Das reservas à teoria da instrumentalidade do processo e do risco de se aplicar um formalismo às avessas no processo penal – Por Jorge Coutinho Paschoal

10/03/2016

Um dos temas mais caros ao processo penal diz respeito ao formalismo. Como afirma o jurista italiano Giovanni Leone, “delle esigenze formali nessun ordinamento giuridico può fare a meno; si tratterà di mirare ad un regolamento più o meno sobrio delle forme, ma ‘la loro mancanza porta il disordine, la confusione, l’incertezza[1].

A forma é uma exigência irrenunciável em prol da função estabilizadora do direito, com o objetivo de privilegiar, paralelamente aos valores substanciais (a justiça da decisão), também valores formais, tais como a ordem, a segurança e a coerência[2], que visam fornecer melhores subsídios para se atingir a justiça.

Como expõe o Professor Vicente Greco Filho, “se a forma limita a atividade de um, tem razão de ser, porque preserva o espaço do outro”[3].

João Mendes de Almeida Júnior, em seu tempo, já ensinava que se as formas fossem deixadas ao critério das partes, ou mesmo à discrição do magistrado, a justiça marcharia sem rumo, sendo que, “mesmo sob o mais prudente dos arbítrios, seria uma ocasião constante de desconfianças e surprêsas. É essa a razão pela qual, se os legisladores puderam, em algumas épocas, deixar as penas ao arbítrio dos juízes, nunca deixaram ao mesmo arbítrio as formalidades de suas decisões”[4].

Em que pese toda a importância do formalismo para âmbito penal, é equivocado imaginar que toda e qualquer relativização da forma seja deletéria.

Por um lado, não se pode negar que a instrumentalidade das formas, em seara penal, tem sido usada para justificar uma ampla e questionável “flexibilização” das formas, sendo justificáveis as reservas que parcela da doutrina processual penal nutre em relação a uma acrítica e indiscriminada aplicação da teoria da instrumentalidade do processo ao sistema penal[5].

Por outro lado, deve-se tomar cuidado com quaisquer radicalismos.

Não é correto afirmar que a teoria da instrumentalidade das formas vá, necessariamente, contra a Constituição Federal (ou que impeça os seus objetivos).

A instrumentalidade das formas, é importante destacar, pressupõe a instrumentalidade constitucional (como, aliás, todas as matérias de Direito).

Apesar de ser sempre oportuna a advertência de que se deve respeitar e observar a Lei das Leis, como fez, expressamente, o Novo Código de Processo Civil (art. 1.º), não há (ou melhor, não deveria haver) nada de novo quanto ao enunciado consistente no dever de obediência da Magna Carta (justamente, a instrumentalidade constitucional)[6].

Seja como for, o que se quer evidenciar é que se mostra equivocado querer apartar a análise instrumentalista das formas, pois também se mostra imprescindível para a tutela de direitos. Muitas vezes, para a efetiva proteção dos direitos garantais fundamentais (mormente do acusado), será mesmo necessário e imperioso flexibilizar a interpretação rígida que se faz das formas jurídicas que, algumas vezes, tanto se apegam o legislador e, principalmente, os magistrados, a fim de negarem ou dificultarem o exercício de direitos.

No ponto, constitui uma falácia pensar que a teoria da instrumentalidade seja totalitária, cujo objetivo, no processo penal, seria apenas o de prejudicar o acusado, de forma a impedir que exerça os seus direitos e garantias.

Nesse diapasão, o discurso formalista, do apego irrestrito às formas, pode se mostrar uma grande armadilha, como bem observam Salo de Carvalho e Antonio Tovo Loureiro[7], entre nós, e Alberto Binder, na Argentina, podendo o formalismo se mostrar como um monstro de muitas cabeças, sendo que, como bem fala o Professor Binder, nem sempre as mais “cabeludas” estariam à mostra[8].

Quem atua na esfera criminal, sabe como o discurso formalista pode ser pernicioso e violador dos mais basilares direitos e garantias fundamentais.

Abaixo seguem, a título exemplificativo, algumas possibilidades de violação de direitos, “legitimadas” por meio do discurso formalista, que ocorrem, em larga escala, no dia a dia forense, e que servem para deixar evidente como pode ser capcioso o discurso formalista (contra a teoria da instrumentalidade das formas), caso se tenham em vista:

(1) a frequência com que centenas de habeas corpus são extintos pelos Tribunais, devido ao discurso formalista de que o habeas não seria sucedâneo de recurso (tanto de recurso ordinário em habeas corpus[9] quanto de agravo em execução);

(2) o discurso hoje imperante que afirma que o habeas corpus não poderia ser usado como um sucedâneo de revisão criminal (não caberia quando houvesse trânsito em julgado)[10];

(3) com que habitualidade não se conhecem de tantos habeas corpus, até mesmo em casos de decretação de prisão, apontando-se que não caberia writ impetrado contra indeferimento de liminar no Tribunal inferior (súmula 691, STF[11])[12];

(4) com que facilidade diversos habeas corpus são denegados, pelo discurso igualmente formalista e simplista de que a via estreita do habeas corpus não se presta à discussão de provas[13];

(5) como se usam argumentos formais para não se reconhecer a ilegalidade de uma prisão, apontando-se que o título de segregação teria mudado (com a superveniência de uma decisão de pronúncia ou sentença, apesar de os fundamentos da decisão serem os mesmos), tendo o habeas corpus, supostamente, perdido o seu objeto[14];

(6) como se mostra formalista o entendimento de que não se poderia desclassificar a tipificação jurídica do fato já no momento da admissibilidade da acusação, sob o singelo argumento de que não seria o momento adequado;

(7) como se mostra sem razão a interpretação extremamente formalista que reputa intempestivo o recurso apresentado, frise-se, antes mesmo da abertura do prazo ou mesmo antes da publicação do julgamento dos embargos de declaração, formalismo que vem sendo afastado pelo STF, em prol do “instrumentalismo processual”[15], pois não faz sentido punir a parte que contribuiu para a celeridade do processo;

(8) as inúmeras outras formalidades que havia ao se procederem aos juízos de admissibilidade dos Recursos Especial e Extraordinário[16], que, com o passar do tempo, e com a influência da teoria da instrumentalidade, vieram a ser, em parte, abrandadas;

(9) como até vícios formais de responsabilidade exclusiva do Estado (problemas meramente burocráticos, de certificação de um protocolo) são utilizados para se negar ao cidadão jurisdicionado o amplo acesso à Justiça[17];

(10) como há reticência em conhecer ordens de habeas corpus de ofício, por questões meramente processuais, sendo o quanto exposto, como bem intitula Adauto Suannes, mais “um exemplo típico de formalismo judicial[18].

Poderiam ser citados outros inúmeros exemplos, em que a forma e o apego ao discurso formalista podem causar um grande entrave ao legítimo exercício dos direitos e garantias fundamentais. Um dos problemas do formalismo no processo penal, sobretudo quando aplicado para dificultar o uso das garantias fundamentais do cidadão, é que o mesmo argumento formal é utilizado em alguns casos para barrar/dificultar o acesso à Justiça, mas não o é em outros casos, o que dá ensejo a questionamentos das mais variadas ordens: afinal, por qual razão, em muitos casos, por meio desse discurso formalista, não se conhecem, por exemplo, de tantos e tantos habeas corpus (ou recursos) e, em outros (frise-se, poucos casos), aparentemente iguais, não só o meio é considerado idôneo, como também as ordens acabam sendo concedidas (?)

Ter em vista todo o exposto é importante, pois se deve fazer grande reflexão antes de ir, radicalmente, contra o princípio da instrumentalidade das formas no Processual Penal. É claro que ponderações críticas são sempre oportunas, pois não se pode querer importar, automaticamente, os postulados da teoria, tal como pensados para o processo civil, ao processo penal. Contudo, não nos parece correto pretender renegá-la e querer apartar a sua análise do processo penal.


Notas e Referências:

[1] LEONE, Giovanni. Manuale di diritto processuale penale. 8.ª ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1973, p. 266.

[2] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. Tese (Doutorado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1996, p. 03.

[3] GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 285.

[4] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Vol. I. 4.ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1959 p. 13.

[5] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades: processo penal e instrumentalidade constitucional. Tese (Doutorado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná, 2010, p. 252.

[6] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 28.ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 21.

[7] CARVALHO, Salo de & LOUREIRO, Antonio Tovo. “Nulidades no Processo Penal e Constituição: Estudo de Casos a Partir do Referencial Garantista”. In: Diogo Malan & Geraldo Prado (coord.). Processo penal e democracia: estudo em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 513.

[8] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Tradução: Angela Nogueira Pessôa. Revisão: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 71.

[9] Por todos, a título ilustrativo: STF, HC 111.920/MG, Ministro Relator Dias Toffoli, 1.ª T., j. 04.09.2012, v.u. Criticando esse entendimento firmado pelo Supremo, por reputar um amesquinhamento da garantia do habeas corpus: BASTOS, Márcio Thomaz. “Supremo Tribunal Federal - Direito Processual Penal. Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário. Abolição de garantia constitucional. Interpretação in malam partem” (comentário de jurisprudência).  Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 20, n. 240, Nov./2012; BOTTINO, Thiago. “Habeas Corpus nos Tribunais Superiores – panaceia universal ou remédio constitucional?”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 21, n. 246, maio/2013; CASTRO, Pedro Machado de Almeida. “HC, RHC e o retrocesso no processo penal brasileiro”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 20, n. 241, dez./2012; DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. “Tribunais Superiores cometem um atentado à democracia”. Boletim do IBCCrm, São Paulo, ano 21, n. 243, fev./2013; FONSECA, Tiago Abud da & MENDONÇA, Henrique Guelber da. “O Supremo Tribunal Federal, a restrição do habeas corpus e o marido traído”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 21, n. 244, mar./2013

[10] No Supremo Tribunal Federal, consultem-se: STF, RHC 116.204/SP, Ministra Relatora Cármen Lúcia, 2.ª T., j. 16.04.2013, v.u; STF, HC 115.609/DF, Ministro Relator Ricardo Lewandowski, 2.ª T., j. 12.03.2013, v.u; STF, HC 110.250/MS, Ministro Relator Joaquim Barbosa, 2.ª T., j. 26.06.2012, v.u; STF, HC 111.094/SC, Ministro Relator Luiz Fux, 1.ª T., j. 26.06.2012, v.u; STF, RHC 111.547/DF, Minstro Relator Dias Toffoli, 1.ª T., j. 08.05.2012, v.u; STF, HC 102.473/RJ, Ministra Relatora Ellen Gracie, 2.ª T., j. 12.04.2011, v.u; STF, RHC 106.397/MS, Ministro Relator Ricardo Lewandowski, 1.ª T., j. 15.02.2011, v.u; STF, HC 98.412/SP, Ministro Relator Gilmar Mendes, 2.ª T., j. 31.08.2010, v.u.

[11] Súmula n. 691, do Supremo Tribunal Federal: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido a Tribunal inferior, indefere a liminar”.

[12] No Supremo Tribunal Federal: STF, HC 114.043/RS, Ministro Relator Luiz Fux, 1ª T., j. 21.05.2013, v.u; Emb. Dec. no HC 112.952, Ministra Relatora Rosa Weber, 1.ª T., j. 09.04.2013; STF, HC 113.596/SP, Ministro Relator Dias Toffoli, 1.ª T., j. 02.04.2013; STF, Ag.Rg. no HC 115.921/SP, Ministro Relator Gilmar Mendes, 2.ª T., J. 19.02.2013, v.u; STF, Ag.Rg. no HC 110.738, Ministra Relatora Cármen Lúcia, 1.ª T., j. 29.05.2012; STF, HC 113.214/SP, Ministro Relator Cezar Peluso, 2.ª T., j. 22.05.2012, v.u; STF, Ag.Reg. no HC 112.963/RJ, Ministro Relator Ricardo Lewandowski, 2.ª T., j. 15.05.2012, v.u; STF, HC 112.645/TO, Ministro Relator Ayres Britto, 2.ª T., j. 20.03.2012, v.u.

[13] No Supremo Tribunal Federal: STF, HC 93.164/SP, Ministro Relator Gilmar Mendes, 2. ª T., j. 14.09.2010, v.u.

[14] No Supremo Tribunal Federal: STF, Ag.Rg. no HC 115.965/SP, Ministra Relatora Rosa Weber, 1.ª T., j. 07.05.2013;

[15] STF, Emb. Dec. no HC 101.132/MA, Ministro Relator Luiz Fux, 1.ª T., j. 24.04.2012, v.u. Entendendo, no mesmo sentido, que não haveria que se falar em intempestividade, pois a intempestividade se refere ao escoamento do prazo: STF, ARE 742221 AgR-ED, Ministro Relator Dias Toffoli, 1.ª T., j. 28.04.2015, v.u.

[16] “Talvez em razão do número excessivo e do abuso, vem a jurisprudência criando óbices ao conhecimento dos recursos. Com isso, todavia, acaba criando insegurança, especialmente se os empecilhos não encontram amparo nos princípios gerais. Não se corrigem os equívocos do sistema e o comportamento inadequado da parte com a exacerbação do formalismo” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007 p. 149).

[17] “... Nada obstante o carimbo do protocolo da petição de recurso extraordinário esteja ilegível, a sua tempestividade pode ser aferida por outros elementos acostados aos autos. O defeito do protocolo ilegível, no caso, é imputável ao órgão que recebeu a petição e não carimbou adequadamente, não podendo a parte jurisdicionada sofrer o prejuízo por um defeito o qual não deu causa. O ônus processual no caso não pode ser atribuído à parte. 2. Agravo regimental a que se dá provimento” (STF, Ag. Rg. no RE 611.743/PR, Ministro Relator Luiz Fux, 1.ª T., j. 25.09.2012).

[18] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 283-313.


 

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