Tornou-se comum nos Tribunais a discussão sobre a possibilidade de condenação dos entes públicos e das operadoras de plano de saúde ao pagamento de indenização por dano moral em razão da ausência do fornecimento de tratamentos e entrega de medicamentos ou tecnologias não incorporados ao Sistema Único de Saúde - SUS ou não previstos no rol de procedimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS.
O presente texto analisa, resumidamente, esta questão.
No âmbito do Tribunal Regional Federal da 4a Região, que possui competência para o julgamento de processos que envolvem o Sistema Único de Saúde, o entendimento é da ausência, como regra, de possibilidade de condenação dos entes públicos (União, Estados e Municípios) ao pagamento de indenização por danos morais nos casos em que houve negativa do fornecimento de medicamentos e tecnologias não incorporados no SUS.
É o que se conclui da análise das seguintes decisões[1]:
ADMINISTRATIVO. SAÚDE. EXAME COMPLEXO. SUS. UNIÃO E ESTADO-MEMBRO. LITISCONSÓRCIO FACULTATIVO. LEGITIMIDADE PASSIVA. RESSARCIMENTO ENTRE RÉUS. SOLIDARIEDADE. MEDIDA DE CUNHO ADMINISTRATIVO. DANOS MORAIS. DESCABIMENTO. 1. A União, Estados-Membros e Municípios têm legitimidade passiva e responsabilidade solidária nas causas que versam sobre fornecimento de medicamentos. 2. O direito à saúde é assegurado como fundamental, nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal, compreendendo a assistência farmacêutica (art. 6º, inc. I, alínea "d", da Lei n. 8.080/90), cuja finalidade é garantir a todos o acesso aos medicamentos necessários para a promoção e tratamento da saúde; não se trata, contudo, de direito absoluto, segundo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, que admite a vinculação de tal direito às políticas públicas que o concretizem, por meio de escolhas alocativas, e à corrente da Medicina Baseada em Evidências. 3. Em ação de prestação de serviço da saúde, a repartição/ressarcimento dos valores da aquisição do medicamento entre União e o Estado, réus solidários, deverá ser procedida administrativamente, haja vista ser medida de cunho administrativo que não deve ser resolvido na esfera judicial, mas na executiva. 4. Descabe a condenação a título de dano moral pela recusa na realização de exame complexo não padronizado na rede pública de Saúde. Não se configura, nesse caso, descaso do Estado com a saúde da parte autora, mas o cumprimento de políticas públicas pré-estabelecidas. [grifado] (TRF4, APELREEX 5007796-97.2013.404.7001, QUARTA TURMA, Relator LUÍS ALBERTO D'AZEVEDO AURVALLE, juntado aos autos em 15/09/2015)
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE. PROVA PERICIAL. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. 1) O fornecimento de medicamentos excepcionais que não fazem parte dos protocolos clínicos do SUS se sujeitam ao juízo de adequação e necessidade da medicação. 2) Havendo prova pericial produzida por médico especialista atestando a inadequação do medicamento pretendido para o caso da autora, além da existência de alternativas disponíveis na rede pública, é de ser negado o pedido de fornecimento de medicamento excepcional. 2) Descabe a condenação a título de dano moral pela recusa no fornecimento do medicamento de alto custo não padronizado na rede pública de Saúde. (TRF4, AC 5002256-08.2013.404.7215, QUARTA TURMA, Relator CANDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR, juntado aos autos em 14/05/2014)
O fundamento invocado pelo TRF4 parece ser adequado, porquanto a ausência de incorporação do medicamento ou produto, por si só, não pode ensejar dano moral. É que o Estado (o Brasil e qualquer outro país) não possui condições de fornecer tudo o que é produzido pela indústria farmacêutica, diante da inexorável escassez de recursos. Além disso, é necessário demonstrar, também, se esta tecnologia contempla as melhores práticas de evidências científicas, conforme exigido pelo art. 19-Q, §2º, I, da Lei 8080/90.
Assim, não se pode atribuir ao ente público, de plano, a prática de ato ilícito pela inexistência de incorporação da tecnologia e pelo seu não fornecimento. Entendimento contrário implicaria afirmar que a negativa administrativa a qualquer pedido ensejaria a condenação por dano moral, circunstância que causaria extraordinária alteração na teoria da responsabilidade administrativa.
Neste ponto, importante anotar que o art. 37, § 6º, da Constituição, consagra a responsabilidade pelo risco administrativo e não a responsabilidade pelo risco integral.
No que se refere à saúde suplementar, a situação é diferente, pois os Tribunais, em geral, costumam condenar as operadoras de planos de saúde pela prática de ato ilícito que enseja dano moral ao usuário em decorrência do não fornecimento de medicamento ou tecnologia ainda que não constantes do rol de procedimentos das Resoluções da ANS ou previsão contratual.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como regra, admite-se a condenação de operadora de plano de saúde ao pagamento de indenização por dano moral ao consumidor quando a recusa ao tratamento for considerada abusiva.
Neste sentido[2]:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO A PACIENTE COM ANEURISMA CEREBRAL. DANO MORAL. RECUSA INDEVIDA E INJUSTIFICADA. CARACTERIZAÇÃO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. REDUÇÃO. INVIABILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Nas hipóteses em que há recusa indevida de realização de procedimento e/ou fornecimento de medicamento por parte da operadora do plano de saúde para tratamento do segurado, como ocorrido no presente caso, a jurisprudência do STJ é assente quanto à caracterização de dano moral, não se tratando apenas de mero aborrecimento. 2. Somente é possível a revisão do montante da indenização a título de danos morais nas hipóteses em que o quantum fixado na origem for exorbitante ou irrisório, o que, no entanto, não ocorreu no caso em exame. Isso, porque a indenização, arbitrada em R$ 20.000,00, não é exorbitante nem desproporcional aos danos sofridos pela recorrida, que teve negado indevidamente o fornecimento de material essencial à realização de procedimento cirúrgico e de medicamento para tratar enfermidade grave, qual seja, aneurisma cerebral. 3. Agravo interno não provido. [grifado] (STJ, AgRg no REsp 1014906/MA, Relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, j. 03/05/2016, DJe 13/05/2016)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO. DANO MORAL IN RE IPSA. INDENIZAÇÃO ARBITRADA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. Consoante a jurisprudência desta Corte, é abusiva a negativa de cobertura da empresa operadora a algum tipo de procedimento, medicamento ou material necessário para assegurar o tratamento de doenças previstas no plano de saúde. 2. A recusa indevida ou injustificada de tratamento enseja condenação por dano moral, uma vez que agrava a situação de aflição e angústia do segurado, já fragilizado em razão de sua doença. Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. [grifado] (STJ, AgRg no AgRg no AREsp 756252/MS, Relator Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, j. 02/02/2016, DJe 10/02/2016)
Como se observa, há aparente diferença no tema quando se trata da responsabilização dos entes públicos e das operadoras de plano de saúde. Para estes, a regra é haver condenação para pagamento de indenização por danos morais nos casos de não fornecimento de tratamentos, ainda que não contratados. Para a União, Estados e Municípios a regra é inversa. Há justificativa para estes tratamentos diferenciados? Este é o ponto que a sociedade precisa discutir, principalmente, para alcançar-se um equilíbrio nas relações entre usuário e prestadores de serviços e entre cidadão e Estado.
O direito à saúde deve ser concretizado sem excessos e sem abusos. E essa é missão a ser perseguida pela sociedade e pelo Estado.
Notas e Referências:
[1] Outras decisões do TRF4 com o mesmo entendimento: TRF4, AC 5013634-25.2012.404.7205, QUARTA TURMA, Relator LUÍS ALBERTO D'AZEVEDO AURVALLE, juntado aos autos em 02/06/2015; TRF4, AC 5005364-21.2012.404.7202, TERCEIRA TURMA, Relator NICOLAU KONKEL JÚNIOR, juntado aos autos em 20/03/2015; TRF4, APELREEX 5027217-67.2013.404.7100, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 30/01/2015; TRF4, APELREEX 5002350-83.2013.404.7205, TERCEIRA TURMA, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 23/10/2014; TRF4, APELREEX 5008539-17.2012.404.7204, TERCEIRA TURMA, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 25/09/2014; TRF4, AC 5001062-74.2011.404.7107, TERCEIRA TURMA, Relator FERNANDO QUADROS DA SILVA, juntado aos autos em 31/07/2014.
[2] AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. AGRAVANTE QUE NÃO REBATE OS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 283 E 284 DO STF. MODALIDADE AUTOGESTÃO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. SÚMULA 469/STJ. NEGATIVA DE PROCEDIMENTO DE DOENÇA PREVISTA CONTRATUALMENTE. CLÁUSULA ABUSIVA. SÚMULA 83/STJ. DANO MORAL. RECUSA INJUSTIFICADA. CARACTERIZAÇÃO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. RAZOÁVEL. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A agravante não rebateu de forma específica e suficiente a fundamentação adotada pelo Tribunal estadual, o que atrai, na hipótese, a incidência, por analogia, das Súmulas 283 e 284 do Supremo Tribunal Federal. 2. A jurisprudência desta Corte já firmou entendimento de que a relação de consumo caracteriza-se pelo objeto contratado, no caso a cobertura médico-hospitalar, sendo irrelevante a natureza jurídica da entidade que presta os serviços, ainda que sem fins lucrativos, quando administra plano de saúde remunerado por seus associados. Aplica-se, portanto, a Súmula 469 do STJ. 3. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que, havendo cobertura para a doença, consequentemente deverá haver cobertura para procedimento ou medicamento necessário para assegurar o tratamento de doenças previstas no referido plano. Incidência da Súmula 83/STJ. 4. Nas hipóteses em que há recusa injustificada de cobertura por parte da operadora do plano de saúde para tratamento do segurado, como ocorrido no presente caso, a orientação desta Corte é assente quanto à caracterização de dano moral, não se tratando apenas de mero aborrecimento. 5. Não se mostra exorbitante a condenação da recorrente no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a título de reparação moral decorrente dos danos sofridos pelo agravado em decorrência de recusa à realização de exame por alegada ausência de cobertura contratual. 6. Agravo interno a que se nega provimento. [grifado] (STJ, AgRg no AREsp 718634/DF, Relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, j. 01/12/2015, DJe 16/12/2015)
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