Da Vedação à Obrigação de Autoincriminar-se. O Investigado como Sujeito de Direitos que devem ser Preservados já na Fase Antejudicial

05/04/2018

Estas mui breves reflexões são traçadas com base em casuística onde se verificou violação da garantia constitucional do Princípio da não autoincriminação. Conforme restará evidenciado, em casos como o que ora se discute, não há falar que eventuais vícios ocorridos nos atos investigativos não teriam o condão de causar nulidade à ação penal. Pois, afinal, sem a confissão extrajudicial viciada, a denúncia ministerial sequer teria sido oferecida, nem o processo teria nascido em desfavor da ré: 

Eis que determinada senhora, autora de requerimento de benefício previdenciário suspeito de fraude – portanto, suspeita de cometimento do crime de estelionato previdenciário, sendo assim potencial acusada, denunciada, fora ouvida pela autoridade policial durante o Inquérito, por meio de Termo de Declaração, e, nessa condição, não sendo advertida do seu direito constitucional ao silêncio, confessou extrajudicialmente que “mentira ao INSS”. Ato contínuo, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra a referida senhora, unicamente baseada na confissão extrajudicial, restando a denúncia aceita pelo respectivo Juízo. 

Neste ponto, a fim de melhor descortinar o contexto fático e a própria natureza jurídica da oitiva da então suspeita, salutar trazer à baila algumas passagens do depoimento prestado pela autoridade policial que presidiu o ato de oitiva, o referido Delegado fora arrolado como testemunha pela Defesa, e forneceu as seguintes informações: 

“(...) estávamos ali apurando um pedido que ela fez no INSS (...) e aí o meu entendimento é o de que eu tinha que colher todas as informações para o Ministério Público decidir se processaria também os beneficiados ou não. (...) Lógico que essas pessoas beneficiárias, a depender da situação poderiam ser denunciadas pelo Ministério Público ou não.” 

Ora, simples conhecimento do vernáculo elementar, bem como do linguajar que se emprega nas investigações preliminares policiais, não permite dúvida de que “apurando” é aí sinônimo de “investigando”.  Ou seja, está claro que a aludida senhora, na referida ocasião, fora ouvida na qualidade de investigada. 

Sendo assim, note-se que cabia ao Delegado de Polícia garantir os direitos fundamentais da pessoa ouvida sob os seus cuidados. É dizer, a autoridade policial presidente do ato, no momento da oitiva da autora do requerimento de benefício previdenciário suspeito, tinha que se autoindagar se sua decisão de inqueri-la, sem lhe informar do seu direito ao silêncio, poderia causar prejuízo ao bem jurídico liberdade dessa pessoa. 

Todavia, no caso em tela, deu-se o contrário: a depoente não foi cientificada do seu direito de não autoincriminar-se, e acabou prestando confissão extrajudicial, eivada de ilegalidade, que resultou, tristemente, em subsídio para que o Ministério Público denunciasse a confitente. Ademais, certamente, não era lícito à mencionada autoridade policial violar garantias individuais sob a desculpa de que caberia ao Ministério Público, ao cabo, promover a denúncia ou não. 

Outrossim deve-se sublinhar que o fato de a autora do requerimento suspeito de benefício previdenciário não se encontrar formalmente indiciada, quando da ocasião da sua oitiva, é irrelevante para fins de qualquer tentativa de justificação de violação de garantia constitucional. Afinal, a questão crucial aqui não é se a requerente, quando da confissão extrajudicial, já estava indiciada ou não nos autos do Inquérito. 

Ao revés, a questão relevante a ser considerada, neste caso concreto, é a afronta, a patente violação de garantia constitucional, que causou prejuízo à suspeita/denunciada/processada, pois, devido a sua confissão extrajudicial, inegavelmente instigada pela omissão da citada autoridade policial, resultou denunciada, passando a responder a processo crime. 

Desse modo, no exato momento, ao longo da oitiva, em que o delegado percebeu que a depoente poderia confessar algo que pudesse significar autoincriminação, seu dever era tê-la alertado, imediatamente, do direito ao silêncio. Contudo, a autoridade policial assim não procedeu, admitindo-o nos autos, inclusive, com todas as letras: “(...) não alertei formalmente do direito ao silêncio, não”, e o resultado dessa violação constitucional é que a pessoa se autoincriminou. 

Assim, no caso em tela, a produção da “prova”, em sede de investigação preliminar, não obedeceu aos limites legais e constitucionais. Os direitos constitucionais da ré não foram observados. Porém, sabe-se que:

 

“O due process of law, na qualidade de cláusula pétrea constitucional  - que visa assegurar a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas de agentes a serviço do Poder Público -, possui no alicerce normativo de inadmissibilidade das provas ilícitas um de seus focos mais perceptível e concreto, em razão de o sujeito que se vê como objeto de uma consequência penal, ter o inafastável direito de não ser denunciado, julgado ou condenado com base em elementos probatórios trazidos aos autos quando angariados ou produzidos de maneira inadequada ou se sobrepondo aos limites que são vedados, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório judicial ou extrajudicial do Estado” (DAURA, 2011, p. 45). 

Bem assim, pois “A verdade não é o fim último do processo penal e, sua busca não pode se dar a partir de uma premissa de que os fins justificam os meios” (BADARÓ, 2016, p. 385). 

É que além de limites epistemológicos, há limites legais que podem e devem ser impostos quanto à investigação das fontes de provas, quanto à admissão e produção dos meios de provas, e, em alguns casos, quanto à própria valoração da prova. Basta pensar na vedação da utilização de provas ilícitas ou produzidas com violação de princípios que neguem o justo processo, para perceber, claramente, que é inadmissível uma ilimitada busca da “verdade material”. Sendo sempre oportuna, nesta trilha, a lição de Antônio Scarance: 

“A proteção do indivíduo é uma razão inversamente proporcional à tolerância do direito com violações de garantias na persecução criminal, na busca incessante de “equilíbrio” entre o ideal de segurança pública e a imprescindibilidade de se resguardar o indivíduo em seus direitos fundamentais” (FERNANDES, 2010, p. 19). 

No mesmo sentido, o magistério de Eugênio Pacelli: “Mais que uma afirmação de propósitos éticos no trato das questões do Direito (...) a vedação das provas ilícitas atua no controle da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua produção. Nesse sentido, cumpre função eminentemente pedagógica, ao mesmo tempo em que tutela determinados valores reconhecidos pela ordem jurídica” (OLIVEIRA, 2011, p. 344). 

Outrossim merece destaque a essencial ponderação de Renato Brasileiro de Lima: “Seria de todo contraditório que, em um processo criminal, destinado à apuração da prática de um ilícito penal, o próprio Estado se valesse de métodos violadores de direitos, comprometendo a legitimidade de todo o sistema punitivo, pois ele mesmo estaria se utilizando do ilícito penal” (LIMA, 2016, p. 608). 

Bem por isso, acertadíssima a doutrina do nobre Delegado de Polícia Federal de São Paulo, Anderson Souza Daura: “Assim, percebe-se que a existência do princípio do devido processo legal visa garantir aos membros da sociedade, quando investigados, contra os eventuais arbítrios do poder estatal. Tal garantia vige como freio aos poderes persecutórios do Estado, e, neste contexto, tal prova, obtida por meio ilícito, só se torna vedada quando utilizada em desfavor do particular, ou seja, quando o Estado a produz ou se beneficia dela, em termos processuais.” (DAURA, 2011, p. 44). 

E em brilhante passagem, o mesmo DAURA identifica o cerne da questão: “(...) impingindo a observância mais ampla do princípio do devido processo legal, já na fase antejudicial chamada inquérito policial (...) o investigado não pode ser tido simplesmente como objeto da investigação, mas sim, como agente de direitos que devem ser preservados mesmo nessa fase inquisitorial” (DAURA, 2011, p. 18). 

E é justamente por se impingir a observância mais ampla do princípio do devido processo legal, já na fase antejudicial, chamada inquérito policial, que em qualquer inquirição de testemunha na fase pré-processual, que, em face das circunstâncias, ainda que, repentinamente, assuma a condição de suspeita, o direito ao silêncio é garantia incondicional que lhe assiste, devendo ser manifestada pela autoridade policial. 

Nesse sentir, o consagrado registro de Paulo Mário Trois Neto: “O direito à não autoincriminação tem fundamento mais amplo do que o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. Em verdade, o direito é derivado da “união de diversos enunciados constitucionais, dentre os quais o do art. 1º, III (Dignidade humana), o do art. 5º, LIV (Devido Processo Legal), do art. 5º, LV (Ampla Defesa), e do art. 5º, LVII (Presunção de Inocência)” (TROIS NETO, 2011, p. 104).

E prossegue o reconhecido doutrinador gaúcho: “É por isso que a proteção contra a obrigatoriedade da autoincriminação constitui, hoje, um dos aspectos centrais sobre como o indivíduo deve ser tratado em uma determinada organização jurídico-social” (TROIS NETO, 2011, p. 199-200). 

Desse modo, o Ordenamento Jurídico brasileiro (Constituição da República de 1988, art. 5º, inciso LXIII, c/c arts. 8º.1 e 8º.2, “g”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, c/c arts. 186, parág. único, e 214  do Código de Processo Penal pátrio) assegura como norma de garantia o Princípio da não autoincriminação, pressupondo o deslocamento do suspeito/investigado/acusado como mero objeto da investigação/acusação penal para a condição de sujeito de direitos, com presumida inocência. 

Trata-se de corolário da manifestação e realização da ampla defesa. O princípio da inexigibilidade de autoincriminação (nemo tenetur se detegere, na expressão latina), como garantia judicial da liberdade pessoal, encontra-se explicitado, como se disse, sobretudo, no art. 8º.2, “g” do citado Pacto de San José da Costa Rica, como sendo o direito que qualquer pessoa investigada ou acusada criminalmente tem de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem declarar-se culpada. E, por evidente, o escopo de tal garantia é evitar excessos na investigação ou na formulação da investigação criminal. 

Afinal, sendo a investigação, função importante e exclusiva do Estado, não se pode exigir, de quem quer que seja, qualquer obrigação jurídica de contribuir para as investigações/acusações penais formuladas. Sob pena de grave e absoluta violação à garantia da ampla defesa e do Devido Processo Penal Legal (e, sim, mesmo que a violação ao nemo tenetur se detegere tenha se dado em ato da fase antejudicial!). 

Bem nesse espírito, os países democráticos em geral reconhecem o direito ao silêncio, onde o implicado é prontamente advertido do direito de não fazer declarações autoincriminadoras. O art. 38 da Constituição japonesa, p. ex., veda que pessoas implicadas testemunhem contra si. 

Já em perfeita consonância com tal visão democrática, garantista e civilizada, o Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), na Ordem constitucional-penal, vem dando repercussão significativa ao direito ao silêncio, como se pode depreender do quanto consubstanciado em alguns dos seus julgados. 

Cite-se: HC 68.929, de 22-10-1991, da Relatoria do Ministro Celso de Mello; HC 78.708, da Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (no qual se alegou que acarretaria nulidade das provas obtidas a omissão quanto à informação ao preso ou interrogado do seu direito ao silêncio no momento em que o dever de informação se impõe). 

Vide outrossim: HC 80.949, Relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, DJe de 14-12-2001; HC 94.601/CE, da Relatoria do Ministro Celso de Mello, DJe 11.9.2009; HC 101.909/MG, Relatoria do Ministro Ayres Brito DJe 19/06/2012. 

Há pouco, o mesmo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por meio dos senhores Ministros integrantes da 2ª T. Criminal, em precedente de extrema importância, proferido em sede de Recurso Ordinário em habeas corpus (RHC 122.279/RJ, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, 2ª T. Criminal, 12.8. 2014), deram provimento, por unanimidade, ao aludido Recurso em Habeas Corpus, nos termos do voto do Min. Relator. 

No referido RHC, o recorrente sustentou nulidade do processo por ofensa ao princípio do nemo tenetur se detegere em razão da confissão da autoria delitiva durante a inquirição da testemunha. Pela paradigmática importância do mencionado julgado, é imprescindível o registro de algumas passagens do voto do Relator: 

“O direito ao silêncio, que assegura a não produção de prova contra si, constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade humana. (...) Evidentemente, a todos os órgãos estatais dotados de poderes normativos, judiciais ou administrativos impõem-se a importante tarefa de realização dos direitos fundamentais. (...) A ideia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e seu dever de guardar-lhes estrita observância”. 

E prossegue o Ministro Relator, apoiado em precedente lição do Ministro Sepúlveda Pertence: 

“Não há dúvida, porém, de que a falta da advertência quanto ao direito ao silêncio, como já acentuou este Supremo Tribunal, torna ilícita “prova que, contra si mesmo, forneça o indivíduo ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não” (HC 80.949, rel. Sepúlveda Pertence, DJe de 14-12-2001)”. 

E eis que se chega à parte essencial desse lapidar julgado do Supremo Tribunal Federal: 

“Por todo o exposto, no presente caso, entendo assistir razão à Defesa. Conforme bem destacou a PGR (...) tal Declaração não tem valor por não ter sido precedida da advertência quanto ao direito de permanecer calado. Desse modo, acolhendo a manifestação da Procuradoria Geral da República, voto no sentido de dar provimento ao presente recurso ordinário em habeas corpus para reconhecer a inépcia da denúncia, sem prejuízo de reapresentação, desde que a nova peça venha apoiada em outros elementos de prova. É como voto.” 

Depreende-se, assim, que é fundamental informar sobre o Direito ao silêncio. Aquele que tem qualquer possibilidade, por qualquer motivo, de ser acusado criminalmente, tem de ser alertado que tem o direito ao silêncio. Ponto central da questão: até uma testemunha que pode se autoincriminar - de acordo com aquilo que poderá falar -, tem ela de ser alertada antes sobre o seu direito ao silêncio. 

No que tange ao caso concreto ora examinado, inegavelmente, conforme demonstrou-se, a aludida requerente já era considerada implicada pela autoridade policial, e no Termo de Declarações forneceu informações contra si mesma, sendo que no Termo mencionado não há registro de ter a autoridade policial advertido a declarante/suspeita/implicada do seu direito ao silêncio. 

Assim, depreende-se que houve um momento da inquirição, conforme se observa do termo de declaração, em que, claramente, a inquirida manifestou a intenção de confessar a fraude que supostamente cometera. Desse modo, para a validade das declarações subsequentes, a autoridade policial deveria ter respeitado, a partir de então, as regras do interrogatório. Ou seja, deveria ter advertido formalmente a depoente do direito ao silêncio. E tal não aconteceu, infelizmente. 

Portanto, tal declaração (confissão extrajudicial) não tem valor por não ter sido precedida da advertência à ré quanto ao direito de permanecer calada. E vale frisar bem: já apenas pela condição de investigada ou suspeita da requerente quando da colheita da oitiva, mesmo sem a mesma, à época, encontrar-se formalmente indiciada, a não advertência do direito de permanecer calada significava inegável potencial gerador de grave prejuízo à esfera de liberdade da depoente em tela. 

Bem por isso, o nomen iuris “termo de declarações” ou “interrogatório” não tem a menor importância, no caso sub examen, no que tange a pretensos argumentos de superação da grave ilegalidade ora examinada.  O fato de a oitiva da então suspeita ter sido formalizada em termo de declaração não afasta o direito ao silêncio, uma vez que se tratava de pessoa suspeita/investigada de crime, ou seja, com potencial de se autoincriminar durante o ato da oitiva. 

Pois a então suspeita/investigada tinha o direito de se calar, o direito de não falar, o direito de não produzir prova contra si. E como já se disse, não importa se a coleta das declarações seja denominada de termo de declaração, depoimento, informação judiciária, interrogatório. Afinal, é como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal: “(...) a falta da advertência quanto ao direito ao silêncio (...) torna ilícita “prova que, contra si mesmo, forneça o indivíduo ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não” (HC 80.949, rel. Sepúlveda Pertence, DJe de 14-12-2001)”. 

É dizer: o que importa é a constatação de que a suspeita/investigada fora ilegalmente induzida a produzir prova contra si mesma, não tendo a oportunidade de defender-se com o silêncio. E o Estado obteve elementos informativos à custa de direitos constitucionais. Trata-se, pois, de hipótese de comprovado prejuízo. Muito provavelmente, se a então suspeita/investigada tivesse sido esclarecida do direito de permanecer calada, a mesma o teria exercido, não teria confessado fatos que a implicavam, não teria sido denunciada, não teria sido processada, e, já em sede de instrução processual, não teria de ter “optado” por proposta de suspensão condicional do processo, que lhe levou a assumir a respectiva prestação pecuniária de quase R$ 2.000, 00 (Dois Mil Reais). 

Dessa maneira, o mencionado ato de oitiva no âmbito do Inquérito policial, da forma como foi conduzido, violou direitos constitucionais, e a confissão extrajudicial obtida na ocasião deve ser considerada integralmente ilícita, para todos os efeitos penais e processuais. Por consequência, no caso concreto, o melhor caminho deve ser o do reconhecimento da invalidade dos elementos informativos colhidos no referido ato da investigação preliminar policial, ou seja, o reconhecimento da imprestabilidade probatória de tal “prova”, qual seja o conteúdo do aludido termo de declaração. 

Afinal, os atos absolutamente viciados tem convalidação impossibilitada em razão de ferirem o interesse público da cabal prestação da justiça. Nesse passo, mutatis mutandis, mais uma vez calha a brilhante passagem da doutrina de DAURA: 

“(...) os atos nulos. Estes, mediante uma declaração judicial, têm sua eficácia reprimida, bem como suas eventuais consequências. Os atos absolutamente nulos (...) possuem vício contaminador deveras intenso, impedindo sua convalidação em razão de ferirem o interesse público da cabal prestação da justiça. Por comprometer o escorreito transcorrer do processo, abalando o contraditório ou a necessária imparcialidade do julgamento, tomando conhecimento de tal nulidade do ato, o juiz deverá, de ofício, declará-lo como inválido” (DAURA, 2011, p. 42). 

Ademais: “É pacífico que a não observância de regra constitucional acarreta a nulidade plena do ato. Assim, a obtenção de prova por meios ilícitos gera, por consequência, a nulidade absoluta deste ato processual utilizado, em virtude da violação de uma norma constitucional. Assim, uma decisão judicial deve ser considerada nula se fora prolatada com base motivacional em evidência inadmissível” (DAURA, 2011, p. 43). 

Sendo assim, constata-se que o ato irregular sub examen interferiu deveras prejudicialmente na esfera jurídica e na defesa da acusada. 

No caso da acusada em tela, embora essa ainda não fosse formalmente indiciada no inquérito policial, pela conjuntura das investigações, pelas diligências policiais realizadas na região, depreende-se com clareza solar que era suspeita, investigada de cometer fraudes em um requerimento de benefício previdenciário rural. Portanto, a referida senhora estava implicada na investigação então em curso e, mesmo assim, o Delegado de Polícia não lhe alertou quanto ao direito ao silêncio. Tal fez com que da investigada a autoridade policial obtivesse uma confissão extrajudicial que implicou a mesma, levando-a a ser denunciada e processada criminalmente. 

Caracterizado, pois, o prejuízo, tudo a justificar a declaração de nulidade absoluta do ato viciado. E, em decorrência da observância do Princípio do prejuízo, basilar princípio a ser observado no processo penal constitucionalizado: “não pode haver irregularidades sem sanção, quando se trate de infrigência à norma-garantia” (DAURA, 2011, p.33). 

A Constituição da República (art. 5º, LVI) é enfática quanto ao tema: “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” Outrossim o Código de Processo Penal (art. 157): “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais e legais”. 

Outrossim é entendimento majoritário na jurisprudência e na doutrina que a prova obtida através de meio ilícito não pode ser admitida no processo. Cite-se que as mesas de processo penal, ligadas ao Departamento de processo penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, após analisar o tema, chegaram à conclusão consubstanciada nas seguintes súmulas: 

Súmula 48. Denominam-se ilícitas as provas colhidas com infringência a normas e princípios de direito material. 

Súmula 49. São processualmente inadmissíveis as provas ilícitas que infringem normas e princípios constitucionais, ainda quando forem relevantes e pertinentes, e mesmo sem cominação processual expressa. 

Dessa maneira, a confissão extrajudicial da autora de requerimento de benefício previdenciário rural suspeito, ao arrepio das garantias constitucionais, foi obtida por meio ilícito, significando o aparecimento de prova ilícita, imprestável, o que faz surgir como medida mais consentânea ao caso o desentranhamento de tais elementos informativos dos autos do processo em tela, (art. 5º, LVI da CRB c/c art.157, CPP). 

Assim, “Neste contexto, não é possível a juntada de prova ilícita ou obtida por meio ilícito em face sua inadmissibilidade processual. O desentranhamento da evidência levada aos autos é medida à lisura e saneamento do processo quando tal prova é ilícita ou obtida por meios inadmissíveis. Desentranhada dos autos, adquire o status de inexistente para aquele caso, e, neste novo estado, deve ser julgado o processo.” (DAURA, 2011, p. 44). 

Na mesma esteira, a jurisprudência: “teoria da árvore dos frutos envenenados “(...) 3. As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que são exclusivamente delas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (CF, art. 5º, LVI), (...) nulo de pleno direito o ato (...) por omissão de formalidade essencial... (Apelação Criminal 2.216 – Processo:199902010532083/RJ – Decisão 13.11.2001 – DJU 03.07.2002 – Rel. Juiz Benedito Gonçalves)”. 

À guisa de conclusão: Da análise do caso concreto, infere-se que a solução consentânea com o ordenamento constitucional/infraconstitucional pátrio (art. 5º, LVI, da CF c/c o quanto emanado do art. 157, caput e seus parágrafos, do CPP), é a da inadmissibilidade do conteúdo do indigitado termo de declaração obtido em sede de inquérito policial com violação de direitos e garantias da acusada, declarando-se tal elemento de informação/prova como ilícito (ilegal), com o seu consequente desentranhamento dos autos do respectivo processo, e, como sendo a prova ilícita verdadeira “árvore venenosa, o desentranhamento de tudo o mais eventualmente derivado exclusivamente da substância do referido termo de declarações ilegal, devendo o Juízo da causa abster-se de considerar todos esses elementos/provas oriundos daquela confissão extrajudicial ilícita, quando da prolação da sentença. 

 

Referências:

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2016. 

DAURA, Anderson de Souza. Inquérito Policial – Competência e Nulidades de Atos de Polícia Judiciária. 4 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2011. 

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucionalizado. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4 ed. Salvador: Ed. Juspodvim, 2016. 

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 15 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 

RHC Nº 122.279/RJ, Segunda Turma Criminal, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Gilmar Mendes, julgado em 12.8.2014. 

TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não Autoincriminação e Direito ao Silêncio. Editorora do Advogado, 2011.

 

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