Da Violência das Ruas à Violência Institucionalizada: Quando a Exceção torna - se Regra

07/11/2015

Por Alfredo Copetti Neto e Linckse Bianca Ramires - 07/11/2015

A Constituição da República Federativa do Brasil já no seu artigo 1º trouxe como alicerce o Estado Democrático de Direito, através do qual se tornou possível definir as regras básicas para o progresso da nação, bem como a proteção dos direitos e garantias fundamentais.

Neste novo cenário pôde-se vislumbrar a proteção do indivíduo em relação ao Estado e à própria sociedade, uma vez que trouxe consigo a defesa da democracia, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e da liberdade como meio de efetivar o bem estar social.

No entanto, todo este aparato de normas trazido pela carta política vigente se vê ameaçado diante da atual relação estabelecida entre o Direito e o indivíduo no Estado, em face da cadente fragilização quotidiana do cenário social.

Dentre os problemas enfrentados pela sociedade atual, o que merece destaque neste momento é a chamada justicialização privada, e, aqui, a vemos como intensificação dos casos de justiça com as próprias mãos, a qual coloca à tona a questão da legitimidade das normas jurídicas e os desafios que uma sociedade  orfã enfrenta quando escolhe viver sob a égide do direito.

No início da década de 1990, Caetano Veloso compôs uma música da qual se extrai o seguinte verso: “A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores”. [1] Passados mais de vinte anos o verso tem se concretizado mostrando a miséria de uma sociedade composta por linchadores denominados por muitos como justiceiros, legitimados a promover a “limpeza social”.

Cada vez mais as situações de linchamentos têm tomado conta dos noticiários do País, como no caso do adolescente que foi acorrentado nu a um poste no bairro do Flamengo e teve sua orelha cortada e marcas de espancamento por todo o corpo, após ter sido acusado de praticar furtos na zona sul carioca. Outro caso que merece destaque é o da dona de casa Fabiane Maria de Jesus que foi violentada no litoral de São Paulo e morreu após ser linchada por um grupo de populares de uma comunidade do Guarujá em razão de ter sido confundida com um retrato falado de outra mulher suspeita de sequestrar crianças para rituais de magia negra.

O Professor de história André Luis Ribeiro faz um relato sobre a onda de violência no ano de 2014 e, segundo ele, desde o caso do adolescente amarrado no poste até a morte de Fabiana Maria de Jesus foram noticiados mais de 50 casos de linchamentos, o que revela a intolerância popular e as cenas bárbaras que fazem vítimas por todo o País.

Os linchamentos expressam a crise existente entre o povo e o poder, entre a sociedade e o Estado, entre o real e o legal. Como valor de justiça, encontra-se em conflito com a justiça estatal e seus mecanismos próprios de resolução pública de conflitos. Este fenômeno trágico, de modo geral, traduz a insegurança em relação à proteção que a sociedade deve(ria) receber do Estado, quando este não se mostra capaz de cumprir com suas funções constitucionais. Isto porque quando são praticados linchamentos se torna evidente o julgamento da justiça legal pela justiça popular e, de acordo com José de Souza Martins (2015, p. 27) “o linchamento não é uma manifestação da desordem, mas de questionamento da desordem”. Assim, a população lincha para punir, mas, sobretudo para manifestar o descontentamento com as alternativas apresentadas pelo Estado.

A busca pela justiça além dos limites estabelecidos por lei desfaz a ordem social e faz com que o homem retroceda a seu estado de natureza (Hobbes) através de um processo que confronta a própria estrutura do Estado Democrático de Direito e que em muito se assemelha as abomináveis condenações da Inquisição ao longo do período colonial, porquanto retiram do indivíduo infrator todos os direitos e garantias trazidos pela Constituição Federal de 1988: um aporte à vida nua (Agamben).

Com efeito, a prática de linchamento revela aspectos significativos no quadro da violência contemporânea, e o que não se pode olvidar é a relação destas condutas à incorporação de métodos mais violentos pelo Estado, representado por determinadas polícias que empreendem violência e a repassam, a custo zero. É claro que é de fundamental importância a atuação de uma polícia responsável, ainda mais nesses momentos de desordem social, no entanto, o cenário atual revela a atuação arbitrária e desenfreada dos agentes estatais incumbidos do combate à violência.

Nessa esteira, é de se preocupar não somente com o indivíduo que adere a violência como forma de resolução de litígio, mas também com o exemplo que o Estado, através de seus agentes públicos, tem dado à sociedade, visto que ao invés construir pontes democráticas de compreensão política e punição adequada  aos possíveis grupos de linchadores, prefere fomentar o anseio punitivo através de uma lógica que acredita que somente com a violência – seja por pessoas ou seja por instituições – é possível resolver conflitos.

O índice de violência por parte do Estado aponta que alguns setores da sociedade também estão dispostos a matar com as próprias mãos, tanto os linchamentos quanto os massacres revelam a recriação anômica da sociedade e confirma que “[...] o modo como a coisa foi feita constitui o recado certeiro às autoridades e ao povo de que temos governo, mas não tanto, temos polícia, mas não tanto, temos justiça, mas não tanto. ” (MARTINS, 2015, p. 129).

O constante desencontro entre a carta constitucional e a prática, sugere uma realidade triste e aterrorizante que se concretiza na forma que o Estado se impõe perante a sociedade, estabelecendo-se através de um modelo de exceção usado como paradigma de governo da política contemporânea.

O conceito jurídico de estado de exceção aponta um mecanismo político e antidemocrático, utilizado, temporariamente, para suspender o Estado de Direito a fim de restabelecer a ordem institucional. Nessa situação o Poder Executivo pode, desde que dentro dos limites constitucionais, tomar atitudes que limitem os direitos das pessoas. Assim, o estado de exceção representa uma zona de risco à supremacia dos direitos fundamentais e as funções essências do Estado Democrático de Direito.

A exceção, que já está virando regra, gira em torno da relação entre direito/política e soberania/democracia, isto porque é comum que tanto o direito como a democracia estejam a mercê do soberano (Estado) que não se mostra preocupado com a sociedade em si, mas sim com a política consubstanciada na forma de manutenção do poder e de tal forma recorre constantemente a este instituto de exceção, confirmando, assim, o pensamento de Carl Schmitt ao dizer que “soberano é aquele que governa em estado de exceção – Ausnamezustand”.

Este espaço de anomia – onde tem lei, mas não tem – pode ser visualizado em todos os regimes de característica ditatorial que tem por objetivo legitimar a suspensão dos direitos das pessoas e, assim, instaurar a força imperativa do Estado para posteriormente retornar ao Estado Democrático de Direito.

Foi na Alemanha, durante a passageira República de Weimar, que a democracia se viu ameaçada pelo estado de exceção e deu espaço para um regime totalitário marcado pela teoria de Carl Schimit sobre a soberania no estado de exceção, uma vez que a República Alemã por meio de declaração do estado de exceção promulgou mais de 250 decretos de urgências que serviram para prender militantes comunistas e instituir tribunais especializados em decretar condenações á pena de morte (AGAMBEN, 2004).

O professor Gilberto Bercovici (2004) insinua que a análise de Carl Schimit e a proposta do estado de exceção representam as relações contemporâneas entre o Estado e economia, isto porque há um predomínio da classe que controla o capital sobre as demais, o que demonstra um enfraquecimento da estatalidade.  Sugere, ainda, que “a ditadura política foi substituída pela ditadura econômica dos mercados” e que em razão da desestruturação do Estado esse modelo de emergência tem cada vez mais tomado espaço nos países democráticos contemporâneos e tende, infelizmente, a tornar a exceção como regra.

É diante deste panorama de crise econômica e social que o Estado se impõe de maneira repressiva e arbitrária sob a justificativa de preservar a ordem nacional e com isso excita cada vez mais os anseios violentos dos membros da sociedade. E, como se sabe, são os fracassos da política e da democracia como alternativa à violência que determinam o uso da força e da repressão como mecanismo de gestão de conflitos.” (CARVALHO, 2005, p. 15).

Com efeito, a questão da violência, seja ela privada ou institucional, vai muito além de um fato social e se aloja no contexto político do Estado, visto que a vinculação subjacente entre a violência e o direito é instalada na ausência da lei, ou melhor, na suspensão dela.

Nesta linha, a conduta do justiceiro se mostra como reflexo do Estado no qual está inserido e de toda a violência que acompanha a sua história, eis que existe um conjunto de concepções sobre segurança que está intimamente ligada a cultura da punição, caracterizada pelo emprego da dor, encarceramentos em massa e punições que violam os direitos humanos.

A permanência do estado de exceção revela-se absolutamente perigosa, porquanto anula o estado jurídico do indivíduo em favor da autoridade soberana e o coloca numa linha tênue que se forma entre a democracia e o totalitarismo.

A manutenção dessas medidas excepcionais usadas pelo Estado como paradigma de governo é incompatível com o atual Estado Democrático de Direito e, sem seu exercício sistemático, pode levar a sua extirpação.


Notas e Referências:

[1] VELOSO, Caetano. (1991) O cu do mundo. Em Circuladô [CD]. Rio de Janeiro: Poly Gram.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.

CARVALHO, Thiago Fabres de. O direito penal do inimigo e o direito penal do homo sacer da baixada. Revista de Estudos Criminais. Sapucaiada do Sul, 2005.

MARTINS, José de Souza. Linchamentos: A justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.


alfredo  .

Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS. .

                     

Linckse Bianca Ramires

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Linckse Bianca Ramires é Graduanda em Direito  UNIVEL – Faculdade de  Ciências     Sociais Aplicadas de Cascavel.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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