Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
O mito de Prometeu pode ser reinterpretado, considerando uma cena do aparato psíquico do sujeito de rendimento, autoexplorador de si, o qual está em guerra consigo mesmo: o sujeito crê ter libertado, porém está encadeado em si mesmo, de maneira que a águia que come seu fígado não é mais do que seu alter-ego. Essa reflexão de Byung-Chul Han é fundamental para se compreender os contornos da sociedade de rendimento que hoje vivemos, uma sociedade que transpõe a sociedade disciplinaria e dá base ao consumo flexível, individualizado e estético. A transição da sociedade disciplinaria para a de rendimento é efetuada pelo pós-modernismo, que constrói uma atmosfera relacional entre as mudanças do mercado de trabalho e a busca do talento, voltados a construção de um ambiente no qual os indivíduos podem envolver-se ativamente no e para o consumo. O consumismo que hoje vivemos é aberto e dinâmico: solta o indivíduo dos laços da estrutura social, permite o máximo de singularização do homem, o que vem de mãos dadas à autoexploração.
No período que vai de 1945 a 1973, existiu um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico (fordista-keynesiano) que colapsam a partir de 1973, um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza. A incapacidade do fordismo e do keynesiasimo de conter as contradições inerentes ao capitalismo deviam-se a sua rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistema de produção de massa, assim como problemas de rigidez nos mercados e nos contratos de trabalho. As novas condições econômicas, ao invés de proporcionarem uma política progressista, criam um cenário onde jovens líderes empresariais concatenam um cenário ideal de individualidade dos negócios voltado a um cidadão livre e dotado de poderes, um cidadão pró-ativo, não mais submisso. O pós-modernismo é essa passagem: mudança na prática de consumo, marcado por um trabalho e mercadorias mais flexíveis, de alta mobilidade.
A fase II do capitalismo moderna implementa o processo de estetização em massa do consumo, que conquistou amplas camadas sociais. O consumo se torna mais uma questão de gostos individuais. Afirma-se uma estética consumista centrada na subjetividade de gostos e sensações de prazer. Na medida em que recua o predomínio das necessidades, as escolhas fazem-se mais em função de gostos pessoas e emoções suscitadas pelo produto. O capitalismo absolutiza a mera vida, seu fim não é a vida boa, mas a compulsão do acúmulo, o que mais remete à sobrevivência e selvageria.O capital financeiro é capaz de coordenar mais e melhor do que o fordismo fazia, o que implica também que contextos de crises são mais propensos, em que pese a fluidez para minimizar o impacto seja maior. Toda essa fluidez despreza relação tempo-espaço, tendo efeitos sobre a produção e o consumo. Ao lado das mudanças econômicas, o pós-modernismo é o processo que se volta à personalização, por meio de esferas como o esporte, educação, lazeres, moda, informação, trabalho. Vai além da sociedade operária, pois funda-se no saber teórico, desenvolvimento técnico, no setor de serviços. É uma continuidade do modernismo, que também se funda na personalização, porém não é mais disciplinar. O pós-moderno não é a favor do prazer ilimitado, do entusiasmo psicodélico: o culto ao desenvolvimento espiritual, sustentável e esportivo é sua marca. Meditação, vigilância do corpo, retorno a si. Dessa forma, a pós-modernidade é a época que inverte a organização caracterizada pela dominância, no momento em que sociedades ocidentais tendem cada vez mais a rejeitar estruturas uniformes e generalizar sistemas personalizados à sabe de solicitação, opção, informação e participação.
Os sintomas neuróticos do capitalismo autoritário dão lugar, sob a pressão da sociedade permissiva, às desordens narcisísticas. O medo de decepcionar e o medo de paixões descontroladas traduzem a fuga diante do sentimento. O fim da cultura sentimental faz crescer uma sociedade da indiferença. Quanto maior a possibilidade de encontros, mais os indivíduos sentem-se sós, quanto mais as relações são livres, mas rara se torna de conhecer uma relação intensa. A sociedade disciplinaria-Foucaultiana, onde o diferente habita os cárceres, hospitais, centros psiquiátricos, já não explica a sociedade de hoje em dia. Em seu lugar, hoje são estabelecidos locais como academia, bancos, aviões, centros comerciais e laboratórios genéticos. Trata-se de uma sociedade de rendimento, pois os sujeitos não são mais de obediência, mas sim sujeitos de que apresentam resultados. Os sujeitos são hoje empreendedores de si mesmo. Controle, obediência, proibição são conceitos demasiadamente negativos. A sociedade de rendimento desapega-se da negatividade, seus projetos, iniciativas e motivação vão além da proibição. Enquanto que na sociedade disciplinaria rege o não, produzindo assim loucos e criminosos, enquanto na sociedade de rendimento produz depressivos e fracassados. O sujeito de rendimento segue disciplinado, a positividade do poder eleva o nível de produtividade obtida pela técnica disciplinaria, pelo imperativo do dever. A sociedade do rendimento está dominada pelo verbo poder, em contraposição com o verbo dever. O sujeito de rendimento, empresário de si, é livre, mas não realmente livre, pois a exploração é mais eficiente na medida em que unido ao sentimento de liberdade, uma exploração sem domínio.
O consumo de massa possui um tom de verdade, porém, normalmente esquece-se de considerar a face suplementar e inversa do fenômeno: acentuação das singularidades e personalização sem precedentes dos indivíduos. Essa dimensão do consumo exacerba o desejo da pessoa ser ela mesma e gozar a vida, atuando como vetor de diferenciação entre as pessoas. A diversificação extrema entre as pessoas é o reflexo da dissolução de divisões em compartimentos socio-antropológicos de sexo e idade, voltado ao fim das convenções rígidas. Nesse tipo de sociedade, onde o corpo e o equilíbrio pessoal, o indivíduo é permanentemente obrigado a escolher. A sociedade de consumo não se reduz ao estímulo das necessidades e do hedonismo, mas um consumo de informação: gozar a vida e se informar, estar ligado, cuidar da saúde. A época bacterial foi deixada para trás graça às técnicas científicos-imunológicas, de modo que a partir do século XXI vivemos a época neuronal: depressão, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade, transtorno de personalidade e síndrome de desgaste ocupacional. Essas enfermidades não são infecções, mas sim o reflexo do excesso de positividade.
Na medida que o sujeito passa de uma sociedade de um modelo disciplinaria de gestão da conduta, autoritário, onde a todos era outorgado um papel, passa-se a uma sociedade que induz o indivíduo à iniciativa pessoal. O deprimido está cansado de definir-se a si mesmo. A pressão pelo rendimento causa o esgotamento e a depressão. O que enferma é o excesso de responsabilidade própria das iniciativas. O homem depressivo é o animal laborans, aquele que explora a si mesmo voluntariamente, sem coação externa, surgindo na medida em que o sujeito de rendimento não pode poder mais. O sujeito de rendimento está livre de um domínio externo que o obrigue a trabalhar ou o explore, pois é dono de si mesmo, o que não o diferencia, no fim, do sujeito de obediência, havendo apenas uma supressão de um domínio externo. Essa supressão não conduz o homem à liberdade, do contrário.
Essa mudança impacta profundamente a nossa forma de consumir. Mais do que um observador passivo, o consumidor tem papel ativo na construção dessa realidade, diferente de explicações sobra a atmosfera da sociedade do consumo, que pecam por não destacar o papel ativo do consumidor para o consumo: o poder da moda e do marketing e, de outro lado, a obsolescência planejada dos produtos não são capazes de, por si, compreender o contorno de nossa sociedade. O resgate do papel ativo do consumidor é fundamental para se compreender a sociedade do rendimento, da autoexploração.
O trabalho torna-se uma posição numa rede em constante mudança, o que vai além de ambições e disputas internas, pois a identidade do trabalho acaba sendo constantemente alterada e reinventada. O contexto moderno valoriza as capacitações humanas portáteis, de trabalhar em vários problemas. O consumo é apresentado de forma desejável: de forma direta, pelas marcas, de forma indireta, investindo-se as coisas a serem compradas de potência e imaginação. Não se possui informação sobre a produção do que outras gerações possuíam (muitos não sabem fazer uma bolacha), e o ideal era que as pessoas consumissem de modo inteligente, por um conhecimento modesto das técnicas, da história do produto, do trabalho empregado. Na prática, porém, busca-se impedir essa reflexão, maquiando-se conteúdos de produtos pelas tecnologias atuais, destacando pequenas diferenciações insignificantes, dando relevância à marca, mesmo que venda um produto homogêneo: os carros de grandes marcas são produzidos em versões de um automóvel global (plataforma básica), porém são superficialmente alterados, o que se aplica também a, por exemplo, computadores. A diferença visual busca impedir associações, afastando o consumidor do que o objeto é. O consumidor cada vez mais busca o estímulo de diferença nos produtos, cada vez mais homogêneos: o que importa são os desejos em movimento, a imaginação.
Os produtos, outrora eram acumulados pelo consumidor. Hoje, o consumo não tem na renúncia do objeto perda, mas a busca de novos estímulos, pois os objetos são produtos padronizados. A potência de compra traduz o que podemos comprar, consumindo equipamentos eletrônicos, por exemplo, com opções que jamais utilizaremos, como uma nuvem capaz de guardar 10 mil imagens, ou um automóvel sofisticado para ir ao trabalho. Essas características denotam o poder dos objetos, de modo que são vendidos pela que a pessoa jamais será capaz de usar, tornando-se uma prótese humana. A paixão pelo consumo envolve a imaginação e incita a potência. O consumidor, imerso nesse meio, perde o senso de proporção. O excesso de positividade causa um excesso de estímulos e impulsos. As recentes mudanças socias e a mudança de estrutura de atenção provocam que a sociedade humana se aproxime mais do selvagerismo: cuidado para não ser devorado, distribui atenção por várias atividades, o que causa uma ausência de emersão contemplativa nem na ingestão de alimentos e nem na cópula. De uma preocupação por boa vida passa-se a uma preocupação pela existência.
A atenção dispersa gera pura agitação, e o tédio demonstra o ponto de ruptura com a relação espiritual. A falta de sossego leva à barbárie. A positivação da sociedade mitiga sentimentos negativos. Precisamente por seu egocentrismo, por sua carência de negatividade, o sujeito somente obtém resultados realizáveis por uma calculadora, transformando o cérebro em um exercício de cálculos. Esquece-se que a negatividade do sujeito faz parte da contemplação, constituindo um processo ativo, sendo tudo menos passividade, pois consiste um alcançar em si, um verdadeiro exercício de soberania. A hiperatividade é, por seu turno, uma forma passiva de atividade que não permite nenhuma ação livre do ser.
Notas e Referências
HAN, Byung-Chul. La Sociedad del Cansacio. Barcelona: Herder, 2012.
HAN, Byung-Chul. La agonía del eros. Barcelona: Herder, 2014.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2008.
LIPOVESTKY, Gilles; SERROY, Jean. O Capitalismo Estético na Era da Globalização. Lisboa: Almedina, 2014.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.
SENNET, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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