Por Felipe Bruno Santabaya de Carvalho e João Felipe Bezerra Bastos - 07/05/2016
INTRODUÇÃO
A crise institucional porque vivencia a sociedade brasileira chega a ser assustadora. Todas as três funções institucionais do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário, encontram-se submersos num verdadeiro “barco à deriva”. Esse fenômeno, sentido com mais fervor nos últimos dez anos, faz com que todos os atores sociais, de alguma forma, reflitam acerca do real papel institucional da Tríplice Institucional que conduz a organização do Estado brasileiro.
O presente artigo tratará especificamente da agrura que vem ocorrendo com o Poder Judiciário. A pesquisa, portanto, terá por objeto o estudo de um caso bastante debatido na atualidade e que vem suscitando imbróglios de toda arte, tendo posicionamentos favoráveis e antagônicos a essa postura ativista do Judiciário. Nesse momento, surge a necessidade de estabelecer uma diferenciação entre o que deve ser compreendido por “ativismo judicial exacerbado” e o que poderia ser reputado como “protagonismo judicial. Embora a linha seja bastante tênue, existe uma diferença primordial: enquanto o ativismo exacerbado consiste na conduta de o Judiciário decidir questões exclusivamente políticas, o protagonismo também decide questões de cunho político, mas o almejado é o plexo dos direitos e garantias fundamentais albergados pela CRFB/88. Assim, questionasse: qual deveria ser o limite de apreciação pelo Guardião da Constituição?
Nesse diapasão, eis que o tema do impeachment pulula novamente, seja nos clamores sociais, diante das inúmeras manifestações de cidadãos inconformados com a situação caótica porque perpassa o Brasil, tanto economicamente como politicamente, seja nos bancos acadêmicos, isso devido ao fato de que o próprio STF modificara o rito do impeachment, ao arrepio da Constituição. Frise-se que o ínterim do presente estudo não é se mostrar simpatia por essa ou aquela agremiação partidária, tampouco tracejar uma vertente ideológica de viés político. A linha argumentativa a ser esmiuçada, consistirá em analisar essa quaestio sob o viés exclusivamente jurídico, não olvidando a importância da Sociologia nem da Ciência Política no trato dessas delicadas questões que permeiam a sociedade brasileira.
Nesse aspecto poderia ser apresentada a seguinte questão: para ser preservado o Estado Democrático de Direito, de forma a fornecer uma maior legitimidade às decisões, não deveria ser pensada uma maneira de haver um controle que pudesse ser exercido por toda a sociedade, ainda que indiretamente? E ainda: Qual seria a instituição, com o respaldo constitucional que representaria esse desejo de toda a sociedade? A pesquisa então, se concentrar em analisar essas questões aqui levantadas, partindo da análise da judicialização como fenômeno contingencial e necessário, mas que ao mesmo tempo pode se tornar perigoso e avesso ao Estado Democrático de Direito.
1 UM BREVE ESCLARECIMENTO: JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL EXACERBADO (OU POLITIZAÇÃO) E PROTAGONISMO JUDICIAL
Não raras vezes, encontramos artigos científicos, dissertações e até mesmo teses de doutoramento que delineiam a prática do ativismo exacerbado (ou politização) e a Judicialização como sendo expressões sinonímias. Ocorre que discordamos de tal entendimento, todavia. Esta, na verdade, é uma prática legitimada pela própria Constituição, eis que todo o arcabouço normativo albergado pela Norma Cume gira em torno da concretização dos direitos individuais e sociais (estes últimos representam a categoria de direitos que muitas vezes são negligenciados pelo Poder Público, razão pela qual o Judiciário estaria legitimado para assegurar esse plexo de direitos). Já o Ativismo exacerbado é o uso indiscriminado do Poder, um abuso mesmo, eis que a conotação é exclusivamente política, não tangenciando nenhum aspecto atinente á juridicidade.
Na verdade, para imprimirmos uma maior clareza acerca dos dois conceitos supramencionados, podem ser estabelecidas as seguintes diferenças conceituais: na Judicialização, que é o gênero, uma parcela do poder político é transferida das instâncias tradicionais para o Poder Judiciário. Constitui, nessa monta, um fato. Já o Ativismo em sua forma exacerbada constitui um modo proativo de realizar a exegese da Constituição. Diversamente da Judicialização, o ativismo exacerbado não se enquadra como um fato, mas um ato do hermeneuta quando da interpretação da Carta Política.
A atitude antidemocrática do Supremo de tangenciar assuntos exclusivamente políticos e, portanto, fora de sua alçada não se exime de consequências nefastas. Isso é bem pontuado em uma insigne doutrina que entendem que acaba por ocorrer uma monopolização da agenda constitucional pelo Judiciário. Isso acaba por culminar, de acordo com essa importante doutrina em um apoderamento indiscriminado da Constituição. Em outras palavras, o autor a ainda utiliza as expressões em alemão “Hüter” ou intérprete/defensor da Carta Política e “Herr” ou em outros termos, o pretenso titular da mesma.[1]
O autor supramencionado fora extremamente feliz em suas colocações. Realmente, o STF é a Corte tracejada pela Constituição como aquela que incumbe a defesa da mesma. Contudo, isso não o torna o titular do Poder soberano, pois tal titularidade pertence a todos indistintamente, que o exerce tanto indiretamente, por meio de representantes eleitos, como diretamente, por meio dos instrumentos que promovem o debate democrático quais sejam: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei.
Conquanto a judicialização seja um fenômeno inevitável, face à lamentável atitude omissiva do Estado, cujos governantes acabam por se deixar levar pelo fascínio provocado pelo Poder, em que a principal consequência é sentida por toda a sociedade, cujos interesses são relegados a segundo plano. Isso acaba por conferir, em nossa compreensão, uma legitimidade para que o Judiciário possa analisar questões que tangenciem políticas públicas. Entretanto, isso não autoriza os excessos que vem incorrendo a Corte Maior do Brasil.
Prestadas essas breves elucidações, passemos a tratar especificamente das questões que dizem respeito propriamente à temática proposta no presente estudo nos tópicos seguintes.
2 O VAZIO LEGISLATIVO, A OMISSÃO LEGIFERANTE E A FALTA DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PROMOTORAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Um evento que marcou por discutir incisivamente acerca dos limites no que tange à postura do juiz no atinente à interpretação constitucional e suas limitações fora o XIV Congresso da Conferência Europeia das Cortes Constitucionais. Nesse Evento fora contextualizado o exemplo da Corte de Justiça do Estado da Geórgia nos Estados Unidos. No Congresso, entre outros conceitos foram trabalhados os de vazio legislativo e de omissão legislativa, com o fulcro de delimitar a atividade interpretativa dos magistrados no tocante à criação legiferante.[2]
Acerca da afirmação supra, devemos proceder à reflexão entre o que pode ser compreendido como vazio legislativo e omissão legislativa. Conquanto sejam expressões que inefavelmente tangenciem pontos convergentes, não constituem, por isso, expressões sinônimas. Enquanto na situação de vazio legislativo o Estado não contempla, em seu arcabouço normativo (e aqui se vislumbre como plexo de normas tanto regras como princípios) certas situações jurídicas, na omissão legislativa, muitas vezes ocorrem prejuízos no que tange à efetivação de determinadas normas constitucionais, que, conquanto tenham aplicabilidade imediata, sua eficácia é limitada.
A Constituição, representando o cume do ordenamento jurídico, seria dotada de sentimentos. Quando estes são pertinentes à realização da justiça e da equidade, tais sentimentos afloram com maior densidade valorativa. Isso devido ao fato de que o Direito, ao mesmo tempo que é compreendido por muitos como um instrumento de dominação dos detentores de poder, busca o apaziguamento social. Caso não ocorra tal objetivo, um ressentimento constitucional inevitavelmente acontece.[3] Para bem contextualizarmos com fatos da atualidade, basta mencionar as diversas manifestações públicas nas ruas e avenidas de todo o país, demonstrando a extrema insatisfação com a inefetividade das políticas públicas promotoras dos diversos direitos sociais.
Essa noção, na nossa concepção reforça o que já era pronunciado por um autor de grande vulto internacional: trata-se da força normativa da Constituição, criação doutrinária de Konrad Hesse. Outro Autor igualmente relevante, de forma percuciente têm uma perspectiva bastante similar, na medida em que se posiciona no sentido de que, as variantes do que pode ser compreendido como poder sofrem a limitação do próprio Ordenamento Jurídico.[4]
As ideias acima expostas se complementam. Uma porque vislumbra a constituição como o prospecto dos próprios anseios existentes na sociedade como um todo. A outra porque expande as funções do direito, pondo este na sua real função qual seja: a de ser algo que almeja primordialmente o atendimento do que pretendera o texto da Norma Ápice, no sentido de constituir, de fato o direito como um meio que sirva a todos e busque acima de tudo a justiça, ainda que tal conceito irremediavelmente se modifique ao longo do tempo. E é nesse ponto que cabe fazer uma ponderação: pugnamos que não apenas a Sociedade faça emergir vertentes interpretativas diversas no texto constitucional, mas a força da Norma Cume também possui o mesmo efeito, tal como ocorre no ordenamento jurídico como um todo.
Essa reflexão se mostra pertinente à medida que não se pode conceber aquilo que se reputa como justo de forma engessada, sem levar em conta a realidade histórico-social da sociedade como um todo, eis que do contrário, estar-se-ia cometendo um grave engano. O que é justo atualmente, não é na mesma concepção do que assim era em épocas anteriores, isso se considerando apenas o ordenamento jurídico interno. Quando se vislumbra tal conceito em uma visão de direitos humanos, ou seja, os direitos fundamentais internacionalmente considerados, o tema se torna ainda mais ardoroso.[5]
Uma ideia que insiste em aparecer tanto a nível doutrinário como jurisprudencial, é a questão da reserva do possível, também conhecida como reserva do financeiramente possível. Tal ideia, cuja criação pode ser atribuída ao Direito alemão, não pode ser vislumbrada de igual modo no caso do Brasil. Isso porque esses dois países apresentam realidades sociais diametralmente opostas, o que representaria um verdadeiro contrassenso abordar de forma igualitária tão distintas economias.
O mínimo social seria o contraponto adotado pela doutrina que critica a reserva do possível. Sem tecer a maiores aprofundamentos que o tema em comento exigiria, eis que fatalmente nos retiraria do eixo temático a ser pesquisado por ocasião da tese de doutoramento, abalizada doutrina leciona acerca das diversas perspectivas em que devem ser vislumbrados os direitos sociais, seja por força da própria Constituição federal, que no caso brasileiro preceitua que os direitos fundamentais são de aplicabilidade imediata, seja como projeção da dignidade social da pessoa humana, como assim o é o direito ao trabalho, por exemplo.[6]
Para findar o raciocínio a que aludimos acima, urge que seja mencionada uma interessante vertente que, embora não seja da doutrina brasileira, é perfeitamente aplicável diante das novas tendências hermenêuticas exigidas pelos acontecimentos sociais. A aludida doutrina leciona de forma percuciente que o argumento dos exímios defensores da reserva do possível seria altamente contraditório porque todos os direitos e garantias contidos na Norma Ápice necessitam de dispêndios por parte do Estado, seja direta ou indiretamente.[7]
Realmente, o esteio de raciocínio da Autora mencionada, do ponto de vista da argumentação jurídica revela-se provido de fundamentação. Essa reflexão decorre do fato de que não é porque os direitos sociais possuam como característica a necessidade de uma legislação posterior regulamentando estes, que o Estado pode simplesmente alegar a falta dos recursos necessários para implementá-los. Isso seria como desdizer a força normativa da Lei Maior, como de fato vêm ocorrendo, especialmente em períodos de crise de índole política, econômica e social. A sociedade não pode ficar à mercê da ingerência do Estado no que tange à falta de responsabilidade e de probidade em relação a maneira como são geridos os recursos públicos.
Ainda refletindo de maneira crítica a invocação do financeiramente possível por parte do Executivo, uma recente decisão deve ser analisada com todo zelo, diante das implicações na forma como o Guardião da Norma Cume entende no caso do trato de políticas públicas. Tal posicionamento da Corte Maior do país constitui um verdadeiro marco no trato de questões políticas pelo Judiciário, e sua adequação, face a impotência, má vontade política, despreparo para gerir a máquina pública- podendo aqui se falar em verdadeira crise de governança, para não falar na corrupção, grande marca do Brasil, infelizmente. Até mesmo a governabilidade, vêm sendo posta em xeque devido a própria desconfiança da sociedade por parte de seus representantes, gerando crises políticas e sociais de consequências gravíssimas.
Feitos esses brevíssimos comentários individuais, passemos a analisar a decisão em comento, que, conquanto não seja dirigida aos direitos sociais, pode ser feita uma analogia, levando em conta a equivalência do grau de importância na Ordem Jurídica Constitucional. O voto do Ministro a cujo encargo coube a relatoria do processo teve como ponto de sustentáculo a tese de que o Poder Judiciário teria a competência de determinar à Administração, no sentido impositivo mesmo, de fazê-la proporcionar medidas que impulsionem o planejamento e a efetivação de políticas visando ao atendimento do respeito à dignidade dos presos, não havendo o Estado que invocar a reserva do possível bem como qualquer mácula à Separação de Funções.[8]
Não assiste razão, no entendimento compartilhado na presente pesquisa, aos que censuram esse entendimento. Os titulares da soberania não podem ficar à mercê da má vontade política de quem quer que seja. Se assim o fosse, não haveria de se falar em Estado Democrático, e sim em uma institucionalização da Aristocracia, termo de origem grega que significa a vulgata da Democracia. O que não pode ser tolerado é a prática constante e ilegítima da Corte Maior do país do ativismo exacerbado, cujas fundamentações, não raras vezes repousam em critérios exclusivamente políticos.
Por outra perspectiva, mas que converge para a aceitação da judicialização com certa parcimônia, em festejada tese defendida no ano de 2011, um professor cearense apresentou sua vertente acerca desse fenômeno jurídico. Para essa doutrina, para ser galgada a noção de Constituição como uma externalização de uma forma de poder, é preciso ter-se em conta a quaestio do legitimo em um Estado que seja concebido como democrático. Todavia, ao se carrear a noção de Lei Maior como moldura- cuja teorização atribui-se a Hans Kelsen, com consonância com o manancial principiológico existente na CRFB/88 não se pode negar a relevância da necessidade do poder de criatividade dos julgadores, sob pena de ser negado o que é prescrito pela própria Norma Cume.[9]
Esclareça-se, entretanto, que não estamos pugnando que haja uma “gastança desenfreada” por parte dos gestores públicos para se atingir um estado ideal de coisas nesse sentido. Porém, existem valores outros que possuem tamanha relevância (como indubitavelmente é a vida, por exemplo), que não se pode vislumbrar que, em nome de uma pretensão de um equilíbrio orçamentário, o Estado simplesmente exerça uma opção, que na compreensão aqui ventilada despe-se de qualquer grau de legitimidade, por menor que seja, de se abster de fornecer o necessário para o atendimento a certas necessidades inadiáveis.
Ora, a sociedade de maneira geral é a maior interessada na implementação de políticas públicas que disciplinem, inclusive direitos basilares como saúde, educação, saneamento básico e condições de trabalho. Para isso, a participação dos cidadãos (e aqui em todos os sentidos), eis que o exercício da cidadania, conforme já refletido no presente estudo não se esgota no exercício do jus sufragii mas adentra a epiderme inclusive da discussão sobre a definição das prioridades fundamentais.
Sob um aspecto internacional, há vozes na doutrina que sobrepõe o solidarismo como um axioma incontrovertível. Segundo essa vertente, o plexo de direitos que se enquadram na dimensão da solidariedade, em diversas vezes se adéqua a direitos de índole econômico, cultural ou social, ou seja, justamente os direitos de segunda dimensão. Para tanto, é mencionado o interessante texto do que vinha sendo discutido no âmbito da União Europeia (trata-se de uma proposta de Constituição única para a Europa). Adentrando acerca dos aspectos materiais, do aludido projeto, aduz que o mesmo contemplava direitos tradicionalmente estudados pela doutrina como de segunda geração, para a questão solidária, dentre os quais o trabalho e a proteção à saúde ao lado de meio ambiente e direitos consumeristas. O autor conclui que não se pode atribuir à solidariedade um complexo normativo fechado, numerus apertus.[10]
Acerca da lição supramencionada, incumbe que façamos as devidas observações. Os defensores de uma Constituição única, o fazem, sob o apanágio de uma corrente ideológica denominada de “neossocialismo”, movimento esse que teve início na América Latina. Também é característica dessa linha filosófica, a substituição da visão da pessoa do ponto de vista individual, para um campo mais ampliativo, de Ser Humano como essência. A temática é complexa e extremamente delicada, diante do fato de que envolve diferenças culturais, sociais, econômicas, políticas. Mas não deixa de ter um teor de extrema relevância, eis que indubitavelmente verte para a concepção de Estado Nação, mais humano e menos egocêntrico. Interessante também é o enquadramento dos direitos sociais no mesmo capítulo dos sobreditos direitos tradicionalmente reputados como de terceira dimensão. [11]
Acerca das considerações que acabamos de tecer, fulcral se faz que seja dada uma ênfase, ainda que sem a pretensão de exaurimento do debate, sobre a questão do relativismo e do universalismo, correntes cujos pontos de dissonância vêm ganhando cada vez mais sustentabilidade.
Embora, não se possa (ao menos no contexto fático) preconizar o que seja um sistema jurídico eivada da virtude da justeza, eis que as culturas dos diversos povos devem ser respeitadas, há pontos que podem ser obtidos por meio de um consenso, mas não no sentido interno dos Estados, mas na mesma corrente ideológica propugnada por um conhecido autor argentino, para quem, a solidariedade constituiria, em sua visão, em uma das sete vertentes- sendo estas as pilastras para a universalização de direitos fundantes de variadas ordens jurídicas.[12]
Por essas e diversas outras razões, é que cada vez mais o Poder Judiciário se vê envolto na árdua tarefa de decidir hard cases que ultrapassa aspectos meramente jurídicos, eis que implicam em decidir problemas relacionados justamente pela inércia dos outros dois poderes, notadamente do Executivo. Essa temática, embora já amplamente debatida nos meandros acadêmicos, não pode ser deixada de lado, pois está intrinsecamente relacionado com o eixo que optamos por abordar na presente pesquisa. Sem pretensão de esgotar o tema, serão feitas algumas considerações a seguir.
Em primeiro lugar, a questão da politização judicial ou judicialização da política como expressões sinônimas, possui diversas questões que provocam tensões, que podem ser assim resumidas: o fato do Estado estar inserido em um regime democrático, o princípio da separação de poderes, dentre diversas outras. Também não pode deixar de ser citada, ainda que superficialmente a corrente que procura desconstituir a judicialização qual seja, a do garantismo processual. Segundo propõe essa teoria a partir do momento em que o Judiciário adentra na esfera política, ocorreria, dentro dessa vertente, uma desconstrução das garantias albergadas pela Constituição no tocante ao processo que tem por caráter primário ser adjetivo e secundariamente teria o viés substantivo.[13]
Não assiste razão em parte à doutrina garantista, notadamente tendo-se em conta o caso do Brasil, em que o Executivo descumpre quase que de forma rotineira esse papel de promovedor de políticas públicas. Direitos sociais, especialmente os laborativos, vem sendo tolhidos de forma absurda, tanto por parte do Governo, que vêm fazendo um papel de verdadeiro algoz no que tange a não implementação de políticas públicas como pelos possuidores de imenso capital. No entanto, no tocante ao sentido político stricto sensu, cujo teor envolveria apenas assuntos de natureza política, sem que se vislumbre desrespeito aos preceitos da Lei Maior, realmente o Judiciário não poderia meditar nesses meandros exclusivamente políticos. Aqui, não há como respaldar eventuais pontos de discordância, cônscios do fato de que os próprios princípios ínsitos na Constituição, expressos ou não, servem como diretrizes limitativas desse exercício, que não deve enveredar para o ativismo exacerbado, este sim, altamente refratário a qualquer regime democrático.
Discorrendo sobre o fenômeno da politização do direito constitucional, especificamente no neoconstitucionalismo da União Europeia, mas não apenas, um renomado autor italiano leciona de maneira salutar, dando ênfase aos principais caracteres que desembocam em mudanças históricas em um cenário político dinâmico que:
Um processo di trasformazione degli ordinamenti politici (non solo dunque dell’ordinamento giuridico europeo) entro um generalizzato sviluppo di crescente neutralizzazione e tecnicizzazione che va assumindo i caratteri di um mutamento storico. Dal punto di vista del diritto costituzionale il passagio appare particolarmente traumático, poiché investe la sua stessa legittimazione: non proponendosi più essenzialmente come quel diritto che limita il sovrano (i detentori del potere politico), bensì come um diritto di natura fondamentalmente processuale.[14]
Aqui incumbe que seja realizada uma observação de cunho histórico, intrinsecamente imbricada com a Teoria Geral do Estado. É que o liberalismo preconizado pela burguesia detinha a visão de que ao Estado seria legado o papel de mero assegurador da liberdade dos indivíduos, fornecendo as condições para tanto. Dentro dessa visão limitada do papel do Estado, que, no entanto, não deixa de representar um imenso avanço quando se tem em mente o Totalitarismo, o fato é que o direito não seria, segundo a visão liberal, dotado do caráter de promotor da homeostase da sociedade como um todo.[15] Esclareça-se que possuir homeostase é a capacidade de se adaptar às mudanças. Aliás, essas vêm ocorrendo de forma assustadora nos últimos anos, em todos os setores, sendo ocasionadas por vários fatores.
O fato de que as constantes mutações sociais porque perpassa a sociedade brasileira, ocasionada em boa parte pelos impactantes acontecimentos que permeiam política, economia, bem como a rediscussão acerca do real papel institucional das funções de legislar, julgar e administrar, remete a uma necessária mudança que deve ocorrer para que a Corte Maior do país possa realmente cumprir o papel de guardião constitucional.
Passemos agora a analisar a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal no tocante ao procedimento de abertura do processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, salientando conquanto, que não adentraremos nos aspectos meritórios no tocante à justeza, adequação bem como nos absteremos de proferir qualquer juízo de valor sobre os motivos ensejadores desse procedimento. Portanto, a abordagem se limitará a tecer breves reflexões sobre a decisão do STF no pertinente ao rito do Impeachment da Chefe do Poder Executivo.
3 DA CONDUTA ADOTADA PELO SUPREMO NO TOCANTE À MODIFICAÇÃO DO RITO DO IMPEDIMENTO DA CHEFE DO PODER EXECUTIVO: ATITUDE DIGNA DE APLAUSOS OU DIAMETRALMENTE REFRATÁRIA AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?
Não se almeja em uma pesquisa de tão limitadas dimensões fazer uma abordagem sobre todas as vertentes sociológicas, filosóficas e de Ciência Política que um tema dessa magnitude demanda. O almejado aqui é tentar tracejar, em parcas palavras fora amplamente divulgado pelos diversos meios de comunicação, que o Supremo Tribunal Federal procedeu à uma atitude, no mínimo questionável. Simplesmente olvidando sobre o rito que está disposto na CRFB de 1988 que disciplina acerca da escolha das Comissões de parlamentares que irão compor o processo de impedimento, a Corte Maior do país foi que estabeleceu uma nova escolha, com votação aberta, sendo que tal atribuição ficou a cargo do Senado.
Independentemente da posição que se tenha sobre uma suposta ausência de governança ou governabilidade por parte do atual governo, há de se meditar sobre o seguinte questionamento: a incumbência institucional do STF abarcaria inclusive questões imbricadas com procedimentos eminentemente políticos, como no caso da atribuição ao Senado da escolha da comissão de parlamentares que irão proceder à instauração do pedido de impedimento?
Entendemos que não. O texto constitucional é de interpretação cristalina, cuja simples leitura gramatical já permite inferir-se acerca de qual o procedimento que deve ser observado no que tangencia processos de impedimento contra o Chefe do Executivo Federal. Portanto, a atitude da Corte Maior do Brasil, cujo desiderato deveria ser a guarda da Constituição Federal de 1988, gera uma profunda instabilidade, não apenas política, mas de certa forma, que diz respeito a todos, indistintamente.
O que está sendo objeto de discussão é a insegurança jurídica que o Supremo acaba por promover com atitudes assim. Um descumprimento arbitrário da Constituição adquire contorno de ainda maior gravidade quando quem o pratica é aquele que deveria resguardar a Norma Cume contra arbitrariedades que culminem na transgressão à normatização constitucional.
Com tais afirmações, não temos a pretensão de deixar transparecer, como poderia, à primeira vista em demonstrar sermos excessivamente positivistas, na acepção kelseniana do termo. O que não podemos tolerar é essa postura da Corte, completamente desnuda de parâmetros axiológicos e racionais que justifiquem tal conduta nociva às regras do jogo democrático. O impedimento de uma Presidente que, deixando de analisar aspectos de ausência de governança ou governabilidade, e que fora eleita democraticamente, também deve ser impedida (incorrer em flagrante legalidade), se for o caso, sob os auspícios de tal atributo.
Portanto, na compreensão por nós compartilhada, o Supremo incorrera em gravíssima mácula ao Estado Democrático de Direito ao modificar de maneira que beira ao absurdo o plexo procedimental que decide sobre uma questão de grande relevância para todos: o afastamento de uma pessoa que, conforme modelo republicano brasileiro exerce de forma concomitante as atribuições de Chefe de Governo e Chefe de Estado, deve observar ao que disciplina a Constituição pois, do contrário, o desrespeito à mesma será encarado da forma mais natural possível, o que é incompatível com qualquer Estado que minimamente possa ser vislumbrado como Democrático de Direito. E esse fulcro vai além do exercício de sufrágio, se tivermos uma visão mais ampliativa sobre o conceito de democracia.
Então, o que poderia ser feito para que, arbitrariedades como essa possam, de alguma forma, passar pelo crivo de todos os atores sociais, considerando que, se o objetivo for adquirir um viés de maior legitimidade necessariamente deverá haver uma abertura para um debate democrático em que, todos possam participar, ainda que indiretamente? Essa dúvida será respondida no tópico seguinte.
4 DA OAB COMO POSSÍVEL LEGITIMADA PARA REPRESENTAR OS INTERESSES DA SOCIEDADE NO PERTINENTE AO EXERCÍCIO DE UM CONTROLE SOCIAL PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A CRFB de 1988 assegura a tutela jurisdicional do Estado. Nesse diapasão, o texto albergado pela Constituição, especificamente no art. 133, a Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, é uma instituição crivada pelo caráter da fundamentalidade, sendo crucial para que os cidadãos consigam, de fato, alcançar a tutela jurisdicional do Estado. Não obstante, por diversos fatores, desde o aviltamento da profissão de advogado, desfazendo em demasia o prestígio que a Instituição possui, até a observância nas secretarias dos fóruns de comportamentos extremamente desrespeitosos tanto por parte de magistrados como de juízes, põe em xeque inclusive a fundamentalidade do advogado perante a população de maneira geral.
Sobre o que acaba de ser exposto, poderia haver a seguinte dúvida: qual a relevância de se colacionar na presente pesquisa esse deplorável cenário de crescente desvalorização e desprestígio da profissão de advogado com a temática da politização objeto de nosso presente estudo? No fato de que reputamos ser a OAB a instituição que, em tese, melhor representaria os atores sociais como um todo caso seja vislumbrada uma maneira plausível de se exercer um controle perante o Poder Judiciário. E isso ao mesmo tempo seria uma maneira de a Instituição resgatar inclusive a sua credibilidade perante a sociedade.
Nessa seara de raciocínio, a melhor forma de se controlar o judiciário é através da sociedade. Considerando que o Executivo e o Legislativo sofrem controle interno e externo, ao passo que o Judiciário somente exerce o controle interno, não paira dúvida de que uma forma legítima de se proceder ao resgate da legitimidade e de certa forma se promover uma estabilidade social, é controlando o Judiciário. A dúvida a ser perquirida é a seguinte: quem controlaria aquele que controla? Tal controle deveria ser feito pelo Executivo, pelo Legislativo, ou por ambos? Em caso contrário, qual seria a alternativa mais adequada?
Conquanto muitos ainda insistam que a atuação do Judiciário deva ser livre e independente, inclusive sendo tal atribuição institucional alçada no manancial de direitos humanos disciplinado em Convenção Internacional, concordamos, mas com certas ressalvas. Os Membros do Judiciário, por não terem sido eleitos de forma democrática, devem ter um controle externo[16], em que pese este (no nosso entendimento) não deve ser exercido por meio do Poder Executivo nem do Legislativo, mas pela sociedade, por meio de uma Instituição como a OAB, cuja natureza sui generis bem como a atribuição constitucional consubstanciam elementos que permitem crer que essa instituição possa representar a sociedade no intuito de exercer a fiscalização visando coibir práticas antagônicas com o princípio democrático, em especial, o STF.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que a judicialização é um fenômeno que se mostra necessário dadas as circunstâncias vivenciadas pela sociedade brasileira. Todavia, em sua dimensão vulgarizada – o ativismo exacerbado- deve ser expurgada da ordem jurídica, pois macula de maneira esférica e conjuntamente o princípio da segurança jurídica e o princípio democrático.
Perquirindo sobre as três funções estatais – Executiva, legislativa e Judiciária, tem-se que apenas o Judiciário é que sofre um controle exclusivamente interno. Os outros dois, são controlados interna e externamente. Pugnamos que tal disparidade não se adequa à um Estado que possa ser visto como tangenciado pela adjetivação- Democrático de Direito, razão pelo qual o controle externo do Judiciário pode ser vislumbrado como conditio sine qua nom para o estabelecimento de um parâmetro de legitimidade no que pertine ao processo de judicializar.
Nesse contexto, todos os atores sociais devem participar dessa atividade fiscalizatória. Conquanto o controle deva ser social, este deve conter critérios razoáveis, no sentido de que, de forma geral, deve-se partir da premissa de que quem controla o judiciário e em específico o Supremo, deve ser dotado de conhecimento técnico e holístico do ordenamento jurídico como um todo, no sentido de fornecer um maior respaldo e segurança jurídica para a sociedade. E essa instituição não poderia ser outra que não a OAB.
Notas e Referências:
[1] VERDÚ, Pablo Lucas. La Constitución em la Encrucijada (Palingenesia luris Politici). Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Politicas, 1994, p. 75-76.
[2] AUTOR DESCONHECIDO. Problems of Legislative Omission In Constitutional Jurisprudence. In: <http://ojs.idp.edu.br/index.php/observatorio>, acesso em: 04/04/2016.
[3] VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 53-69.
[4] MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 23.
[5] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 29.
[6] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Portugal: Coimbra Editora, 2010, p. 191.
[7] ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 22.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário n. 592.581. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgamento em 13/08/2015. Voto do relator disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2637302>. Acesso em: 24. jul. 2016.
[9] ALBUQUERQUE, Felipe Braga. Direito e política: pressupostos para a análise de questões políticas pelo judiciário à luz do princípio democrático. 198 f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) - Universidade de Fortaleza. Fortaleza: 2011, p. 139-140.
[10] PÉREZ LUÑO, Antonio Henrique. Las generaciones de derechos humanos. REDESG-Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global, v. 2, n. 1, jan. /jun. 2013, p. 163-196, p. 169.
[11] Embora tenha seus méritos, essa vertente peca pelo fato de que ignora a diversidade cultural. Conquanto teçamos essa crítica, não podemos deixar de ressaltar que ele tem seus méritos. Recentemente se tentou implantar uma Constituição única na Europa, algo que fracassara. Embora no plano fático seja algo um tanto utópico, o movimento do “constitucionalismo do futuro” tem premissas que visam uma melhor distribuição de bens, maior equidade na repartição dos bens da vida e por via de consequência uma maior justiça social.
[12] DROMI, José Roberto. La Reforma Constitucional: El Constitucionalismo del “por-venir”. In: ENTERRIA, Eduardo Garcia de; ARÉVALO, Manuel Clarevo (coord). El Derecho Público de Finales de Siglo: Uma Perspectiva Iberoamericana. Madrid: Fundacíon BBV, 1997, p. 107-116, p. 108.
[13] URBINA, Francisco Zuñiga. Activismo judicial versus garantismo procesal y tribunal constitucional. In: LEAL, Rogério Gesta; LEAL, Mônica Clarissa Hennig (Org.). Ativismo judicial e déficits democráticos: Algumas experiências latino-americanas e europeias. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS, 2011, p. 66-67.
[14] AZZARITI, Gaetano. Verso un governo dei giudici? Il ruolo dei giudici comunitari nella costruzione dell’Europa politica. In: LEAL, Rogério Gesta; LEAL, Mônica Clarissa Hennig (Org.). Ativismo judicial e déficits democráticos: Algumas experiências latino-americanas e europeias. Rio de Janeiro: LUMEN JURIS, 2011, p. 27. Em tradução livre de nossa autoria: Um processo de transformação da ordem política (não somente do ordenamento jurídico europeu) dentro de um desenvolvimento geral do crescimento da neutralização e da tecnicização, características que vão assumindo uma mudança histórica. Do ponto de vista do direito constitucional a passagem é particularmente traumática, porque é posta em questão a sua própria legitimação: não se propor mais em sua essência como a lei que limita o soberano (o detentor de poder político), mas como um direito de natureza fundamentalmente processual. E aqui cabe uma ressalva: o Direito têm sim como foco principal, ao menos o Direito que prime pela Justeza, o desiderato principal impor um limite aos que possuem poder. O que o Autor procura transmitir, em nossa visão, é a dificuldade de assimilar as transmutações político-jurídicas.
[15] IRTI, Natalino. L’etá della decodificazione. Milano: Giuffrè, 1999, p. 22.
[16] BERCOVICI, Gilberto; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Judiciário e STF não só podem, como devem ser controlados. 03 maio/2013. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/politica/bercovici-e-barreto-lima.html>. Acesso em: 19/04/2016.
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. Felipe Bruno Santabaya de Carvalho é Advogado e professor. Pós-graduando em Direito e Processo Eleitoral pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIFOR. Mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela Universidade Federal do Ceará-UFC. Sócio na BSA- Advogados Associados. Site: www.bsadvogados.info Veja Lattes em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4244614Z6
. João Felipe Bezerra Bastos é Advogado e professor. Pós-graduando em Direito e Processo Eleitoral pela Universidade de Fortaleza- UNIFOR. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL. Mestre em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela Universidade Federal do Ceará- UFC. Sócio na BSA- Advogados Associados. Site: www.bsadvogados.info Veja Lattes em: http://lattes.cnpq.br/4407065388535633
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