Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Um tribunal formado por juízes togados não pode revisitar o mérito para anular a decisão absolutória do Conselho de Sentença, pois configuraria usurpação da competência constitucionalmente atribuída aos jurados. Assim concluiu, liminarmente, o Ministro Celso de Mello, nos autos HC 185.068/SP, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
A decisão acima referida não reflete, no entanto, a jurisprudência de diversos tribunais brasileiros, razão pela qual a problemática em tela no presente artigo persiste controvertida e pode ser sintetizada nas seguintes indagações: É possível que um tribunal formado por juízes togados revise decisão não subsidiada necessariamente em critérios técnicos, por expressa autorização constitucional? Viola o ordenamento jurídico brasileiro o acórdão de um colegiado que, em grau de recurso, desconstitui uma clemência concedida ao réu pela sociedade – no júri, representada pelos jurados? Em uma frase: absolvições pelo júri popular podem ser submetidas a juízo rescindente?
O direito do acusado ser julgado diretamente pela sociedade, nos crimes dolosos contra a vida, é uma expressão do regime democrático no processo penal, pois permite a participação direta do povo na construção da Justiça, sendo conferida aos jurados, em que pese não lhes sejam asseguradas as prerrogativas orgânicas da magistratura, a “posição de garantidores da eficácia do sistema de garantias da Constituição (democracia substancial)”[1].
Vale salientar que as garantias inerentes ao Tribunal do Júri, dentre elas a soberania dos veredictos (do latim vere dictum; “verdadeiramente dito”)[2], são cláusulas pétreas e não admitem reformas ou interpretações tendentes à sua extinção ou mitigação por obra do poder constituinte derivado, tampouco por mero exercício hermenêutico.
A decisão soberana de absolvição dos jurados não é adstrita ao texto normativo, às teses contrapostas em plenário ou ao conteúdo dos autos processuais, razão pela qual não cabe impugnação em face do juízo popular sob o argumento de contrariedade ao acervo probatório, ainda que dita “manifesta” pelo representante do Ministério Público.
No tribunal do Júri, é assegurado ao acusado o direito à plenitude de defesa (art. 5º, XXXVIII, a, CRFB), considerado “elemento essencial”[3], e, desta feita, os argumentos defensivos podem transcender a técnica jurídica e invocar, dentre outras, razões de ordem social, humanitária, filosófica, religiosa, emocional e de política criminal.
As fundamentações metajurídicas, como tese defensiva no Júri, assumiram ainda maior importância com o advento da Lei 11.698/08, que regulamentou, no ordenamento jurídico brasileiro, o quesito genérico de absolvição, nos termos do art. 483, inc. III, do CPP.
Sempre que os jurados responderem afirmativamente, por mais de três votos, sobre a materialidade e a autoria do fato, a lei impõe, em seguida, a formulação do quesito genérico da absolvição. Essa indagação é obrigatória, consoante dicção do art. 483, III e respectivo § 2º, do CPP, e, portanto, não ingressa na esfera de discricionariedade do juiz presidente da sessão. O pleito absolutório pode ser acolhido pelo juízo popular, por qualquer motivo jurídico ou metajurídico, legal ou supralegal.
O juízo de absolvição pelos jurados é, pois, genérico[4]. Não cabe ao juiz presidente ou tribunal de instância superior indicar precisamente o fundamento da absolvição proferida pelos jurados, máxime porque a ratio decidendi tem base na íntima convicção dos julgadores populares. Se indicada a motivação da absolvição, violado está o complexo de garantias atinentes ao procedimento do Júri. Tais razões reforçam a impossibilidade de interposição de eventual apelação contra o mérito de sentença absolutória no Júri.
Todavia, a soberania dos veredictos não significa intangibilidade das decisões dos jurados. Ao representante do Ministério Público e à defesa é conferida a possibilidade de recorrer das decisões do júri nas seguintes situações, legalmente preestabelecidas: 1) nulidade posterior à pronúncia, 2) quando for a sentença do juiz presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados ou 3) se houver erro ou injustiça no tocante a aplicação da pena ou de medida de segurança. Percebe-se que todas essas hipóteses são circunscritas a questões jurídicas, dissociada da análise do mérito da questão fático-probatória.
Constitui uma faculdade exclusiva da defesa a apelação arrimada na argumentação de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos[5]. Primeiramente, por força do quesito obrigatório da absolvição genérica. Ademais, a soberania dos veredictos é garantia instituída em favor da plenitude defensiva e da presunção de inocência do acusado. Não cabe, pois, a um tribunal técnico desconstituir o mérito do decreto absolutório proferido pelos jurados.
Noutro norte, se o réu for condenado, tal decisum não admite dissentimento às provas do feito ou às prescrições legais, pois representaria grave ofensa ao direito fundamental de presunção de inocência e ao devido processo legal. A condenação deve estar vinculada ao standard probatório de culpabilidade do réu, razão pela qual inexiste “um quesito genérico da condenação”[6].
A previsão de soberania dos veredictos não se contrapõe a outras garantias processuais fundamentais. Ao contrário, milita harmonicamente com a plenitude de defesa e a presunção de inocência para conferir maior proteção ao indivíduo contra alvedrios e injustiças, de forma a inadmitir uma condenação temerária, mormente diante da pouca familiaridade que o jurado tem com o Direito.
Todavia, ainda é praxe na jurisprudência brasileira o acolhimento do recurso interposto pelo Ministério Público, sob o fundamento de ser a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Pensa-se que esse distanciamento prático da diretriz constitucional conduz a um processo penal autoritário e repressivo, fruto de interpretação equivocada, que permite o atropelo de garantias fundamentais como forma de tentar suprir indesejáveis lacunas de punibilidade.
Não obstante, existem vozes a defender inclusive que o Estado-acusador não pode sequer recorrer, quanto ao mérito, de qualquer sentença absolutória de primeiro grau, haja vista que apenas o acusado seria titular do direito ao recurso. Tal pensamento encontra guarida na regra do devido processo legal, que veda o duplo julgamento[7].
É cediço que a retromencionada decisão liminar do Ministro Celso de Mello, nos autos do HC 185.068/SP, não tem efeito vinculante. No entanto, a (im)possibilidade de realização de novo júri após absolvição pelo Conselho de Sentença será objeto de discussão em plenário da Suprema Corte, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.225.185, e, dada a relevância da discussão ventilada, por unanimidade, já foi reconhecida a repercussão geral da matéria (Sessão virtual, tema 1.087).
Espera-se que o STF, guardião da Carta Magna decida pela impossibilidade de realização de novo julgamento popular após uma absolvição pelo Conselho de Sentença, isenta de nulidades processuais, e o faça com força obrigatória geral para garantir maior segurança jurídica às decisões do Tribunal do Júri.
A possibilidade de o parquet impugnar a decisão meritória de absolvição pelos jurados constitui afronta aos imperativos constitucionais da soberania dos veredictos, da plenitude de defesa e do sistema da íntima convicção dos julgadores leigos. Não se pode admitir que o pretenso combate à criminalidade sirva de pretexto para relativizar direitos fundamentais, matéria tão cara ao Estado Democrático de Direito, resultante de conquistas históricas irrenunciáveis.
Notas e Referências
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; e MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009
CAVALCANTE SEGUNDO, Antonio de Holanda; e SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna. Íntima convicção, veredictos dos jurados e o recurso de apelação com base na contrariedade à prova dos autos: necessidade de compatibilidade com um processo de base garantista. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 23 vol. 116/set.-out. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 15. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020
[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 852
[2] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; e MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional – 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p 212.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do júri – 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015 p. 34
[4] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 15. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008. p. 556.
[5] No mesmo sentido, Cf. CAVALCANTE SEGUNDO, Antonio de Holanda; e SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna. Íntima convicção, veredictos dos jurados e o recurso de apelação com base na contrariedade à prova dos autos: necessidade de compatibilidade com um processo de base garantista. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 23 vol. 116/set.-out. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 149-172.
[6] Expressão colhida em LOPES JR, Aury. Op. cit, p.1036.
[7] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020, p. 866-867. Por lealdade ao debate, registre-se que se trata de posição minoritária.
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