Da Judicialização da Política ao Ativismo Judicial – Por Rosivaldo Toscano Jr.

28/09/2016

Semana passada, demos início a uma séria (aqui) muito importante para compreendermos o papel que o Judiciário vem exercendo na vida social, onde reside a legitimidade de suas decisões e quais os seus limites. Enfim, qual a relação que deve(ria) se estabelecer entre o juiz e a normatividade. Começamos falando sobre os significados de poder “potestas”,[1] poder “potentia” e poder obediencial.[2]

Hoje, abordaremos mais alguns conceitos importantes.

A centralidade do Poder Judiciário hoje é inegável. A judicatura entrou, definitivamente, no dia-a-dia da vida administrativo-política brasileira, interagindo, interferindo ou condicionando tanto a efetivação de direitos fundamentais, quanto a definição de quais as políticas públicas para o atingimento desses fins pelo Estado. Diz Streck,

“[…] no Estado Democrático de Direito, ocorre certo deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional. Pode-se dizer, nesse sentido, que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia; já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário”.[3]

O problema é definir qual o limite dessa intervenção. É divisar o ativismo judicial da inevitável judicialização da política. Um Governo com um Judiciário ou um governo do Judiciário. Um Governo assentado na Constituição ou um Governo na toga e na vontade individual de quem a veste.

Para tanto, faz-se necessário o resgate da origem do ativismo no seu berço, o constitucionalismo norte-americano, como se deu sua importação e os efeitos aqui, diante da forma com que se fez a referida transposição das teorias. E nessa tarefa nos ancoramos no trabalho mais atualizado hoje, de autoria da jurista gaúcha Clarissa Tassinari.[4] Segundo ela, para a compreensão da judicialização da política é preciso estabelecer a existência de três elementos que se entrelaçam: Direito, Política e Judiciário. Em relação aos dois primeiros, é inegável que há uma relação entre ambos. Não por menos, “o constitucionalismo pode ser definido como uma tentativa jurídica (Direito) de oferecer limites para o poder político (Política), o que se dá por meio das Constituições.”[5]

É inegável que a Constituição, em sua formação, teve um elemento político. Houve escolhas (conteúdo político) na decisão de instituí-la e no seu processo de elaboração (forma de Estado, forma de Governo, regime de Governo, sistema econômico, etc.). Isso refletirá futuramente nos sistemas jurídico, político, econômico e social balizados pela Constituição. O problema se lança quando a Política passa a ser utilizada judicialmente como um argumento corretivo do direito,[6] tornando-se o que Lenio Streck chama de “predador externo da autonomia do direito”.

A origem da judicialização da política é social e contingente. Ela não advém de uma vontade do julgador ou do Judiciário como um todo. É fruto de um reposicionamento do Judiciário feito pelo constitucionalismo pós-guerra e sua pretensão de transformação da sociedade. Para tanto, as Cartas Constitucionais trouxeram consigo um rol mais amplo de direitos (tanto em número quanto em grau – p. e., direitos difusos). Mais direitos geram mais demanda e, em razão de sua não implementação pelo Estado e/ou o não reconhecimento pelas instituições privadas, dá-se o aumento da litigiosidade, transferindo a resolução desses litígios ao palco judicial.[7]

Como salienta Tassinari, a judicialização é muito mais uma constatação do que vem ocorrendo na contemporaneidade do que uma postura a ser identificada (como positiva ou negativa) do Judiciário.[8]

Já em relação ao ativismo judicial, este ocorre quando o Judiciário – que deve se pautar pelo respeito à normatividade (isto é, decidir por meio de argumentos jurídicos), desvirtua sua atuação via argumentos morais ou de política. Se o fundamento da atuação do Judiciário é, exatamente, a existência de lesão ou ameaça de lesão a direito, é paradoxal quando em sua decisão ele lança argumentos extrajurídicos (morais ou de política) como razão de decidir. Como se pretender restabelecer a normatividade violando-a com argumentos que a desconhecem?

No mesmo sentido, Streck, para quem “um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados)”.[9]

O argumento jurídico reflete o respeito à normatividade – é uma garantia para o cidadão de que no julgamento pelo Judiciário uma regra geral (o texto normativo), válida para todos os que estão no seu feixe de incidência (princípio da isonomia), está sendo individualizada (na geração da norma do caso concreto). Já um argumento de política ou moral advém de uma escolha pessoal do julgador, não estando previamente definido e nem constituindo uma regra geral. E por ter um conteúdo ideológico, como será visto no exemplo da Alemanha nazista, tem um alcance e gera consequências imprevisíveis… depois não podemos nos queixar do ditado que diz (com palavras menos elegantes) que de nádegas de recém-nascidos e cabeça de juiz ninguém sabe o que vem.

O juiz ativista age como se pudesse ser o arauto da moralidade e da correção política, esquecendo, porém, do déficit democrático de sua postura (fetichização do poder “potentia”). Infelizmente, ela permeia uma parcela não desprezível do corpo da magistratura. Seus efeitos são sentidos mais fortemente quando se materializam em decisões dos tribunais superiores, haja vista que, em face ao fenômeno da hierarquização, a ser visto em colunas posteriores, há uma interdição parcial do discurso das bases – de modo a agirem com posturas ativistas, mas como uma espécie de prepostos dos grandes enunciadores de juízos prévios. Em todo caso, da postura de autoridade para a de autoritário é só um pequeno passo para o magistrado, mas um grande abismo para a constitucionalidade.

Podemos enxergar o desvio da normatividade na práxis judiciária como efeito da vontade de poder se espraiando horizontal e verticalmente. Em seu sentido horizontal, torna-se prática em todas as instâncias judiciais. Em sentido vertical, impõe-se pela cúpula sobre as bases do Judiciário. Em sentido horizontal, podemos detectar três vertentes:

a) a atribuição inautêntica de sentidos – normas que não guardam relação de verdade (como fusão de horizontes e dentro de uma tradição) com o texto;

b) utilização de princípios ad-hoc e de conceitos assertóricos.

Em sentido vertical, identificamos as seguintes práticas e institutos:

a) o julgamento por citação de ementas judiciais descoladas da faticidade (common law à brasileira);

b) súmulas comuns e súmulas vinculantes;

c) os institutos da repercussão geral e dos recursos repetitivos.

O que é a atribuição inautêntica de sentidos? Por hoje é só. Na semana que vem, veremos. Explicaremos o rompimento da normatividade por meio das práticas acima elencadas. Até lá!

 

Notas e Referências:

[1] O poder “potentia” é o ser oculto, o poder da própria comunidade – e ”potestas” (o fenômeno, o poder delegado por representação, exercido por ações políticas através das instituições. Tudo que se chama “político”, para se legítimo, terá que se fundar, em última instância, no poder ”potentia”. Como apontado na coluna da semana passada, o poder político é clivado por uma diferença ontológica entre a “potentia” (o poder político existente difuso na comunidade política – fonte de todo poder estatal que é o povo) e a “potestas” (o mero exercício delegado do poder político institucionalizado). A “potestas” se cliva, novamente, no exercício obediencial do poder delegado, exercício realizado pelas ações e no cumprimento das funções das instituições políticas que respondem às exigências da comunidade política, do povo.

[2] Exercício obediencial no sentido de obedecer (ao povo, enquanto poder difuso e legitimante da autoridade) mandando.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 63.

[4] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[5] Ibid., p. 28.

[6] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 29.

[7] Acentua Lenio Streck que se “no paradigma liberal-individualista, trabalha-se ainda com a concepção de que o Direito é ordenador, o que, à evidência, caminha na direção oposta de um Direito promovedor-transformador do Estado Social e Democrático de Direito. Dito de outro modo, se no Estado Democrático de Direito o Direito assume uma função transformadora, torna-se evidente que a concretização das promessas da modernidade constantes em uma Constituição Compromissária e Dirigente demanda uma nova postura do Poder Judiciário (e em especial da Justiça Constitucional). Como bem lembra Fábio Comparato, ‘no regime democrático, o atributo maior da soberania popular consiste em constitucionalizar a nação’” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 571-572).

[8] TASSINARI, op. cit., p. 32.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Livraria Saraiva, 2011. p. 589, nota de rodapé 123.

 

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