DAS GESAMTKUNSTWERK: A ADVOCACIA CRIMINAL  

03/07/2018

Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa.  Em Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa escreveu essa que é uma das minhas frases preferidas. Peço licença para utilizá-la, uma vez mais, neste texto em que me apresento ao leitor. Há certezas em demasia e escassez de desconfianças. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela. Ser apreendido desde o interior de um discurso que não domino, mas externalizo, que submete e limita a mim mesmo.

Direito é linguagem. É bem verdade que não se pode ignorar a condição de Dasein, Ser-aí (-jogado-no-mundo). Apreender o que do mundo é possível apreender perpassa pela compreensão de que um sujeito é um sujeito histórico, submetido a um sem-número de relações que atravessam as mais diversas facetas da vida e a determinam. Dasein, Ser-aí, só pode ser compreendido enquanto Mitsein, Ser-com. Ora, tudo é relacional, viver é a arte de conviver, e com o direito não é diferente. O que parece, em um primeiro momento, uma constatação banal, pode ser uma chave para uma nova forma de pensar a ciência jurídica. É preciso apreender dos e com os outros. Direito é linguagem.

Os limites do mundo são os limites da linguagem. Quero propor uma redefinição de limites a partir da criação de novas possibilidades. Não uma redefinição por meio de uma criação com a dureza das ciências tradicionais, mas por meio da suavidade, grandeza, e potência da poesia. Palavra que, não por acaso, tem sua origem no grego antigo poiesis (ποίησις), que significa criação. Poesia, portanto, assume aqui um significado que transcende a esfera de poema, para alcançar o sublime na busca do estado da arte da criação artística na totalidade.

Os filósofos do período helenístico, ao retomar lições dos pré-socráticos, identificaram na relação com a arte a possibilidade de realização pessoal de uma vida plena, virtuosa e feliz. Nesta arte de viver, é preciso atrelar à ética a estética da existência. La vie comme oeuvre d'art, a vida como obra de arte. Não basta existir, é preciso ter consigo o compromisso de fazer da própria vida a grande obra de arte. Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive. No poema de Pessoa, a confirmação da filosofia. Comprometimento e cuidado com a própria vida, desde olhares diversos.

Se a leitora chegou até aqui, imagino que seja pelo menos quase tão pirada quanto o Jader e eu. Aliás, o Jader é culpado não só pela publicação do texto, mas por eu pensar como penso e escrever como escrevo. O privilégio de receber o convite e ter participado da primeira turma da Escola de Criminalistas, Turma Braulio Marques, faz com que, inevitavelmente, eu siga me encontrando comigo e me tornando quem eu sou. Minha querida amiga Monica Delfino, Diretora da Escola, bem vaticinou, o efeito seria après-coup. Touché!

Gesamtkunstwerk. Foi em um dos cursos da Escola que essa ideia me ocorreu pela primeira vez. Em uma palestra do Jader sobre atuação em plenário, eu percebi que a advocacia criminal – ao menos a advocacia criminal em que eu acredito – é uma profissão impossível de se exercer de forma puramente técnica, mecânica, da mesma forma que se apertam parafusos. E creio que ninguém discordaria disso. Mas quero ir além. A atuação do advogado criminalista, desde meu olhar, precisa materializar a própria condição de Dasein e Mitsein do advogado. A espontaneidade é uma característica fundamental. O bom advogado só o é quando o é por inteiro, e com.

Gesamtkunstwerk significa Obra de arte total. É um conceito estético oriundo do romantismo alemão, comumente associado ao compositor alemão Richard Wagner. Compreendia o maestro que por mais geniais que fossem suas óperas, só poderiam ser apreendidas na totalidade se a inclinação das poltronas e a iluminação do teatro estivessem adequadas. Se o próprio teatro, por sua arquitetura, fosse também belo. Se as bailarinas fossem irretocáveis. Integração e imersão são conceitos-chave, e o são também, penso eu, na advocacia.

Ocorreu-me, portanto, que também a advocacia criminal pode e deve ser pensada dessa forma. Tornar-se quem se é não é tarefa fácil, mas, definitivamente, imprescindível. Acredito que é no decorrer do nunca findo processo de autoconhecimento e de cuidado de si que é possível a aproximação do estado da arte da estética da existência. O artista da própria vida é aquele que tem maiores condições de compreender que também a prática profissional não escapa a essa lógica. E que é preciso estar atento a todos os detalhes, e com eles ser absolutamente cuidadoso, sempre. Sê todo em cada coisa.

Poderia escrever ainda mais, mais ainda divagaria. E há ainda muitas sextas-feiras pela frente, dia em que escreverei sobre o direito a partir de um locus invulgar, que tem morada em algum entre a poesia e a filosofia. Parto com as palavras daquele que é um dos meus poetas preferidos, Mario Quintana escreveu que um dia de chuva é bom para a gente comprar um livro de poemas... quem perguntar por que, de nada lhe adianta comprar um livro de poemas.

O prazer é meu.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 27.04.2015 - ADVOGADOS - Prestação de Compromisso // Foto de: OAB/RS // Sem alterações

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