Da vedação ao livramento condicional e o pacote anticrime

04/03/2021

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário 

No apagar das luzes do ano de 2019, o Governo Federal publicou a Lei nº 13.964/2019, alcunhada de “Pacote Anticrime”, em uma clara demonstração de uso prático do direito penal simbólico. Uma lei extensa, que promoveu mudanças em diversas esferas do nosso sistema jurídico penal e processual penal.

Dentre as múltiplas alterações implementadas, algumas mereceram maior destaque (tanto no meio jurídico, quanto por parte da mídia) e geraram grandes debates: como foi o caso da criação da figura do juiz de garantias, da regulamentação das audiências de custódia, e – especificamente no que diz respeito à execução penal – dos novos lapsos temporais para a obtenção da progressão de regime de cumprimento de pena.

E assim, em meio a assuntos que geraram tamanha comoção, outros tantos, com efeitos práticos muitas vezes mais perversos, não conquistaram a mesma atenção. Pois é: há muito mais no pacote anticrime do que pode supor nossa vã análise!

Este artigo pretende jogar luz sobre um tema que, para muitos, passou despercebido: a ampliação e reforma das hipóteses de vedação à concessão judicial de livramento condicional.

Sem embargo do questionamento que se faz sobre a constitucionalidade de tal proibição, é de se anotar que esta prática já vem regulamentada no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 1990, quando a Lei nº 8.072/1990 (que trata dos crimes hediondos) incluiu o inciso V, no artigo 83, ao Código Penal, passando por sua primeira ampliação em 2006, com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas).

Atualmente, encontra-se o impedimento para a obtenção do livramento condicional em três leis brasileiras: no Código Penal, na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) e na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984, com redação dada pelo pacote anticrime).

Partindo de uma análise cronológica, é intuitiva a percepção de que a mens legis aponta para uma oposição direcionada aos indivíduos que tenham sido condenados pela prática de crimes considerados especialmente graves na nossa ordem social.

Para isso, é suficiente verificar que a vedação ao livramento condicional foi inserida pela primeira vez pela Lei nº 8.072/1990, que trata justamente dos crimes classificados como hediondos.

Foi a partir da publicação da referida norma que o art. 83, do Código Penal, ganhou o seu quinto inciso, que na parte final trata de proibir a concessão do livramento condicional ao apenado “reincidente específico” em crimes hediondos ou a eles equiparados (tortura, tráfico ilícito de drogas, tráfico de pessoas e terrorismo).

Portanto, é de fácil conclusão que a proibição estava limitada aos sentenciados reincidentes específicos em delitos hediondos ou equiparados. Redação clara do Código Penal.

Nota-se, desta maneira, que o legislador optou pela conjugação necessária de dois fatores para legitimar a vedação à concessão judicial do direito. O primeiro, representado por uma característica pessoal do condenado (a reincidência específica), e outro limitando a norma proibitiva a determinados tipos penais (crimes hediondos ou a eles equiparados).

Com o tempo, veio a primeira mudança em torno do tema. Além do codex punitivo brasileiro, a Lei 11.343/06 (lei de drogas) também passou a prever vedação ao livramento condicional para alguns de seus tipos penais. A sistemática anteriormente adotada foi mantida (conjugação de um fator de ordem pessoal com um outro restritivo a determinados tipos penais), ampliando-se, todavia, as hipóteses abrangidas pelo impedimento, inclusive para crimes não hediondos ou equiparados.

Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de ‘sursis’, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Parágrafo único. Nos crimes previstos no ‘caput’ deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.

É importante apontar que, entre o Código Penal e a Lei de Drogas, não se identifica qualquer desequilíbrio normativo. Não há conflito (real ou sequer aparente), uma vez que a norma mais nova (lei de drogas) não contrariava o comando do Código Penal, sendo igualmente válido o inverso.

Na lição de Francisco de Assis Toledo, dá-se o conflito aparente quando “entre duas normas penais em foco, existe uma certa relação de hierarquia, de modo que a aplicação de uma esgota a punição do fato, excluindo a aplicação cumulativa da outra. O concurso de normas não existia, em verdade, era só aparente”.[1]

Assim, não havendo esgotamento do regramento proibitivo com a entrada em vigor da lei mais nova, restou de plena validade a coexistência das duas previsões legais.

Vale dizer, a Lei de Drogas, posterior e específica, ao mesmo passo que manteve o proibicionismo à concessão do livramento condicional aos reincidentes específicos na figura do tráfico, ampliou o rol de delitos impedidos.

A hipótese que se levanta neste artigo surge, portanto, com a mais recente alteração trazida ao tema, com a nova redação dada ao art. 112 da Lei de Execução Penal.  Apesar de, na base, o dispositivo tratar dos lapsos para a obtenção do direito à progressão de regime, o pacote tratou, de maneira astuciosa, das vedações ao livramento condicional. E, com isso, finalmente, trouxe um direito essencialmente execucional penal para dentro da lei especial.

Os impedimentos, então, a partir da vigência da Lei nº 13.964/2019, passaram a contar com duas novas hipóteses (art. 112, inc. VI, “a” e inc. VIII). Não podem obter livramento condicional os: a) condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se forem primários; b) condenados reincidentes em crime hediondo ou equiparado com resultado morte.

Feito esse esboço inicial, podemos dizer que até a superveniência da aprovação, publicação e vigência do pacote anticrime (23/01/2020), não havia, em nossa visão, conflito (nem mesmo aparente) entre normas penais: o art. 83, inciso V, parte final, do Código Penal e o art. 44 da Lei de Drogas eram, na verdade, complementares. Previam vedação irrestrita à concessão do direito aos apenados reincidentes em delitos hediondos, equiparados a hediondos e delitos específicos da lei de drogas (por exemplo: ao reincidente específiio no delito de associação para a prática do tráfico de drogas - art. 35, Lei 11.343/06).

Todavia, o mesmo não se pode dizer em relação à nova redação dada ao artigo 112 da Lei de Execução Penal. Isso porque, ao contrário do que ocorreu antes, as novas hipóteses não são complementares àquelas já existentes, mas sim contraditórias e restritivas em relação a elas. Significa dizer que não é possível aplicá-las todas simultaneamente.

A nova redação dada à Lei de Execução Penal – no que concerne às hipóteses de vedação ao livramento condicional – rompeu, completamente, com a formatação mantida pelo Código Penal e pela Lei 11.343/06. A composição normativa insculpida neste diploma legal é clara ao restringir a proibição aos delitos hediondos ou equiparados, mas com resultado morte, independente se primário ou reincidente o seu autor/apenado.

Desta maneira, havendo conflito de normas penais, deve ser resolvido por um dos critérios já sedimentado pela doutrina (consunção, especialidade, subsidiariedade ou alternatividade). Neste caso específico, pela aplicação do princípio da especialidade: a norma especial prevalece sobre a norma geral.

Fácil de se observar, portanto, que, in casu, deve prevalecer a aplicação da Lei de Execução Penal (especial) em relação ao Código Penal e à Lei de Drogas: ambas gerais em matéria de execução penal.

O livramento condicional tem natureza exclusiva de execução penal e seu locus sempre deveria ser na Lei 7.210/84. Neste sentido, a conclusão de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli: “[O livramento condicional] representa a última etapa de um regime progressivo de execução penal. Faz parte da execução da pena, sendo, pois, uma forma de cumprimento da pena”.[2]

Solucionada, então, a questão do conflito aparente entre as mencionadas normas penais, no que tange à vedação ao livramento condicional, conclui-se que, atualmente, apenas duas são as hipóteses proibitivas. E são aquelas elencadas pelo novel art. 112, da LEP: indivíduos condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados, com resultado morte, independentemente de sua primariedade ou reincidência.

É importante sublinhar, desta maneira, que, em nosso sentir, não está mais vedada a concessão do livramento condicional às pessoas condenadas pela prática de crime hediondo ou equiparado, sem resultado morte e àquelas condenadas pela prática dos delitos não hediondos previstos na Lei de Drogas.

E são diversos os delitos hediondos ou equiparados sem resultado morte. Assim, a conclusão acima descrita nos leva a uma segunda atenção: a aplicação da lei penal no tempo. Esta nova regra, que se aplica de ora em diante, deverá retroagir para abrigar casos pretéritos?

Acreditamos que sim! Nota-se que se está diante da superveniência de lei mais favorável, em virtude de redução do espectro de ataque do Direito Penal, cuja ocorrência reclama a pronta intervenção do direito/garantia constitucional, prevista no art. 5º, inciso XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

Por todo o exposto, em nossa visão, as normas proibitivas à concessão do livramento condicional ficaram reduzidas às seguintes hipóteses e consequências temporais - art. 112, inciso VI, alínea ‘a’ e inciso VI, LEP.

i - autor primário de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte: somente aplicável para os crimes praticados a partir de 23/01/2020, uma vez que se trata de norma prejudicial, já que nunca houve vedação de concessão de livramento condicional aos condenados primários, em nosso ordenamento.

ii - autor reincidente específico em crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, seja antes ou depois de 23/01/2020: continua proibida a concessão de LC, desde o impedimento do art. 83, inciso V, parte final do CP e inclusão do respectivo delito no rol dos crimes hediondos (por exemplo, o homicídio qualificado, que só integraria o rol da Lei 8.072/90 com a edição da Lei 8.930/1994).

iii - revogação da previsão do art. 44 da Lei 11.343/06 (drogas) por não conter delitos desta natureza (hediondo ou equiparado, com resultado morte).

iv - revogação da parte final do art. 83, inciso V do Código Penal, uma vez que a proibição ao livramento só passa a atingir autores reincidentes específicos em crimes hediondos ou equiparados, com resultado morte.

A corroborar o exposto, o Superior Tribunal de Justiça jogou luz sobre a interpretação, em algumas oportunidades, acerca da questão envolvendo a nova aplicação da progressão de regime para crimes hediondos e equiparados (art. 112, incisos V e VII, da Lei de Execução Penal – lapso de 40% ou 60%). Deixou claro que a nova redação distingue reincidência genérica e específica, devendo retroagir para beneficiar os sentenciados, entendimento que deve ser seguido para as hipóteses de vedação ao livramento condicional.

Por todos, destaca-se votação unânime, que não deu provimento a Agravo Regimental, interposto pelo MPF.

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROGRESSÃO DE REGIME. PLEITO DE RETIFICAÇÃO DO CÁLCULO DA PENA. ART. 112, VII, DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL (INCLUÍDO PELA LEI N. 13.964/2019). PACOTE ANTICRIME. REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA EM CRIME HEDIONDO. NÃO APLICAÇÃO. APENADO CONDENADO POR CRIME HEDIONDO E REINCIDÊNCIA NÃO ESPECÍFICA. OMISSÃO LEGISLATIVA. ANALOGIA IN BONAM PARTEM. APLICAÇÃO DO INCISO V. DO ART. 112 DA LEP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL VERIFICADO. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Firmou-se nesta Superior Corte de Justiça entendimento no sentido de que, nos termos da legislação de regência, mostra-se irrelevante que a reincidência seja específica em crime hediondo para a aplicação da fração de 3/5 na progressão de regime, pois não deve haver distinção entre as condenações anteriores (se por crime comum ou por delito hediondo) 2. Ocorre que a alteração promovida pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) no art. 112 da Lei de Execuções Penais, ao estabelecer novos lapsos para a progressão de regime, deixou de abranger a situação característica do paciente (condenado por crime hediondo e reincidente não específico). 3. Não há como aplicar de forma extensiva e prejudicial ao paciente o percentual de 60% previsto no inciso VII do art. 112 da LEP, que trata sobre os casos de reincidência de crime hediondo ou equiparado, merecendo, ante a omissão legislativa, o uso da analogia in bonam partem para aplicar o percentual de 40%, previsto no inciso V. (STJ - Agravo regimental improvido no HABEAS CORPUS Nº 630.508 – SP. 02 de fevereiro de 2021).[3]

Reescrevendo o voto transcrito, para adequação ao presente texto, pode-se asseverar: a alteração promovida pela Lei 13.964/2019 (pacote anticrime), no art. 112 da Lei de Execução Penal, ao estabelecer que somente haverá vedação ao livramento condicional para autores/condenados por crimes hediondos ou equiparados, com resultado morte, deixou de abranger os demais delitos hediondos ou equiparados, bem como aqueles previstos pela Lei 11.343/06.

Finalmente, destaque-se que todo o esforço interpretativo feito nestas linhas deriva da estrita avaliação das hipóteses de vedação à concessão do livramento condicional insertas em nosso sistema jurídico penal por lei, e amplamente aceitas na prática da execução penal.

Todavia, deixamos em aberto a discussão sobre a constitucionalidade e a legalidade de tal prática proibicionista ao LC, apontando-se violação ao princípio da individualização da pena, da vedação ao caráter perpétuo das reprimendas e da derrogação tácita ocorrida com a possibilidade de progressão ao regime aberto aos delitos hediondos e equiparados (direito mais amplo).

 

Notas e Referências

[1] Assis Toledo, Francisco de. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. 15ª tiragem. Ed. Saraiva. Saulo Paulo: 2010.

[2] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte geral. 12ª ed. rev. e atual. Ed. Revista dos Tribunais. Saulo Paulo: 2018.

[3] “Acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Documento: 2018231 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/02/2021 Página 1 de 5 Superior Tribunal de Justiça Palheiro, Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro Relator. MINISTRO ANTONIO SALDANHA PALHEIRO - Presidente. MINISTRO NEFI CORDEIRO - Relator)

 

Imagem Ilustrativa do Post: woman in gold dress // Foto de: Tingey Injury Law Firm // Sem alterações

Disponível em: https://unsplash.com/photos/L4YGuSg0fxs

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura