DA UTILIZAÇÃO DO WHATSAPP NA COMUNICAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS

12/02/2021

 Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

A utilização dos meios de comunicação na via digital traz certamente uma considerável melhoria na eficiência, celeridade e ampliação do acesso à justiça.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 2018, a cada dez domicílios no Brasil, oito possuíam acesso à internet. E este número está em uma curva crescente. A maior parte da população faz este acesso por intermédio de celulares. Registros do IBGE indicam uma sensível redução no número de computadores, televisores e telefones fixos nas casas dos brasileiros [1].

Isto demonstra que o Whatsapp, um dos principais aplicativos de comunicação por imagem, voz e mensagens de texto, tem sido um forte aliado para o desenvolvimento de métodos ágeis aplicáveis a diversas rotinas de trabalho, com alto impacto em setores produtivos e prestadores de serviços essenciais no Brasil.

Recentemente, com a adoção em larga escala do chatbot inteligente [2], o Whatsapp passou a ser adotado também por alguns órgãos públicos, servindo como um novo canal de acesso aos seus serviços, para a divulgação de informações úteis ou o esclarecimento de dúvidas frequentes.

Diante desta nova era, chamada por Klaus Schwab em 2016 como “Quarta Revolução Industrial” [3], a comunicação dos atos processuais passou a ser repensada com o uso de novas ferramentas, destacando-se o uso do correio eletrônico (e-mail) e do Whatsapp.

Em junho de 2017, o Conselho Nacional de Justiça, no âmbito do Procedimento nº 0003251-94.2016.2.00.0000, trouxe à tona uma discussão sobre a validade das intimações judiciais em sede de juizados especiais cível e criminal por meio do Whatsapp, considerando a regra do art. 2º da Lei nº 9.099/95, que estabelece como critérios interpretativos os da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e da celeridade, e do art. 19, que expressamente enuncia ser admissível a realização de intimações por qualquer outro “meio idôneo de comunicação”.

Mas o que poderia ser considerado como meio idôneo para a comunicação dos atos praticados por um órgão público?

De acordo com a decisão do CNJ, de relatoria da Conselheira Daldice Santana, a utilização das intimações por meios tecnológicos idôneos vem amparada desde a Lei nº 11.419/2006, regulamentada pela Resolução do CNJ nº 185/2013, se apresentando como uma alternativa ao método tradicional de comunicação, e não como uma imposição às partes [4].

Considerando que a inclusão digital ainda está em processo de crescimento no Brasil [5], revela-se salutar admitir o emprego dos novos meios tecnológicos de intimação como uma faculdade das partes.

Tal premissa, traçada na decisão do CNJ, é de extrema importância, e traz uma resposta imediata para qualquer questionamento em torno de uma possível violação à privacidade das partes.

Se houver algum receio quanto ao uso do Whatsapp, a parte poderá exigir que a intimação seja feita pelo modo tradicional. Aliás, a dialética deve estar sempre presente em qualquer ato ou determinação que consolide alguma flexibilização procedimental.

Em sede de Juizados Especiais, demonstra-se interessante a prática de se colocar um quesito sobre o uso do Whatsapp nas petições disponibilizadas pelos cartórios às partes que ingressem em juízo desassistidas por um advogado, no exercício do jus postulandi.

O termo “idôneo”, portanto, deve ser pensado de duas formas: no sentido de o instrumento ser tecnicamente eficiente para que se promova a comunicação, ou seja, que permita a transmissão dos dados de maneira rápida, sem ruídos, de maneira clara e fidedigna (aspecto objetivo), e também também no sentido de ser plenamente acessível ao usuário, considerando suas características e circunstâncias pessoais (aspecto subjetivo).

Assim, o Whatsapp pode se revelar como uma excelente ferramenta de comunicação em áreas urbanas, com boa cobertura de internet, mas pode ser inapropriado em áreas sem uma infraestrutura mínima adequada; pode ser muito bom para quem trabalhe diariamente com tecnologia, e ser inoportuno para alguém sem o aparelho celular, ou que tenha dificuldades para operá-lo e não tenha ninguém próximo para ajudar.

Há quem questione a idoneidade do Whatsapp para a comunicação de atos processuais pelo fato de não apresentar uma forma precisa de confirmação para o seu recebimento. Se o teor da mensagem for um ato processual “indesejado pelo seu destinatário”, como é o caso de uma decisão impondo-lhe uma sanção ou uma obrigação, bastaria que ele desativasse a notificação de leitura e fingisse que nada viu.

Quanto a isto, tem-se novamente uma solução pautada na premissa estabelecida pelo CNJ, no sentido da intimação por este meio ser facultativa. Sendo assim, se traduzirá em opção de comodidade ao usuário, que, se imiscuindo de dar a devida confirmação, (em eventual quebra da boa-fé processual) será passível de uma nova intimação pelos meios habituais.

Outro questionamento no caso em análise, pautou-se em suposto descumprimento pela empresa Facebook, responsável pelo aplicativo Whatsapp, de determinações judiciais no sentido de se preservar o sigilo das mensagens, em ofensa à Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet.

Ao lado disto, alegou-se ausência de regulamentação legal para que um aplicativo controlado por empresa estrangeira fosse utilizado como meio oficial para a realização de intimações judiciais. Este, inclusive, é um dos questionamentos mais comuns diante do atual contexto da LGPD e da mudança de política de privacidade do Whatsapp.

Destarte, temos de um lado, argumentos favoráveis ao uso da comunicação por Whatsapp em torno de critérios de eficiência e economicidade, e, de outro, argumentos contrários que se relacionam com questões de proteção aos dados e a preservação da privacidade.

É o antagonismo clássico que se repete em tantos outros casos envolvendo tecnologia e o direito à informação.

No que tange ao fato de o aplicativo ser mantido por uma instituição privada internacional, há uma discussão relevante em torno da possibilidade de se promover a transmissão de dados e informações oficiais do Poder Público em plataformas que não sejam desenvolvidas e mantidas pelos seus próprios órgãos.

Ora, o dinamismo e a velocidade de inserção das novas tecnologias tornam praticamente impossível ao Estado gerenciar e manter todos estes serviços por conta própria.

Sem o auxílio de empresas privadas e estrangeiras, vários avanços não seriam conquistados e implementados no Brasil, pois diversas áreas, desde aquelas responsáveis pelo desenvolvimento e fabricação de vacinas até softwares, envolveram algum tipo de importação da tecnologia de outros países.

Preconiza-se que, em linhas gerais, o processo de internalização de inovações pode ocorrer de três formas: pela importação de bens e serviços, pela importação explícita da tecnologia, ou pelo desenvolvimento autônomo, que por sua vez, é bem mais difícil de ser alcançado em países subdesenvolvidos e com pouco investimento na área de pesquisa e de educação [6].

Destarte, no atual cenário, o regime colaborativo para a inserção de novas tecnologias é única saída para necessidades mais urgentes, o que se intensificou com a pandemia.

A regulação das novas tecnologias tende a seguir a mesma direção, mantendo-se um alto grau de dinamicidade que propicie a absorção de mecanismos e tendências positivas em destaque no cenário internacional. Daí exsurge o protagonismo do Sandbox Regulatório.

Merece registro, neste ponto, o movimento do Open Justice [7], que em tradução literal anuncia uma verdadeira abertura da Justiça, por intermédio de um conjunto de estratégias que sejam aptas ao incentivo para a “entrada de empresas que operam nos setores”, conhecidas pelo termo “lawtechs” voltadas para o desenvolvimento de atividades relevantes para a modernização do Poder Judiciário [8].

Importa salientar que, além dos normativos mencionados na decisão do CNJ, os arts. 236, 246, V, 254, 270 e 272, do CPC tornam clara a permissão para que se utilize o meio eletrônico como forma de comunicação judicial, tendo-se a opção tradicional sempre disponível caso não se consiga localizar ou confirmar o seu recebimento.

Não há norma que restrinja expressamente o uso do Whatsapp. O parâmetro de admissibilidade, portanto, reside na verificação do meio como “idôneo”, qualidade que se conecta com a expressão empregada no art. 270 do CPC, “sempre que possível”.

Ademais, diante do art. 190 do CPC, há uma margem de flexibilização processual que permite ajustes desta natureza, pois as circunstâncias podem mudar ao longo da tramitação processual, tornando as formas de comunicação alternativas até então declinadas pelas partes, como perfeitamente viáveis e adequadas ao novo contexto.

Veja-se como exemplo, que, na pandemia, a adesão a estas formas de comunicação via Whatsapp ou por e-mail aumentaram significativamente.

No mês de janeiro de 2021, circularam entre as redes sociais e meios de comunicação em massa, notícias no sentido de que o Whatsapp traria mudanças na sua política de privacidade que tornariam a troca de dados por meio do aplicativo muito mais vulneráveis aos ataques cibernéticos. Em seus novos termos de uso, o usuário teria que concordar com o compartilhamento dos dados veiculados no Whatsapp com o Facebook, sendo este último na qualidade de seu “dono” e controlador.

Isto gerou um movimento considerável de pessoas dizendo que não utilizariam mais o Whatsapp e que passariam a migrar para outros aplicativos com funções semelhantes, e políticas de privacidade mais rigorosas. Em razão disto, o Whatsapp divulgou no dia 15 de janeiro de 2021, em seu blog oficial, que a entrada em vigor desta nova política seria adiada em três meses [9].

O celeuma é plenamente justificável, pois trata-se de aplicativos com finalidades completamente distintas. No Facebook, o usuário busca uma interação social em um ambiente público, tornando tudo o que veicula visível aos seus amigos e familiares. Já no Whatsapp, mesmo que haja a possibilidade de se formarem grupos temáticos, a intenção é trocar dados dentro de um ambiente mais restrito e seguro. Migrar os dados de uma plataforma mais reservada para outra bem mais aberta, é algo que causa grande insegurança em termos de privacidade, ainda mais quando se sabe que os dados poderão ser utilizados para finalidades desconhecidas que podem impactar severamente a vida do titular dos dados.

Neste ponto, a LGPD é bastante clara ao estabelecer, em seu art. 7º, § 3º, que “o tratamento de dados cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização.

Por este motivo, o consentimento do usuário deve se pautar em informação clara e precisa, que recaia não apenas sobre o fato de que seus dados serão compartilhados, mas também para qual finalidade poderão ser destinados. Em função disso, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) solicitou ao Whatsapp e Facebook esclarecimentos sobre estas alterações na política de privacidade [10].

No momento em que o Poder Judiciário está processando os dados pessoais dos jurisdicionados, ele se torna responsável pelo seu tratamento, na forma dos arts. 23 a 30 da LGPD. Ao se utilizar do Whatsapp para veicular a comunicação dos atos processuais, deve ter a cautela de verificar se a política de privacidade do aplicativo está em conformidade com os seus deveres, tal como estatuídos na LGPD, assim como em todo o microssistema de proteção de dados e informações, com destaques para a Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI), e a já mencionada Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).

Pelo exposto, pode-se concluir que o Whatsapp é uma ferramenta de comunicação auxiliar, sem qualquer carga de obrigatoriedade e muito menos um instrumento oficial adotado pelo Poder Público.

Isto faz com que se preservem os limites do desenvolvedor para o estabelecimento de sua própria política de privacidade, e, ao mesmo tempo, se exija dos Tribunais que regulamentem o seu uso para a comunicação de atos processuais, a observância de todo o microssistema de proteção de dados.

Por fim, a ideia do Whatsapp é sem dúvidas uma inovação que não deve ser descartada, pois, em condições ideais, permite uma comunicação rápida e eficiente, servindo como um mecanismo de filtragem das comunicações que deverão ser veiculadas na forma tradicional. A sua existência reforça os pilares da cooperação e da boa-fé processual, e serve como um verdadeiro “nudge” para o movimento gradual de transformação digital tão em voga na atualidade.

 

Notas e Referências:

[1] BRASIL. IBGE. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html. Acesso em: 03 fev. 2021.

[2] O Chatbot inteligente é um mecanismo de resposta automática que viabiliza a filtragem de demandas em canais de atendimento ao público, que confere ao usuário algumas opções numéricas, que o colocam em uma trilha de acontecimentos subsequentes, até que seja alcançada uma solução ou algum tipo de atendimento individualizado.

[3] SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial [livro eletrônico] / tradução Daniel Moreira Miranda. – São Paulo: Edipro, 2019.

[4] SANTANA, Daldice. Acórdão em sede de Procedimento de Controle Administrativo – 0003251-94.2016.2.00.0000. In: Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 278, n. 1, p. 337-344, jan./abr. 2019.

[5] INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA (IBICT). Mapa da Inclusão Digital no Brasil. Disponível em: https://mid.ibict.br. Acesso em: 08 fev. 2021.

[6] AUREA, Adriana Pacheco; GALVÃO, Antonio Carlos F. Importação de Tecnologia, Acesso às Inovações e Desenvolvimento Regional: O Quadro Recente no Brasil. In: Repositório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2754/1/td_0616.pdf. Acesso em: 28 out. 2020.

[7] BECKER, Daniel; WOLKART, Erik Navarro. Como Roma, cidade aberta: open justice! Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/como-roma-cidade-aberta-open-justice-21032020. Acesso em: 20 dez. 2020.

[8] Podem ser destacadas, como exemplos: jurimetria, analytics, formação de bancos de dados integrados e validados com o uso da blockchain e plataformas de ODRs. Especificamente a respeito do uso da blockchain no Brasil, vale a pena conferir a redação do Projeto de Lei nº 2.876/2020 que tem por objetivo a formação de um Sistema Eletrônico de Blockchain Nacional de Registro de Títulos e de Documentos, e de Registro de Imóveis. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8114989&ts=1591219716314&disposition=inline. Acesso em 03 fev. 2021.

[9] GONÇALVES, Andre Luiz Dias. Whatsapp adia mudanças nos termos de privacidade. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/software/209511-whatsapp-adia-mudancas-termos-privacidade.htm. Acesso em: 16 jan. 2021.

[10] G1. Governo pede explicações para Whatsapp sobre nova política de privacidade. https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/02/08/governo-pede-explicacoes-para-whatsapp-sobre-nova-politica-de-privacidade.ghtml

 

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