnatura quando há o exercício do poder que se afirma a si mesmo sem referência à potentia. A auto-referência, como última instância da potestas, é o exercício fetichizado ou corrompido do poder político. Quando o ator político, que exerce o poder institucionalizado, afirma-se como a sede da autoridade ou como última instância do exercício do poder, é dizer, quando se desliza do exercício obedencial à autoafirmação do poder desde si, origina-se ontologicamente a fetichização, a corrupção e a desnaturação do poder em dominação, despotismo, tirania.

A autonomização ou oposição da potestas (a aparência fenomênica) à potentia (seu fundamento ontológico) é a dissolução da política como tal.[10] Essa desnaturação ocorre nas posturas realistas-autoritárias do Judiciário que julga de maneira apartada da normatividade. Há que se reconhecer que o poder potestas do Judiciário de julgar, de decidir, não começa e termina em si. Não é auto-referenciado. Só quando visto na perspectiva do poder potentia é que ele se legitima. E a Constituição é quem faz o elo entre ambos. Não é por menos que nossa Carta de 1988 assim inicia: “Art. 1º […] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Infelizmente, dada a nossa formação cultural, o manejo do poder e da coisa pública como própria termina sendo prática comum – até naturalizada.[11] Quando a potestas se fetichiza, isto é, se distancia da potentiaque a legitima e fundamenta, perde força, a ponto de, em havendo o desconhecimento da potentia, virar exercício despótico, mera vontade de poder.[12]

A Vontade como Fundamento da Potentia e da Potestas – a Vontade de Poder

Segundo Dussel, antes de vontade de poder (como dominação – e que reproduz morte) há a vontade de fazer as mediações necessárias a se ouvir o outro, em se tratando do juiz, em se ouvir o poder enquanto potentia, enquanto povo. Mas não se trata, aqui, do povo como maiorias eventuais ou como opinião pública (ou publicada, como criticaremos no momento devido).

O reconhecimento institucionalizado da potentia reside na Constituição, pois é ela quem expressamente determina, dentro de uma comunidade política, a obediência ao poder potentia – razão de todo o agir estatal. E essa legitimação, a quem Dussel dá o nome de “vontade de viver”, se opõe à vontade de poder que gera morte e opressão. A vontade de viver não é voluntas que se atribui ao agente político delegado, mas à comunidade política e é fundamentalmente anterior a qualquer vontade de poder de um ator político (potestas), pois foi ela quem o legitimou enquanto autoridade.[13] Essa comunidade (potentia) é a verdadeira referência da vontade de viver. O agente político que atual legitimamente manda obedecendo essa vontade, e não o inverso.

O juiz é agente político. É membro de um poder delegado pelo poder potentia. Mas ele manda obedecendo também. A decisão judicial constitucionalmente balizada não é ato de vontade do juiz porque ele não tem esse poder de fazer valer sua vontade pessoal. Parafraseando John Donne, o julgador não é uma ilha em si mesmo. Não fica a critério dele dizer o que quer sobre o que é direito, mas sim, fazê-lo dentro de sua esfera de atribuição de poder potestas, que se resume ao campo normativo.

Dentro do campo normativo, a interpretação precisa ser autêntica, isto é, não pode contornar ou subtrair do seu mundo a Constituição. Ela é o metatexto, pois está sempre presente e de modo a condicionar a atribuição de um sentido que se antecipa do texto para a norma do caso concreto. Essa atribuição de sentido precisa ser autêntica também no respeito aos constrangimentos semânticos e à tradição em que está inserido o ator jurídico. Isto significa uma dupla limitação:

a) não pode julgar por critérios outros[14] que não o normativo, nos termos acima;

b) não pode produzir sentidos corrompidos, fora da verdade como experiência, como produção de um sentido intersubjetivamente compartilhado e aceito como autêntico.

Isso é muito importante para as conclusões que tiraremos ao final da série que ora iniciamos e perpassará a crítica que faremos à hierarquização do Judiciário pelas cúpulas, conduzido sob o discurso da eficiência, dentro de uma ordem corporativa e funcionando sob os ditames neoliberais propostos por um documento paralegislativo do Banco Mundial. Na semana que vem, abordaremos a judicialização da política e o ativismo judicial. Até lá!

 

Notas e Referências:

[1] DUSSEL, Enrique. Política de la liberación. Madri. Trotta, 2009. v. 2: Arquitetónica.

[2] Ibid., p. 22. Cabe acrescentar que havia culturas latinas mais desenvolvidas em vários aspectos do que a europeia. E a Ásia, à época, era o centro do mundo. Não há, entretanto, espaço suficiente para nos aprofundarmos no tema. Sugerimos a leitura de uma obra que pode ser baixada gratuitamente na internet, de autoria de Dussel. Trata-se do “1492: o encobrimento do outro: em torno do mito da modernidade” (DUSSEL, Enrique. 1492: el encubrimiento del otro: hacia el orígen del “mito de la modernidad”. La Paz: Biblioteca Indígena, 2008. Disponível em: <http://www.enriquedussel.com/txt/encubrimiento08.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2013.)

[3] Max Weber retrata bem a visão ideológica capturada pelo paradigma eurocêntrico do poder exclusivamente como dominação e como vontade de poder – ao tratar do tema somente sob essa ótica (WEBER, Max. Economia e sociedade. Tradução de Regis Barbosa; Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UNB, 2004. v. 1, passim).

[4] Não por menos a expressão ainda hoje ouvida por aqui: “manda quem pode; obedece quem tem juízo”.

[5] DUSSEL, Enrique. Política de la liberación. Madri. Trotta, 2009. v. 2: Arquitetónica, p. 47.

[6] Ibid., 2009, p. 60.

[7] DUSSEL, op. cit., p. 24-37.

[8] Nossa Constituição traz a diferença ontológica entre potentia e potestas logo no seu art. 1º, parágrafo único, ao estabelecer que “Parágrafo único. Todo o poder emana do povo [potentia], que o exerce por meio de representantes eleitos [potestas] ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

[9] Exercício obediencial no sentido de obedecer (ao povo, enquanto poder difuso e legitimante da autoridade) mandando.

[10] DUSSEL, Enrique. Política de la liberación. Madri. Trotta, 2009. v. 2: Arquitetónica, p. 12.

[11] Não por menos, em nosso dia-a-dia, é mais comum ouvirmos o adágio, “manda quem pode, obedece quem tem juízo” – que representa uma concepção negativa do poder, do que o “o povo unido jamais será vencido”, representando uma concepção positiva de poder.

[12] No livro Assim Falava Zaratrusta, uma narrativa fictícia, por vezes poética, por vezes irônica, Nietzsche desenvolve pela primeira vez seu conceito de vontade de poder. Embora haja divergências sobre seu alcance, o sentido que atribuímos é o de que representa o desejo inesgotável do homem de dominar. Eis algumas passagens sintomáticas: “Quando vos elevais acima do louvor e da censura, e quando a vossa vontade, como vontade de um homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da vossa virtude.” (Posição 1412); “E onde há sacrifício e serviço e olhar de amor há também vontade de ser senhor. Por caminhos secretos desliza o mais fraco até à fortaleza, e até mesmo ao coração do mais poderoso, para roubar o poder.” (Posição 2161); “Só onde há vida há vontade; não vontade de vida, mas como eu predico, vontade de domínio.” (Posição 2162); “Que te importam os seus motejos. Tu és um que se esqueceu de obedecer; deves agora mandar. Não sabes do que todos necessitam? Do que ordena as grandes coisas. Realizar grandes coisas é difícil; mas, mais difícil ainda é ordenar grandes coisas. O mais indesculpável em ti é teres o poder e não quereres reinar” (posições 2795-2799) (NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Tradução de Araújo Pereira (1871-1945). ed. Digital Kindle. [S.l]: Centaur Editions, 2013).

[13] “Deseamos resumir lo expuesto recordando que, desde la referencia en última instancia a la vida humana en comunidad (con pretensión de abarcar a toda la humanidad), surge el querer de la vida como voluntad, anterior a toda Voluntad de Poder como dominación («dominación» que consideraremos una caída en una fijación represiva que produce muerte), que se despliega como Poder de la Voluntad en cuanto ejercicio del poder-poner las mediaciones queridas, los entes con valor político. Esta Voluntad de Vivir […] moverá a las víctimas (en su inicio como voluntades impotentes) contra la Voluntad de Poder como dominación […]” (DUSSEL, Enrique. Política de la liberación. Madri. Trotta, 2009. v. 2: Arquitetónica, p. 59).

[14] Como por razões de utilidade, valores pessoais ou ideologia.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 7 de Setembro // Foto de: The scales of justice // Sem alterações

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