Da sociedade de consumo ao “consumo da sociedade”: ambiguidade, intersubjetividade e autofagia como estruturas de conformação do conflito social – Por Rafael Alexandre Silveira

18/11/2016

Formamos todos uma rede congruente de desejos, esperanças, angústias, medos, inseguranças e incertezas, sejam no tempo presente ou futuro, traduzidas na busca incessante pela satisfação de nossos bens imperativos e materiais para a realização de uma vida individual e coletiva.

Existe, contudo, uma certa ambiguidade que caracteriza o ato de consumir, o qual está além da compreensão tradicional em usufruir e em adquirir bens para satisfazer nossas necessidades pessoais, manter nosso padrão de aquisições supérfluas, para quem tem esta condição e, principalmente, para dar conta de nossas necessidades mais prementes, típicas da sociedade consumista. Trata-se de perceber que este, o consumo, a par de sua associação à constante (in)satisfação do indivíduo num continuum, em que o produto final é o insaciável desejo de continuar a consumir[1], revela, pois, um processo de mediação de relações sociais[2]. É nesse aspecto que o “consumo” adquire uma dupla face, mais tipicamente peculiar de um certo modo de interpretação da realidade social, cuja novidade, aqui percebida, tende a levar em conta a dinâmica que permeia as interações cotidianas entre atores políticos e sociais.

A lógica de obtenção do lucro, a venda, a satisfação das exigências de mercados, os mecanismos de regulação jurídica e constitucional, muitas vezes para atender aos interesses dos grandes conglomerados econômicos, presentes e característicos da atividade político-econômica, em tempos de aprofundamento expansionista da globalização, evidenciam, porém, que não há mais como compreender, a partir deste quadro, os diversos processos de intersubjetivdade, isto é, a relação entre sujeitos, no interior de sociedades complexas, fragmentadas e marcadas pela exclusão. Antes, torna-se a complementar este entendimento, justamente para perceber como tem se desenvolvido os conflitos de ordem política, de raça, de gênero e de cultura, para citar apenas estes, nos mais variados espaços sociais, dos grandes centros aos locais mais periféricos do sistema-mundo.

Assim, o crescimento de uma sociedade tem relação direta com a manutenção de uma desigualdade social[3]. Reside neste ponto o estopim para desencadear as "lutas por reconhecimento"[4], das quais nos fala Axel Honneth, uma vez que se originam de demandas pela emancipação dos sujeitos, e não apenas voltadas ao que a economia quer fazer transparecer e que a sociedade de consumo tende a exibir. O "consumo da sociedade", ou o uso que ela faz de si para si mesma, diz respeito à forma tensional de realização das ações sociais e do modo de interação dos agentes para atingir a um fim específico, a alcançar um objetivo, ou ainda, a dar concretude a uma demanda necessária. Ou seja, para consumir, é preciso ter presente a real disposição e a propensão a estar submetido aos contornos de um conflito com seu enquadramento. Esta relação social denomina-se luta quando as ações que se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros[5].

O conflito, na acepção weberiana, diferentemente da anormalidade e da patologia presentes em Marx e em Durkheim, é uma ação cotidiana e histórica, que resulta da concorrência por bens escassos, tanto materiais quanto simbólicos. Por sua vez, é em Simmel que o conflito é percebido de forma mais complexa. São os antagonismos que causam os conflitos, e estes se destinam a solucionar os dualismos existentes. A dualidade das relações humanas não provém de disfunções econômicas, senão é a própria trama da vida social[6]. Para o sociólogo alemão, é o que permite a anulação de discrepâncias, porém os torna mais visíveis e concretas, não percebidas de outro modo[7].

As exacerbações ideológicas e as díspares disputas que abalam as estruturas da vida coletiva contemporânea, demonstram, em última instância, que a sociedade de consumo alargou seu próprio sentido para, agora, transformar-se no consumo da sociedade, vista como a mola propulsora para o estabelecimento do conflito e, por consequência, para o prelúdio das mudanças sociais esperadas. Tais pretensões sugerem o estabelecimento de novas formas jurídicas que devem prestigiar as carências dos grupos sociais, ávidos pela força de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergência de interesses[8]. O consumo, os usos-de-si-mesma e o deixar-se consumir, é uma condição infindável para as sociedades nos dias presentes, seja no que se refere aos bens fundamentais da vida, seja, essencialmente, no tocante aos direitos que demandam uma ação estratégica para seu resgate (e aqui falamos dos essenciais, tais como, saúde, segurança, educação, previdência, trabalho, meio ambiente, para ficar nestes).

Tendo em conta que esta mesma sociedade se retroalimenta de seus conflitos e de suas contradições, é que afirmamos a centralidade das relações sociais pelo consumo e sua ressignificação, de modo a explicitar o caráter autofágico do processo de reestruturação e de reinvenção das sociedades, entre as quais, o Brasil, marcadas pelo auto absorção de seus próprios conflitos e de suas próprias exigências.


Notas e Referências:

[1] CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

[2] RETONDAR, Anderson Moebus. A (re)construção do indivíduo: a sociedade de consumo como “contexto social” de produção de subjetividades. Brasília: Sociedade e Estado, 2008.

[3] BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução Artur Morão. Lisboa: 70, 2011.

[4] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução Luiz Repa; apresentação de Marcos Nobre. São Paulo: Editora 34, 2003

[5] WEBER, Max. Economia e sociedade. Tradução Régis Barbosa; Karen Elsabete Barbosa. 3ª Edição, Brasília: Editora UnB, v.1, 1994.

[6] BIRNBAUM, Pierre., "conflitos" in BOURDON, Raymond. Tratado de Sociologia. Tradução Terese Curvello. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

[7] SIMMEL, Georg. Sociologia. Organização de Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1983.

[8] SILVA, Marcos José Diniz. O conflito social e suas mutações na teoria sociológica. João Pessoa: Revista Eletrônica UEPB, 2011.

_____. Economia e sociedade. Tradução Régis Barbosa; Karen Elsabete Barbosa. 3ª Edição, Brasília: Editora UnB, v.2, 1999.


 

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