Da senzala ao cárcere: nos EUA e no Brasil

19/11/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky e Bárbara Bastos – 19/11/2016

É mole de ver Que em qualquer dura O tempo passa mais lento pro negão Quem segurava com força a chibata Agora usa farda Engatilha a macaca Escolhe sempre o primeiro Negro pra passar na revista Pra passar na revista Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.

(O Rappa)

Os picadeiros estão cheios, e os circos, lotados O império avisou indômitos condenados Como mágica, Amarildos sumiram de suas casas E as Cláudias, que não são Leite, serão arrastadas.

(Flávio Renegado)

Entre os diversos documentários exibidos hodiernamente está fazendo grande sucesso o documentário estadunidense 13th (13ª emenda), dirigido por Ava DuVernay, em exibição no Netflix. O documentário retrata a partir de narrativas históricas, entrevistas com ativistas, educadores, sociólogos, advogados, ex-presos e vários estudiosos sobre o tema, a relação direta entre o modelo escravocrata “abolido” no ano de 1865 nos Estados Unidos da América e o encarceramento desproporcional dos negros norte-americanos resultante de uma política de aprisionamento em massa (ou hiperencarceramento) em curso no país.

Em 1970 a população carcerária nos EUA era de 357 mil pessoas, atualmente os EUA possuem, quantitativamente, a maior população carcerária do mundo, cerca de 2,3 milhões de pessoas. Interessante notar que o país que tem 5% (cinco por cento) da população do planeta, possui 25% (vinte e cinco por cento) da população carcerária mundial.

Os dados tão impressionantes quanto aterrorizantes não param por aí, principalmente, quanto se constata a discriminação e criminalização dos negros, latinos e pobres.  Assim, registra-se que apesar de os negros serem 12% da população do país, representam 40% das pessoas encarceradas nos EUA. Em estimativa apresentada pelo documentário, um em cada dezessete homens brancos tem a probabilidade de ser preso alguma vez na vida, contra um em cada três homens negros.

Dentre os diversos enfoques do documentário – repressão, política de drogas, desigualdade social, preconceito etc. – o que mais grita e incomoda é a semelhança entre o contexto estadunidense e o brasileiro no que se refere, notadamente, ao massivo extermínio, institucionalizado pelas agências penais, de determinada população, apresentado como inimigo, como hostis e como perigoso.

Assim como nos EUA, no Brasil inúmeras vezes o negro é pintado pelas autoridades  como individuo violento, perigoso e até mesmo bestializado. Não se pode olvidar que o Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Mesmo anos depois da assinatura da Lei Áurea, negros continuavam a servir seus senhores em troca de comida e repouso. Quase todos passaram a ser marginalizados, daí para a criminalização foi um salto. De lá até os dias de hoje, o negro continua sofrendo preconceito e discriminação. Discriminação que resulta no processo de criminalização. De um modo geral, aos negros no Brasil nunca foi dado oportunidade de ascensão social. A referida situação só veio a se modificar recentemente com as políticas afirmativas de cotas.

Segundo Luciano Góes

O modelo escravagista brasileiro possuía uma especificidade em decorrência de múltiplos aspectos, que o tornaram singular em todo o mundo, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em nenhum outro país a escravidão teve longevidade tão duradoura. Não há comparação, em âmbito mundial, na quantidade, valor e variedade das riquezas provenientes dessa forma de expropriação de mão de obra e exploração humana, a escravidão negra foi responsável, além da extração do pau-brasil, pela produção do açúcar, ouro, diamantes, fumo, algodão e café, em consequência, pela acumulação das riquezas originárias desses ciclos, nos quais despontaram o Brasil como polo exportador e, em algumas culturas, o maior produtor mundial.[1]

Em “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro retrata de maneira ímpar e magnânima as “agonias e os êxitos da formação brasileira”. Quando no livro apresenta “o Brasil crioulo” Darcy Ribeiro constata que:

Enquanto prevaleceu a escravidão, os agregados dos engenhos e das fazendas representavam um duplo papel. Eram os cooperadores menores do processo produtivo, encarregados de tarefas menos lucrativas, como o provimento da subsistência das fazendas monocultoras e das vilas. E eram também os aliados dos proprietários na repressão aos frequentes alçamentos da escravaria. Existe documentação indicativa de que muitos proprietários facilitavam a instalação em suas terras de índios, mestiços e brancos, localizando-os na orla da exploração intensiva entregue ao braço escravo, como auxiliares eventuais dos capatazes na subjugação do negro à disciplina do trabalho no eito. Com a abolição, os negros somaram-se a esses brancos e pardos pobres que, para enfatizar sua superioridade de homens de tez mais clara, por vezes lhes agiram mais odientos que os brancos ricos. A integração de uns e outros na massa marginal da sociedade brasileira ainda se processa em nossos dias, dificultada por hostilidades que disfarçam sua identidade fundamental de interesses, como camada explorada. [2]

Apesar dos aspectos históricos serem distintos, no Brasil, como já dito, a situação não se difere muito da americana quando o assunto é a criminalização e o encarceramento do negro e do pobre. A população carcerária brasileira é formada em sua maioria por homens negros, com baixa escolaridade e por jovens. O estudo mostra que menores de 29 anos, embora representem 10% da população brasileira, são responsáveis por 55% da lotação dos presídios no País. Homens negros, por sua vez, têm o risco 1,5 vezes maior de ser preso do que um homem branco.   Em 2012, por exemplo, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, havia 191 brancos encarcerados, enquanto para 100 mil habitantes negros, 292 negros encarcerados. Pela análise do relatório do Mapa do Encarceramento no Brasil (2015) constata-se que o crescimento da população carcerária brasileira segue em paralelo com o crescente encarceramento dos negros.

A seletividade e a estigmatização do sistema penal ficam evidenciadas na criminalização e no encarceramento dos negros e miseráveis. Os negros e os pobres são os principais alvos da repressão penal. Repressão que se inicia com a atuação policial, mas que é corroborada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.  Não resta dúvida que o sistema de criminalização, tanto primária e, notadamente, a secundária, atinge majoritariamente os mais vulneráveis da população.

A política de drogas adotada aqui por influência norte-americana tem levado milhões de pessoa à morte e outros ao cárcere. Ressaltando que nessa guerra as principais vitimas são os negros e os pobres.

Uma visão menos romantizada e mais realista merece, assim, ser destacada, como sugerido no próprio documentário. Enquanto prevalecerem os discursos isentos ou restritos ao âmbito do Direito, serão permitidas desde as manifestações mais violentas de poder dirigidas contra os negros (assassinatos, chacinas, extermínios) quanto as mais sutis e subliminares (como a representada pela criminalização das religiões de matriz africana e do sistema de cotas enquanto política de ação afirmativa).

Necessário que a sociedade “branca” assuma a responsabilidade pela catástrofe humana sem precedente ocorrida a partir do dia em que o primeiro africano foi sequestrado e transportado para outras terras, para ser escravizado. Assumir a responsabilidade já representaria um pequeno passo para a compreensão do atual sistema violento e opressor no qual os negros são inseridos.  Não se pode negar que o racismo está presente na sociedade ainda que a escravidão tenha sido oficialmente abolida posto que os negros que outrora viviam nas senzalas hoje lotam as prisões.

A ocupação de espaços que não remontem à subserviência e dominação, e sim à independência, ainda se faz distante, mas, não impossível, desde que seja admitida a herança maldita do passado que sobrevive no presente, consubstanciada, por exemplo, na recorrente prática policial de pararem e suspeitarem de alguns devido à cor da pele.

Por fim, a mais terrível de nossas heranças, como assevera Darcy Ribeiro, “é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação, nos dará forças, amanhã, para conter os processos e criar aqui uma sociedade solitária”. [3]

Dia da consciência negra – Zumbi dos Palmares


Notas e Referências:

[1] Disponível em<http://emporiododireito.com.br/racismo-genocidio-e-cifra-negra-raizes-de-uma-criminologia-antropofagica-por-luciano-goes/

[2] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3ª ed.. São Paulo: Global, 2015.

[3] Ribeiro, Darcy. Op. cit. p. 91.


Sem título-1

. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .


Bárbara Bastos

. . Bárbara Bastos é Estagiária e Acadêmica de Direito da PUC-Minas. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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