DANOS EXTRAPATRIMONAIS: A (in)aplicabilidade das regras contidas na CLT para a reparação dos danos sofridos pelos familiares de trabalhadores falecidos em acidentes de trabalho

30/04/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

A Lei nº 13.467/2017, que tratou da denominada Reforma Trabalhista em nosso país, procurando regulamentar a reparação dos danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho, incluiu o Título II-A no texto da CLT a previsão de que a reparação dos danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho deveria observar apenas os dispositivos constantes do referido título.

A intenção do legislador foi estabelecer um teto para a fixação das indenizações trabalhistas, além de regulamentar a matéria de forma exauriente, excluindo a aplicação de outros diplomas legais.

Mesmo antes da vigência da referida lei, as mencionadas disposições enfrentaram inúmeras críticas doutrinárias, uma vez que as previsões seriam incompatíveis com vários preceitos constitucionais.

Conforme salientam Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado:

O primeiro macro aspecto de destaque no Título II-A da CLT consiste na tentativa sutil de a Lei n. 13.647/2017 descaracterizar um dos avanços humanísticos e sociais mais relevantes da Constituição de 1988, que é o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem social, econômica e jurídica, com os seus diversos princípios correlatos, capitaneados pelo princípio da dignidade da pessoa humana.[1]

Com o objetivo de corrigir algumas das falhas apontadas pela doutrina, foi editada a Medida Provisória nº 808/2017, que, dentre outras alterações, modificava os limites de indenização, substituindo o parâmetro fixado com base no salário do ofendido pelo teto de benefícios do Regime Geral da Previdência Social, excluindo o tabelamento quanto aos danos extrapatrimoniais decorrentes do evento morte, como também ampliava o rol dos bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa natural.

Durante a vigência da medida provisória, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho ingressou com ADI postulando a declaração da inconstitucionalidade da tarifação contida nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G da CLT, com a redação que lhe foi dada pelo art. 1º da Lei nº 13.467, de 13/7/2017, e também pela medida provisória nª 808/2017 (ADI nº 5.870). Todavia, a medida provisória nº 808/2017 não chegou a ser votada por nosso Congresso Nacional, tendo perdido vigência em 23 de abril de 2018.

Após os recentes acidentes que vitimaram centenas de trabalhadores no setor de mineração em nosso país, a temática ganhou especial relevância, sendo que foram ajuizadas duas novas ADIs, com o questionamento da mesma matéria: ADIs nº 6.069 e 6.082.

Abstraída a questão sobre a constitucionalidade dos referidos dispositivos, o objetivo do presente artigo é discutir a aplicabilidade das regras do Título II-A da CLT para a reparação dos danos sofridos pelos familiares de trabalhadores falecidos em acidentes de trabalho.

 

DO DANO EM RICOCHETE

O art. 223-B da CLT passou a estabelecer que: “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação”.

Sebastião Geral de Oliveira destaca que a intenção do legislador, com a referida inovação, seria a de excluir o chamado dano reflexo ou “dano em ricochete”, uma vez que a titularidade seria exclusiva do trabalhador, defendendo a inconstitucionalidade do referido dispositivo, “in verbis”:

Chama a atenção na leitura do artigo 223-B a previsão de que a pessoa física que sofreu o dano extrapatrimonial é a titular exclusiva do direito à reparação. Tudo indica que o legislador pretendeu com essa disposição restritiva excluir a reparação do dano reflexo ou dano em ricochete, causado a terceiros pelo mesmo ato lesivo. (...)

Entendemos, portanto, que, neste ponto, o artigo 223-B fere a Constituição da República e que as vítimas que suportaram os danos reflexos ou em ricochete são também titulares do direito à reparação dos danos extrapatrimoniais por elas sofridos. São lesões distintas, sofridas por pessoas diversas que devem receber reparações separadas, mesmo que provenientes do mesmo fato gerador. E a competência para julgamento, conforme pacificado na Corte Suprema, é mesmo da Justiça do Trabalho.[2]

Entretanto, entendemos que as referidas disposições, por ausência de previsão legal específica, não teriam aplicabilidade aos danos sofridos por familiares de trabalhadores falecidos em acidentes de trabalho.

Segundo posicionamento já pacificado no âmbito do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, ao tratar da legitimidade ativa para os processos em que se pleiteia indenização por danos morais decorrentes do sofrimento causado à viúva ou aos filhos em virtude da morte do empregado por acidente de trabalho (“prejuízo de afeição”), o espólio não possui legitimidade para o ajuizamento da respectiva ação, uma vez que postulado direito próprio dos herdeiros, e não do trabalhador falecido. E, em se tratando de dano extrapatrimonial sofrido em vida pelo de cujus, o espólio possuiria legitimidade, uma vez que, embora o direito à honra se insira na categoria dos "direitos personalíssimos" - e, como tal, seja intransmissível -, sua violação gera o direito à reparação, sendo que tal direito, de cunho eminentemente patrimonial, é transmissível por herança, nos exatos termos do artigo 943 do CCB.[3]

Assim, constatamos uma importante distinção entre os danos sofridos pelo trabalhador falecido e aqueles enfrentados por seus familiares, que, conforme passamos a defender, por possuírem titularidade distinta, não devem se submeter ao regramento da Consolidação das Leis do Trabalho.

 

DA NATUREZA JURÍDICA DO DANO

Embora não existam dúvidas a respeito da competência da Justiça do Trabalho para apreciação dos processos ajuizados pelos familiares dos trabalhadores falecidos, principalmente após a vigência da Emenda Constitucional nº 45/2004 – Súmula nº 392 do TST e o julgamento do Conflito de Competência nº 7.545 pelo plenário do STF[4] –, resta-nos analisar qual seria a natureza jurídica do dano sofrido pelos familiares do trabalhador falecido: se trabalhista ou civil.

Os ministros da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do TST-E-RR-10248-50.2016.5.03.0165, com acórdão publicado em 28 de junho de 2018, responderam ao questionamento, reconhecendo, de forma unânime, qual seria a prescrição aplicável às referidas pretensões, “in verbis”:

EMBARGOS INTERPOSTOS SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014 E DO CPC/2015 –  INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DA MORTE DE TRABALHADOR POR SUPOSTA DOENÇA OCUPACIONAL – AÇÃO AJUIZADA PELA VIÚVA E FILHOS DO DE CUJUS – DIREITO PLEITEADO EM NOME PRÓPRIO – CONTROVÉRSIA RELATIVA À PRESCRIÇÃO INCIDENTE (CÍVEL OU TRABALHISTA).

1. Nos termos do art. 114 da Constituição Federal (com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004), compete à Justiça do Trabalho o processamento e o julgamento das ações reparatórias de danos materiais, morais e estéticos oriundos de acidentes de trabalho ou moléstias profissionais.

2. Nesse sentido, pacificou-se o entendimento nesta Corte de que a pretensão referente à reparação por danos material e moral oriundos de infortúnios do trabalho caracteriza-se como direito eminentemente trabalhista, atraindo a incidência do art. 7º, XXIX, da Constituição Federal, com a aplicação das regras de transição, conforme a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Conflito de Competência nº 7.204-1, publicada em 9/12/2005.

3. Contudo, em se tratando de ações propostas pelos sucessores do trabalhador em decorrência de acidente ou moléstia profissional, que se inserem na competência desta Justiça Especial, na conformidade da parte final da Súmula nº 392 do TST, é necessário fazer uma distinção relativamente à natureza do direito pleiteado para efeito de definição da prescrição incidente.

4. Com efeito, distintas são as situações em que os sucessores pugnam na condição de substitutos processuais pelo pagamento de indenização por danos causados ao de cujos no curso da relação de emprego, que poderá vir a integrar seu patrimônio por força de herança, daquelas em que pleiteiam a indenização pelo dano a si mesmos causado em razão do acidente ou moléstia que vitimou seu ente querido (dano reflexo ou em ricochete).

5. Trata-se, no segundo caso, de direito personalíssimo e autônomo dos familiares da vítima, que, embora tenha origem no mesmo evento e, por essa razão, esteja inserido na jurisdição trabalhista, destaca-se do dano sofrido pelo próprio trabalhador, ostentando natureza eminentemente civil, o que atrai a incidência da prescrição prevista no art. 206, § 3º, do Código Civil.

Recurso de embargos conhecido e desprovido. (TST-E-RR-10248-50.2016.5.03.0165, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT, 28.06.18 - destacamos).

Igual posicionamento foi adotado na 3ª Turma do Colendo TST, no julgamento do RR - 46000-42.2008.5.06.0016, “in verbis”:

PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL.  INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL INDIRETO OU EM RICOCHETE. AÇÃO AJUIZADA PELOS GENITORES DA EMPREGADA. ACIDENTE DE TRABALHO. DIREITO PRÓPRIO.  PRESCRIÇÃO CIVIL. (...)

O dano reflexo, indireto ou em ricochete, que concerne a terceira pessoa, origina-se do ato ilícito que causou dano à vítima imediata. Apesar da diversidade dos vínculos que ensejam os direitos da vítima direta e da vítima indireta, o dano reflexo decorre imediatamente do dano principal, possibilitando a pretensão indenizatória. Ademais, a relação entre os genitores e a trabalhadora acidentada possui natureza civil, e não trabalhista. Isso porque a pretensão não se origina na relação de emprego, mas em direito personalíssimo à indenização por dano moral, em razão do acidente da filha, caracterizando o dano em ricochete. Assim, os autores pleiteiam direito próprio.

Nessa esteira, uma vez que a pretensão indenizatória decorre de vínculo de natureza civil, incide a prescrição trienal do art. 206, § 3º, do Código Civil de 2002. No caso concreto, conforme se extrai do acórdão regional, o acidente ocorreu em 8.5.2005. Ajuizada a ação em 7.4.2008, estando o contrato de trabalho em curso, não foi ultrapassado o prazo trienal aplicável, inexistindo prescrição a ser declarada. Recurso de revista conhecido e provido.

(RR - 46000-42.2008.5.06.0016, Data de Julgamento: 30/09/2015, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/10/2015 - destacamos).

Tratando-se a prescrição de um instituto de direito material, afastada a incidência do disposto no art. 7º, XXIX da CR, não há como se divorciar os demais dispositivos aplicáveis às ações de reparação dos danos sofridos pelos familiares de trabalhadores falecidos em acidentes de trabalho, prevalecendo a regra de hermenêutica jurídica, segundo a qual: “Ubi eadem ratio ibi idem jus” (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito).

Tal entendimento possui fundamento na segurança jurídica, no princípio da proteção da confiança legítima (art. 927, §4º, do CPC) e na disposição do art. 926 do CPC, segundo o qual: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Além disso, o disposto no art. 223-B da CLT, ao estabelecer a exclusividade do direito à reparação, acaba por reforçar o argumento, conforme salienta Homero Mateus da Silva: “art. 223-B refere que a vítima é o titular exclusivo para o ajuizamento da ação, de fato, mas isso se nós considerarmos que o evento morte está fora do alcance desses artigos”.[5]

Não se diga que tal reconhecimento afastaria a competência da Justiça do Trabalho, uma vez que, em diversas outras situações, a legislação civil é aplicada exclusivamente em processos ajuizados na Justiça do Trabalho, como no caso da prestação de serviços, sem a existência do vínculo empregatício.

Saliento, inclusive, que o próprio TST também flexibiliza a aplicação das regras de competência territorial nos referidos casos, sendo que, na hipótese de julgamento de dissídio individual movido por viúva e filhos menores de ex-empregado falecido em decorrência de acidente de trabalho, na defesa de direito próprio, admite, excepcionalmente, a fixação da competência territorial pelo foro do local do domicílio dos autores, por aplicação analógica do disposto no art. 147, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diante da ausência de disciplina legal específica na CLT.[6]

 

CONCLUSÃO

Diante do exposto, entendemos que, nas ações em que os familiares do trabalhador falecido postulam indenizações pelos prejuízos de afeição (também denominados: dano reflexo ou em ricochete), não se discute direitos eminentemente trabalhistas, mas sim direitos de natureza civil, originários de atos ilícitos cometidos pelo empregador do de cujus, ainda que de forma indireta ou reflexa, o que atrai a incidência do regramento do Código Civil, com a exclusão das regras contidas no Título II-A da CLT.

Assim, mesmo que acolhida a constitucionalidade das alterações promovidas pela Lei º 13.467/2017, não há que se falar em limitação das indenizações aos patamares previstos no parágrafo primeiro do art. 223-G da CLT, uma vez que, conforme já afirmado, estes se tratam de danos de natureza civil, e não se sujeitam ao referido regramento.

 

 

Notas e Referências

[1] DELGADO, Mauricio Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 144

[2] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. O dano extrapatrimonial trabalhista após a Lei n. 13.467/2017, modificada pela MP n. 808, de 14 de novembro de 2017. Artigo capturado da página: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/127009/2017_oliveira_sebastiao_dano_extrapatrimonial.pdf?sequence=1&isAllowed=y, em 05/04/2019, às 20h38min.

[3] Vide: TST-E-RR-1187-80.2010.5.03.0035, SBDI-I, rel. Min. Brito Pereira, red. p/ acórdão Min. Márcio Eurico Vitral Amaro, 12.5.2016. Informativo TST n. 136.

[4] Ementa: Conflito de competência. Constitucional. Juízo Estadual de primeira instância e Tribunal Superior. Competência originária do Supremo Tribunal Federal para solução do conflito. Art. 102, I, “O”, da CB/88. Justiça Comum e Justiça do Trabalho. Competência para julgamento da ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente do trabalho proposta pelos sucessores do empregado falecido. Competência da Justiça Laboral. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal dirimir o conflito de competência entre Juízo Estadual de primeira instância e Tribunal Superior, nos termos do disposto no art. 102, I, “o”, da Constituição do Brasil. Precedente [CC n. 7.027, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ de 1.9.95] 2. A competência para julgar ações de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho, após a edição da EC 45/04, é da Justiça do Trabalho. Precedentes [CC n. 7.204, Relator o Ministro CARLOS BRITTO, DJ de 9/12/05 e AgR-RE n. 509.352, Relator o Ministro MENEZES DIREITO, DJe de 1º/8/08]. 3. O ajuizamento da ação de indenização pelos sucessores não altera a competência da Justiça especializada. A transferência do direito patrimonial em decorrência do óbito do empregado é irrelevante. Precedentes. [ED-RE n. 509.353, Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 17/8/07; ED-RE n. 482.797, Relator o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe de 27/6/08 e ED-RE n. 541.755, Relator o Ministro CÉZAR PELUSO, DJ de 7/3/08]. Conflito negativo de competência conhecido para declarar a competência da Justiça do Trabalho. (STF. Tribunal Pleno. CC n. 7.545, Rel.: Ministro Eros Grau, DJe 13 ago. 2009)

[5] SILVA, Homero Mateus da. Comentários à reforma trabalhista. 1ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

[6] TST-ERR-86700-15.2009.5.11.0007, SBDI-I, rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, red. p/ acórdão Min. João Oreste Dalazen, 12.11.2015. Informativo TST n. 123.

 

 

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