Da Possibilidade Jurídica do Pagamento Direto das Parcelas Vencidas do FGTS. Por uma Interpretação Extensiva do Art. 20, VIII, da Lei nº 8.036/1990 - Por G. Couto de Novaes

24/11/2017

Nestas breves linhas pretende-se debater sobre a possibilidade jurídica de por meio de sentença ou acordo judicialmente homologado a Justiça do Trabalho determinar o pagamento, diretamente ao empregado, das parcelas vencidas do FGTS, notadamente, quando se tratar de caso onde o empregador jamais buscou efetuar a abertura da conta vinculada individualizada, junto à Caixa Econômica Federal e, consequentemente, não procedeu aos depósitos dos valores atinentes ao direito em tela.

Sabe-se que o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) fora instituído pela Lei nº 5.107/1966. Restando, pois, praticamente pacífico que, com o advento da Constituição Federal de 1988, oficializou-se no Estado brasileiro o FGTS como sistema constitucional de garantia remuneratória individual do trabalhador.

No que tange à sua natureza jurídica, assevera Maurício Godinho Delgado (2008, p. 1275) que “o FGTS a despeito de ser instituto de natureza multidimensional complexa, prepondera no Sistema a finalidade justrabalhista. ” Outrossim afirma Sérgio Pinto Martins (2008, p. 403) que “o FGTS na perspectiva do empregado possui natureza jurídica que deve ser compreendida como espécie de poupança forçada em proveito do obreiro”, e acrescenta: “não se devendo, assim, confundir-se com indenização, pois não se tem em vista apenas a reparação de um dano.”

Assim, se é certo que as contribuições do FGTS assumem, simultaneamente, caráter trabalhista e social, é inegável que o escopo preponderante do Fundo é o caráter trabalhista. Neste passo, atualmente tem-se estabelecido crescente jurisprudência favorável ao fundista, progressivamente ampliando o leque de possibilidade de movimentação do FGTS.

Em verdade, desde 1988 constata-se uma tendência de ampliação do caráter de disponibilidade dos valores presentes nas contas do FGTS, fato que muito se deve aos baixos níveis de rendimento do Fundo (incidência apenas da TR [taxa referencial] + juros de 3%/ano, ficando esse cálculo defasado, pois não reflete sequer a inflação).

Nessa esteira, não por acaso os dados da Caixa Econômica Federal, do ano de 2014, apontam que a cada 10 minutos 1000 pessoas sacam o FGTS. O que significa que por mês aproximadamente 3,5 milhões de trabalhadores sacam do Fundo. E ao longo de um ano, 40 milhões de empregados retiram o FGTS. Em 2014, p. ex., segundo os números da CEF, foram sacados R$ 86 bilhões das contas do Fundo.  Prova mais consistente não há da franca vocação do FGTS para um sistema de garantia remuneratória individual.

Atualmente, a legislação permite mais de 30 modalidades de saque, o que vem a corroborar que o Fundo paulatinamente vem assumindo feição de garantia monetária.  Já se permite que o FGTS seja oferecido como garantia de empréstimos consignados. Ademais já se vem autorizando até a transferência de recursos da conta do titular do FGTS para a aquisição de ações (vide art. 20, §15, da lei do FGTS), o que, de mais a mais, demonstra que é a casuística, quando não o oportunismo estatal, que vem definindo o destino dos valores que deveriam significar garantia remuneratória individual do trabalhador.

Desse modo, na vigência de um contrato de emprego em que o empregador jamais abrira a conta vinculada individualizada em nome do empregado, bem como jamais recolhera os respectivos valores referentes ao FGTS, uma vez ajuizada Ação trabahista, por meio da qual se cobra os referidos valores, é evidente que se afigura mais benéfico ao empregado que o Juízo determine que o empregador proceda ao pagamento direto e imediato das parcelas vencidas do FGTS, restando a determinação, também imediata, de abertura de conta vinculada em nome do empregado tão somente a fim de realização de depósitos das parcelas vincendas.

Então, note-se: em tais casos, por óbvio, a conta individualizada e vinculada do empregado ficou mais que “parada”, afinal, em verdade, tal conta nunca existiu. A bem olhar, portanto, ontologicamente falando, nada obsta a que se tome tais casuísticas como típicas situações de conta inativa.

Nesse passo, muito esclarecedor é consignar o tratamento que a Lei nº 8.036/1990, a chamada Lei do FGTS, no seu art. 20, inc. VIII, confere a tais situações que envolvem as contas inativas. Verbis: “Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações: (...) VIII – quando o trabalhador permanecer três anos ininterruptos, a partir de 1º de junho de 1990, fora do regime do FGTS, podendo o saque, neste caso, ser efetuado a partir do mês de aniversário do titular da conta.”

Muito mais interessante e revelador ainda, é observar que até o advento da lei nº 8.678/1993, que lhe deu nova redação, o indigitado inc. VIII, do art. 20, da Lei 8.036/1990, asseverava que autorizava-se o saque dos valores do FGTS da conta vinculada: “VIII – quando permanecer 3 (três) anos ininterruptos, a partir da vigência desta lei, sem créditos depositados.

Observa-se, portanto, que o dispositivo estabelecia como hipótese legal contingenciada de saque dos valores do Fundo a conta inativa, ou seja, sem créditos depositados, a partir do aperfeiçoamento do período de três anos ininterruptos. Ora, quando a Lei de regência assegura “o mais” ao trabalhador, afigura-se cristalino aos intérpretes e destinatários que, evidentemente, pode assegurar “o menos”.

É dizer: se a lei define como INATIVA uma conta que permanece ao longo de três anos ininterruptos sem receber créditos em depósito, por razões de lógica e essência, tanto mais deverá estender tão conceito jurídico, e seus respectivos efeitos, àquela situação concreta onde jamais o empregador procedeu à abertura da conta vinculada.

Portanto, defende-se aqui que se deva operar, nesse contexto, uma sinonímia axiológica/teleológica entre aquele conceito de conta inativa do art. 20, VIII, da Lei do FGTS e aquelas situações de inexistência de conta vinculada em nome do empregado, para que se condene o empregador negligente ao pagamento direto e imediato de todas as parcelas já vencidas referentes ao FGTS a que faz jus o respectivo empregado.

Assim, a supramencionada hipótese legal de saque quando a conta está inativa por 3 anos, é passível de ser semanticamente estendida, com o fito de se permitir o pagamento direto de parcelas vencidas do FGTS, em caso onde jamais houve abertura de conta ou recolhimento por parte do empregador em favor do empregado.

Tal interpretação é claramente autorizada por ambas versões do multicitado inc. VIII, do art. 20, da Lei 8.036/90, sobretudo é recomendada pela inegável riqueza valorativa carreada pela redação primeva do referido dispositivo, esta que conduz à interpretação mais consentânea ao espírito vocacional da lei de regência do FGTS, qual seja, servir de uma garantia remuneratória individual do obreiro.

De igual sorte, acrescente-se ainda que faz-se necessária, nesse contexto, interpretação também do art. 26, parágrafo único, da Lei nº 8.036/90, conforme a teoria do “diálogo das fontes”. Referido dispositivo é a norma que determina o recolhimento de valores referentes ao FGTS, devidos pelo empregador ao empregado, em conta vinculada a Caixa Econômica. Verbis:

“Art. 26. (...) Parágrafo único. Nas reclamatórias trabalhistas que objetivam o ressarcimento de parcelas relativas ao FGTS, ou que, direta ou indiretamente, impliquem essa obrigação de fazer, o juiz determinará que a empresa sucumbente proceda ao recolhimento imediato das importâncias devidas a tal título.”

O citado dispositivo legal, sobretudo pelo fato de ser largamente considerado entre os intérpretes especializados na matéria como um dispositivo meramente burocrático, não deve ser lido como um impedimento ao pagamento direto de parcelas vencidas (“ressarcimento de parcelas”) do FGTS. Ademais disso, a redação desse parágrafo único estabelece que o juiz determinará ao empregador sucumbente o RECOLHIMENTO imediato dos valores devidos ao trabalhador.

Ora, o vocábulo “recolhimento” apontado no texto legal, a depender do contexto, tanto poderá significar o depósito das importâncias em conta vinculada individualizada (é claro, apenas quando essa existe!), bem como “recolhimento” poderá tomar diversa roupagem semântica e revestir-se, noutro giro, em ato de pagamento direto imediato dos valores ao empregado.

E é neste diapasão que surge a necessidade de o aludido dispositivo ser manejado pelo “diálogo das fontes”. É dizer, parece claro que o art. 26, parágrafo único, não pode reinar em descompasso com todo o ordenamento justrabalhista pátrio e valores e direitos assegurados aos empregados no bojo do Programa Constitucional.

Outra não é a lição pioneira da professora Cláudia Lima Marques, que introduziu a teoria do “diálogo das fontes” entre nós. Veja-se:

“Diálogo” porque há influências recíprocas, “diálogo” porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo a opção por uma das leis em conflito abstrato – uma solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes) (BENJAMIN; BESSA; E MARQUES, 2013, p. 123).

Interessa assim asseverar que, para além do conteúdo do art. 26, parágrafo único, deve-se buscar o escopo da legislação trabalhista nacional como um todo, observando-se, dentre outros, o inafastável princípio da proteção do trabalhador, os demais postulados atinentes ao equilíbrio financeiro do obreiro, devendo-se mesmo consignar a força normativa do princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Por idênticas razões, também a teoria do “diálogo das fontes” auxilia na compreensão de que deve ser rechaçada argumentação que sustente a impossibilidade do pagamento direto das parcelas vencidas do FGTS pelo fato de que não haveria previsão legal positivada que o autorizasse. O “diálogo das fontes” enterra essa visão burocrática/utilitarista.

Contudo, não se desconhece certa visão que sustenta que o pagamento direto ao trabalhador das parcelas vencidas do FGTS prejudicaria o Fundo em sua dimensão social, pois, supostamente, tal procedimento impediria o aporte de valores ao Fundo, tais como os decorrentes da multa de mora e parcela de juros a que estariam sujeitos os empregadores inadimplentes, tendo como credor o Órgão Gestor.

Nesse ponto, deve-se ponderar que certamente a maneira mais hábil de se garantir a plena saúde dos aportes financeiros do Fundo seria que o SFIT (Sistema Federal de Inspeção do Trabalho) procedesse no sentido de ampliação das ações do Estado com vistas à prevenção e combate da inadimplência dos empregadores no que tange aos recolhimentos do FGTS.

Em outras palavras, não será a determinação de se pagar o FGTS diretamente ao obreiro, no contexto aqui exposto, que colocará o equilíbrio financeiro do Fundo em risco. Haja vista que o Fundo ademais incorpora, de muitas maneiras, recursos oriundos dos recolhimentos e depósitos vindos do empregador.

Neste sentido, o art. 2º, da Lei do FGTS, verbis: “Art. 2º. O FGTS é constituído pelo saldo das contas vinculadas a que se refere esta lei e outros recursos a ele incorporados (...)”. De sua vez, o §1º, do art. 2º, do mesmo diploma legal, estabelece e enumera ao longo de suas alíneas o que vem a ser os “outros recursos que integram o Fundo”.

Também o artigo 21, da Lei nº 8.036/1990 é bastante esclarecedor, verbis: “art. 21. O saldo das contas não individualizadas e das contas vinculadas que se conservem ininterruptamente sem créditos de depósitos por mais de cinco anos, a partir de 1º de junho de 1990, em razão de o seu titular ter estado fora do regime do FGTS, serão incorporados ao patrimônio do Fundo, resguardado o direito do beneficiário reclamar, a qualquer tempo, a reposição do valor transferido.”

E no mesmo sentir de que o pagamento direto das parcelas vencidas do FGTS não causa prejuízo ao Fundo, cite-se passagem de Parecer, onde, inclusive, a própria PGFN/CDA reconhece tal realidade (nº 1271/2015, p. 9, parág. 28): “O pagamento direto no bojo de ação trabalhista não tem, nem nunca teve qualquer efeito sobre a inscrição em dívida ativa ou os executivos fiscais ajuizados pela União ou pela CEF, uma vez que a coisa julgada só atinge aqueles que participaram do Feito, ex vi art. 472 do CPC.” [CPC/1973]

Nota-se, pois, que a tese principal daqueles que defendem a impossibilidade do pagamento direto das parcelas vencidas do FGTS (que tal prática prejudicaria o interesse do Órgão Gestor, e levaria o Fundo a um tal colapso financeiro), carece de consistência fática e jurídica. Afinal, o Fundo de que se trata é superavitário, tendo fechado o ano de 2016 com a cifra azul de R$ 15 bilhões, segundo dados do Órgão Gestor.

Pelo dito: é inegável que na complexidade da natureza do FGTS, prepondera aquele aspecto patrimonial, de garantia remuneratória individual do trabalhador. Além disso, na imensa maioria dos casos os valores discutidos são de pequena monta, dada a baixa remuneração da maioria dos empregados brasileiros, sendo patente que o deferimento do pagamento direto, não desfalcará o Fundo. Por fim, o pagamento direito significará munir o empregado de recursos para acessar o Judiciário, sem os quais não poderia(rá) buscar a efetivação do seu direito, hipótese que significaria incentivar a negligência e a má-fé do mau empregador.

Notas e Referências

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. 

BRASIL. Lei 8.036, do dia 11 de Maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8036consol.htm ) Acesso em: 21/11/2017

BRASIL. Lei 8.678, do dia 13 de Julho de 1993. Dispõe sobre a concessão de benefício no pagamento da modalidade de saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8678.htm) Acesso em: 21/11/2017 

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7 ed. São Paulo: LTr, 2008. 

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2008. 

Parecer nº 1271/2015/PGFN/CDA

 

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