Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Nas últimas três décadas, os problemas éticos relacionados às áreas da ciência médica e biológica desencadearam intensos confrontos na sociedade contemporânea. Como tentativa de resposta, a comunidade científica, tomada por assuntos como modificação genética, eugenia e engenharia de novas formas de vidas, formaliza um novo campo de debates.
Apoiando-se nas concepções do campo da Bioética, o cenário instaurado tem como propósito explorar novas formas de abordagem para as problemáticas oriundas do impacto proveniente das tecnologias emergentes.
O surgimento da Bioética como área da ética aplicada, a partir de polêmicas questões envolvendo a liberdade de expressão científica, proporcionou a construção de uma perspectiva cultural com marcante presença em diversos ramos do conhecimento: o direito, a ecologia, as políticas públicas, a filosofia, a ciência da medicina, do meio ambiente, etc. O principal objetivo desse campo de estudos éticos consiste em trabalhar as relações entre ética e a vida humana, a “ciência dos valores humanos”, sendo necessariamente interdisciplinar.
Trata-se de uma “nova ética para um novo homem”[i], advinda das preocupações de médicos e biólogos quanto às implicações das novas tecnologias no meio social, visto que as descobertas apresentavam a própria pessoa humana como material de investigação e aplicação. Deste modo, conforme Joaquim Clotet, a Bioética se ocupa, principalmente, dos “problemas éticos referentes ao início e fim da vida humana, dos novos métodos de fecundação, da seleção de sexo, da engenharia genética, da maternidade substitutiva, dos limites de pesquisa em seres humanos, das formas de eutanásia, entre outros temas atuais”[ii].
Convidado a deliberar sobre o enigma do nascimento de uma nova ética, Jürgen Habermas discorreu sobre o avanço da técnica e a livre disposição de seres humanos para os fins de seleção. Lembra-nos, em sua obra O Futuro da Natureza Humana, que todos os avanços na técnica e pesquisa constituem uma nova espécie de desafio, na medida que alteram o que somos por “natureza”. As técnicas provenientes da genética deslocaram a fronteira entre a base natural indisponível – o campo do acaso – e o chamado reino da liberdade – o domínio do acaso. As intervenções tecnológicas naquilo que até então era indisponível ao domínio do ser humano (fecundação, gestação, etc.) fez com que ocorresse uma ampliação do âmbito de intervenção no dito “meio natural”, resultando na modificação da estrutural geral de nossa experiência moral[iii]. Habermas nomeia o deslocamento da experiência moral como a “destradicionalização dos mundos da vida”.
Oportunamente, dentro do horizonte da bioética, a partir do progresso da técnica, cabe ao Direito impor limites ao que antes eram normas morais, uma vez que os avanços refletem diretamente nos direitos individuais. O reconhecimento e a tutela da pessoa humana, em conflito com a tecnologia, justificam o desenvolvimento de um espaço próprio de novas teses e julgamentos, que servirão de suporte para os futuros processos de tomada de decisão.
Logo, é da necessidade de análise de questões jurídicas derivadas dos avanços em tecnologia, especialmente vinculados ao respeito e à dignidade da vida humana, que se originou o denominado biodireito (do termo em inglês, biolaw).
Mesmo que dialoguem intimamente, importante frisar que a bioética e o biodireito buscam propósitos diversos: a bioética não tem por intuito a prevalência de suas teses particulares, mas a redução dos conflitos como forma de garantir a coexistência dos seres; o biodireito, por sua vez, apresenta viés normativo e impositivo como forma de obter soluções normativas aos grandes dilemas decorrentes das biotecnologias[iv].
A partir dos questionamentos relativos à evolução das biotecnologias envolvendo saúde e vida humana, é delegado ao Direito o árduo trabalho de estabelecer quais valores desbancam as convicções particulares, tornando-se dignos de proteção.
O obstáculo para sua efetiva atuação não é novidade: reside na prevalência da utilização da ciência não mais em serviço do ser humano, mas o inverso. Desta forma, o papel do (bio)direito é justamente um controle adequado, que preserve um caminho baseado em princípios éticos a ser percorrido pelos cientistas – em benefício da humanidade.
Por fim, em se tratando de casos envolvendo pesquisa científica e biotecnologia, não cabe ao Direito desempenhar mera função instrumental, adaptando-se lentamente às evoluções futuras da ciência.
Mantê-lo como servo do progresso científico é subverter os princípios básicos de convívio e proteção à vida humana, nos quais repousamos nossas próprias noções de coexistência.
Notas e Referências
[i] PINTO, Gerson Neves. A invenção da bioética. Scientia Iuris, Londrina, v.18, n.2, p.211-226, dez.2014. DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n2p211.
[ii] CLOTET, Joaquim. Por que Bioética?.Revista Bioética/CFM, Brasília, v.1, n.1. 1993.
[iii] HABERMAS, Jürgen. O Futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[iv] Rivabem, Fernanda Schaefer. (2017). Biodireito: uma disciplina autônoma?. Revista Bioética/CFM, 25(2), 282-289. 2017
Imagem Ilustrativa do Post: laboratório // Foto de: Chokniti // Sem alterações
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