Das sanções penais adotadas pelos silvícolas à época do descobrimento do Brasil e sua execução. Um pouco de história

29/09/2015

                                                                                         Por Antônio Julião da Silva - 29/09/2015

Por muito tempo, acreditou-se na inexistência de um direito entre as sociedades indígenas que viviam no Brasil quando do seu descobrimento, tendo existido um consenso entre os colonizadores (invasores) que os índios não tinham "Fé, nem Lei, nem Rei".[1]

Chegou-se a afirmar, inclusive, que os silvícolas não possuíam "[...] fé, nem sombra de religião, jamais tiveram lei, nem policiamento fora da lei natural."[2]

Embora não codificado, conforme modelo existente à época nos países colonizadores europeus, os indígenas certamente contavam com regulamentos próprios para garantir a ordem social.

Nesse sentido WOLKMER[3] afirma que

"Toda cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidade de padrões, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedade esforça-se para assegurar uma determinada ordem social, instrumentalizando normas de regulamentação essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de controle social. Constata-se que, na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada como parte nuclear de controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um Direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão do grupo social."

COLAÇO[4], analisando o direito dos índios Guaranis sob a tutela dos jesuítas, afirma que "mesmo não possuindo tribunais legalmente constituídos nem leis escritas, possuíam o seu direito e a sua justiça."

Embora desprovidos de um poder judiciário específico, composto por juízes e tribunais, tal atribuição ficava a cargo dos dirigentes aldeões, "que constituem um corpo deliberativo, normativo e apelativo, podendo aplicar sanções em virtude de sua força coercitiva, regularidade representativa e autoridade social."[5]

Quando, por questões de ordem individual, pessoas do mesmo grupo tribal se confrontavam, geralmente não ocorria a intervenção de terceiros, deixando-se a resolução do conflito a cargo dos próprios envolvidos, era a chamada "vingança privada", em que "os contendores se esmurravam, sem que os circunstantes tomassem partido."[6]

Se a própria vítima não tinha condições de vingar-se pessoalmente, por encontrar-se enferma ou morta, a punição ficava ao encargo de seus familiares e do próprio criminoso, como forma de manter-se a amizade entre as famílias envolvidas.[7]

Nesse caso:

"Cabia então aos parentes do ofensor a iniciativa de puni-lo, ou de providenciar a entrega dele ou de alguém em seu lugar, a fim de que os ofendidos pudessem exercer a vingança compensatória."[8]

O objetivo das penas aplicadas entre os índios era a de incutir temor, desencorajando a comunidade do cometimento de atos que consideravam delituosos.[9]

A definição daquilo que era considerado infração e a forma da sanção retributiva variava conforme o grupo indígena.

O controle social era obtido mediante a aplicação de medidas inibidoras e punitivas.

As primeiras, muito eficazes, e de procedimentos informais, ridicularizavam o ofensor, tais como acusações de bruxaria e a intriga.

Já as medidas punitivas, eram aplicadas quando o crime se consumava, variando a intensidade de sua aplicação conforme a gravidade do crime praticado.[10]

Relativamente à intensidade do fato reputado criminoso entre os povos indígenas e a reprovação aplicada, refere GONZAGA que,

"Nos casos menos graves, a reação consistirá em mera sanção moral, gerando difusa reprovação da coletividade. Nos mais sérios, poderá haver uma sanção ritual, que torne o indivíduo impuro, com perigo para si próprio e para os que com ele mantenham contato, o que gera às vezes o seu apartamento da comunhão social; ou se chegará a verdadeiros castigos, de variada qualidade, com sanção retaliatória. Em se tratando de delitos privados, os povos mais atrasados deixam à discrição da vítima responder à ofensa, e até mesmo a compelem a assim proceder."[11]

A condenação, conforme o tipo de delito praticado poderia consistir no seu ostracismo, à expulsão, a castigos corporais ou à morte.

O covarde poderia ser rejeitado pela sua mulher, que retornava à sua família de origem.

Os prisioneiros de guerra recebiam, predominantemente, castigos corporais, eram esbofeteados pelas mulheres e crianças da tribo. Possuíam os mesmos direitos "civis" de qualquer membro da comunidade, não eram vigiados, pois, embora ficassem libertos, com chances de fugir, não o faziam. Caso fugissem, não seriam aceitos por sua tribo, porque seriam considerados covardes.

Poderiam ser mantidos vivos por meses ou até anos.

COLAÇO[12] justifica essa submissão do preso aos seus algozes:

"[...] o fato de terem sido capturados era sinal de que foram abandonados pelos espíritos protetores e entregues à vontade dos maus espíritos. Outros autores interpretam o desinteresse dos cativos pela fuga ao orgulho que sentiam pela forma como iriam morrer."

Segundo MONTOYA, o grande dia da execução acontecia quando consideravam o prisioneiro suficientemente gordo[13], "às vezes lhe colocavam no pescoço um colar de contas, que eram retiradas, uma a cada dia, até a data do sacrifício".[14]

No dia escolhido para execução do guerreiro, acontecia uma grande festa, para a qual eram convidadas as aldeias amigas vizinhas e toda a comunidade.

Nestas festas acontecia o "[...] ritual antropofágico, no qual eram distribuídas entre os presentes as partes do corpo do inimigo morto, consagrando o princípio da reciprocidade que fundamenta as relações sociais entre os Guaraní."[15]

Embora extenso, convém citar o relato contido na obra de CABEZA DE VACA, sobre o ritual antropofágico entre os índios Guaraní[16]:

"Quando capturam um inimigo na guerra, trazem-no para o seu povoado e fazem com ele grandes festas e regozijos, dançando e cantando, o que dura até que ele esteja gordo, no ponto de ser abatido. Porém, enquanto está cativo, dão a ele tudo o que quer comer e lhe entregam suas próprias mulheres ou filhas para que faça com elas os seus prazeres. São estas mesmas mulheres que se encarregam de tratá-lo e de ornamentá-lo com muitas plumas e muitos colares que fazem de ossos  e de pedras brancas. Quando está gordo, as festividades são ainda maiores. Os índios se reúnem e adereçam três meninos de seis ou sete anos de idade e colocam-lhes nas mãos umas machadinhas de cobre. Chamam então um índio que é tido como o mais valente entre eles, colocam-lhe uma espada de madeira nas mãos, que chamam de macana, e o conduzem até uma praça onde o fazem dançar durante uma hora. Terminada a dança, dirige-se para o prisioneiro e começa a golpeá-lo pelos ombros, segurando o pau com as duas mãos. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis golpes na cabeça, o que não é suficiente para derrubá-lo, pois é impressionante a resistência que eles possuem, especialmente na cabeça. Somente depois de muito baterem com aquela espada, que é feita de uma madeira negra muito resistente, é que consegue derrubar o prisioneiro e inimigo. Aí então chegam os meninos com as machadinhas e o maior deles, ou filho do principal, é o primeiro a golpeá-lo com a machadinha na cabeça até fazer correr o sangue. Em seguida, os outros também começam a golpear e, enquanto estão batendo, os índios que estão em volta gritam e incentivam para que sejam valentes, para que tenham ânimo para enfrentar as guerras e para matar seus inimigos; que se recordem que aquele que ali está já matou sua gente. Quando terminam de matá-lo, aquele índio que o matou toma o seu nome, passando assim a chamar-se como sinal de valentia. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas. Depois repartem entre si, sendo considerado algo muito bom de comer, e voltam às suas danças e cantos por mais alguns dias como forma de regozijo."[17]

A modalidade de aplicação das punições adotadas pelos indígenas, não influenciou a legislação adotada no Brasil.

Segundo PIERANGELLI[18], "dado o seu primarismo, as práticas punitivas das tribos selvagens que habitavam o nosso país em nenhum momento influíram na nossa legislação."


Notas e Referências:

[1]  GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 52.

[2]  D'ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, p. 255.

[3]  WOLKMER, Antonio Carlos. O direito nas sociedades primitivas. Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 17.

[4]  COLAÇO, Thaís Luzia. "Incapacidade" Indígena – Tutela religiosa e violação do direito guarani nas missões jesuíticas. Curitiba. Juruá, 2000, p. 24.

[5] CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indígena y su bibliografia antropológica en el Paraguay. Asunción: Universidad Católica, 1990, p. 49, 17-18.

[6] GONZAGA, João Bernardino. O direito indígena. À época do descobrimento do Brasil. São Paulo: Max Limonad, p. 37.

[7]  COLAÇO, op. cit., p. 41.

[8]  GONZAGA, op. cit. p. 118-119.

[9]  GONZAGA, op. cit. p. 121-122.

[10]  RAMOS, Alcida Rita. Sociedades indígenas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 64.

[11]  GONZAGA, op. cit. p. 57-58.

[12]  COLAÇO, op. cit., p. 34.

[13]  MONTOYA, Antonio Ruiz de S. J. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985, p. 53.

[14]  GONZAGA, op. cit. p. 44.

[15] DECKMANN, Eliane Cristina. O imaginário dos séculos XVI e XVII, suas manifestações e alterações na prática missionária jesuítica. São Leopoldo, 1991. Dissertação (Mestrado em História – Estudos Ibero-Americanos), Universidade do Vale do Rio dos Sinos. p. 295.

[16] Esse ritual antropofágico também era adotado pelos índios Tupinambás que viviam na costa brasileira, que consumiam as carnes dos "estrangeiros", inimigos ou, em determinadas circunstâncias, de membros do próprio grupo – condenados à morte, parentes mortos naturalmente, velhos improdutivos e recém-nascidos malformados, conforme MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro. Porto Alegre: editora da UFRS, 1994.

[17]  CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 146-147.

[18] PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo: Jalovi, 1980, p. 6.

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1987.

COLAÇO, Thaís Luzia. "Incapacidade" Indígena – Tutela religiosa e violação do direito guarani nas missões jesuíticas. Curitiba. Juruá, 2000.

CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indígena y su bibliografia antropológica en el Paraguay. Asunción: Universidad Católica, 1990.

DECKMANN, Eliane Cristina. O imaginário dos séculos XVI e XVII, suas manifestações e alterações na prática missionária jesuítica. Dissertação (Mestrado em História – Estudos Ibero-Americanos), Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2 v. São Leopoldo, 1991.

D'ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

GONZAGA, João Bernardino. O direito indígena. À época do descobrimento do Brasil. São Paulo: Max Limonad, 1983.

MONTOYA, Antonio Ruiz de S. J. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985.

PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo: Jalovi, 1980.

RAMOS, Alcida Rita. Sociedades indígenas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 


Antônio Julião da SilvaAntônio Julião da Silva é Bacharel em Direito pela UFSC, pós-graduado em Relações Internacionais pela UNISUL e em Gestão do Serviço Público pela UDESC. Autor das seguintes obras jurídicas: “Prática da Execução Penal” (6ª edição), “Lei de Execuções Penais Interpretada pela Jurisprudência do STF, STJ e TJSC (3ª edição) e “Juizados Especiais Cíveis e Criminais Interpretada pela Jurisprudência do STF, STJ e TJSC” (3ª edição), todos pela editora Juruá.


Imagem Ilustrativa do Post: Kariri-xocó // Foto de: Cícero R. C. Omena // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/10015563@N03/13001800123 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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