Da (in)admissibilidade dos Poderes instrutórios do Juiz

29/01/2016

Por Luana Paschoal, Nohara Paschoal e Jorge Coutinho Paschoal - 29/01/2016

1. Introdução e os grandes sistemas de processo penal.

A discussão em relação às atividades - sobretudo, ao papel desempenhado pelo juiz - tem razões históricas e liga-se aos sistemas processuais penais, havendo três modelos distintos de atuação e pesquisa judicial, podendo-se listar (i) o inquisitório, (ii) o acusatório e (iii) o misto, os quais ditaram os rumos do processo criminal ao longo da história[1] e o modo de condução do processo pelo julgador.

Nos sistemas continentais, houve períodos em que o processo se iniciava por meio de acusação formulada pelo juiz, cabendo-lhe tanto o julgamento da causa como o papel de, inclusive, defender o acusado[2]. Tratava-se do sistema inquisitório. Apesar de já presente desde os tempos da Monarquia e do Império Romanos, sua lógica alcançou a maior expressão na investigação levada a cabo pela Inquisição, na Idade Média.

Com o passar do tempo, contudo, haja vista a gradual conscientização dos direitos do homem, percebeu-se que esse sistema não seria o mais correto (do ponto de vista epistêmico mesmo) e justo, pois o magistrado não poderia exercer adequadamente, e ao mesmo tempo, o papel de julgar, de acusar e de defender o imputado.

O magistrado, ao acusar, já está comprometido, desde o início do processo, com a tese acusatória, formulada por si desde o início. Não haveria qualquer isenção por parte do julgador, ao “julgar” alguém, se foi ele quem imputou o fato, em tese, delituoso. O julgador, ao formular, unilateralmente, a acusação, dificilmente voltará atrás em sua hipótese, autoconvencendo-se de que estaria errado. Assim, verificava-se que o juiz (inquisidor), buscava apenas demonstrar e provar a hipótese formulada, originariamente, por si. Para tanto, a fim de confirmar a tese suscitada, recorria-se, na raro, ao emprego da tortura, “um retrocesso, em matéria de prova”[3], fundada sob o argumento falacioso de que a verdade deveria ser investigada a todo custo.

Ao proceder dessa forma, o inquisidor, em realidade, não se preocupava em verificar a veracidade da suspeita levantada acerca de determinado evento, mas, tão-somente, de comprovar, por todos os meios possíveis, que a acusação formulada por si seria a mais justa e correta[4]. Não é à toa que o processo era sigiloso, correndo, muitas vezes, à revelia do acusado[5]. O imputado não era tratado como um sujeito de direitos, mas sim como mero objeto da investigação[6]. O dado marcante de um sistema como esse é que inexistia possibilidade de diálogo, sendo o magistrado o senhor supremo do feiro, o qual ditava as regras do procedimento conforme fosse de seu agrado[7].

Na verdade, como bem anota a doutrina, trata-se de um sistema em que não havia discussão (existia, em realidade, na expressão utilizada por Aury Lopes Júnior, um “desamor” ou, no mínimo, um desapreço pelo contraditório[8]), atuando o juiz, na maioria das vezes, exclusivamente para confirmar uma suspeita formulada unilateralmente por si.

Nesse modelo, em geral, vigorava, quanto à prova, um sistema tarifado[9], no sentido de que, para se condenar, seria necessária a produção de determinado tipo de prova, sendo cada uma delas valorada qualitativa e quantitativamente, de acordo com as regras e costumes da época. Por exemplo, um testemunho de alguém poderia valer mais ou menos que de outro. Dois testemunhos simples bastariam para aplicar a tortura.

A lógica da confissão decorria disso, na medida em que era considerada a rainha das provas, sendo, geralmente, obtida mediante a tortura.

Já no sistema assim denominado acusatório, oposto do inquisitorial, ao se separarem as funções de acusar, de defender e julgar, verificava-se que o juiz não mais se encontrava comprometido com qualquer tese, seja acusatória ou não. Estaria, assim, melhor assegurada a sua imparcialidade, pressuposto de qualquer processo minimamente justo. As características apontadas no sistema acusatório são a possibilidade de defesa pela parte, o seu tratamento não mais como um objeto, mas como autêntico sujeito de direitos, sendo o procedimento, em geral, público e orientado pela oralidade e diálogo.

Não há coincidência subjetiva entre órgão acusador e julgador, sendo criado um órgão à parte justamente para acusar. Daí decorre o nascimento do Ministério Público, o qual é parte (e, em sendo parte, é, obviamente, parcial!), residindo o seu surgimento para (ou, ao menos, assim deveria sê-lo) para proteção do indivíduo e dos direitos e garantias fundamentais de todos.

Como “meio termo” a esses dois sistemas, haveria o sistema misto, sendo exemplo mais significativo o sistema francês, surgido no período napoleônico, no Code d’ Instruction Criminalle de 1808. A investigação seria, em um primeiro momento, dirigida pelo juiz, em uma lógica ligada ao sistema inquisitorial, sendo que, depois, ao ser proposta a ação penal, isto é, a acusação formal, uma vez sendo instaurado o processo penal, haveria seu norteamento de acordo com a lógica acusatória, com as partes atuando[10].

Esse foi o procedimento adotado (e ainda o é) em parcela da Europa, com os juizados de instrução, em que a investigação era direcionada pelo juiz. Entre nós, tal tipo de mecanismo encontra alguma guarida, só que de um modo diferente (embora a lógica seja absolutamente a mesma), pois a investigação preliminar não é comandada por um juiz, mas sim pela polícia.

Registram-se, contudo, as críticas endereçadas a esse modelo. Afinal, sob a escusa de haver uma fase processual posterior, em que seriam observados os mais básicos direitos e garantias fundamentais, o que se verifica, na prática, é a tolerância quanto a todo tipo de ilegalidade cometido em sede de investigação preliminar, cujos abusos, não raro, acabam contaminando todo o processo penal a ser deduzido. A questão é que ao não se delinear, seja na lei, seja na jurisprudência, um sistema sancionatório mais satisfatório desses vícios[11], fecham-se os olhos para uma série de arbitrariedades.

O processo vira mera encenação, chancelando os elementos colhidos – não raras vezes, ilegalmente - em sede de inquérito, conforme ressaltado por ampla doutrina.

Em resumo, e do quanto exposto acima, pode-se verificar que, em geral, o sistema inquisitório é identificado com um modelo de processo autoritário, sendo o modelo acusatório um ideal de processo justo e democrático. Modernamente, em Estados Democráticos de Direito, o processo, evidentemente, procura seguir a lógica acusatória, em que pesem as deturpações decorrentes do sistema misto.

Na verdade, ao se seguir uma vertente de cariz mais acusatória, mediante o diálogo entre as partes envolvidas, mediante o contraditório, o processo acaba ganhando em informação (valor heurístico), havendo, dessa maneira, maiores chances de se chegar a uma solução mais correta[12]. O método dialético, afinal, é, até hoje, uma das mais profícuas (e antigas) formas de se obter e chegar ao conhecimento[13].

Portanto, ao afastar o juiz da controvérsia, preserva-se a sua equidistância dos fatos e das partes, residindo aí umas das maiores discussões no processo (sobretudo o penal), quanto à conveniência/possibilidade de o juiz nutrir poderes instrutórios, e de sua eventual compatibilidade com um devido processo penal (material). Vamos à sua análise.

2. Os poderes instrutórios do juiz, os sistemas processuais e o debate na doutrina. 

A doutrina se divide quanto à possibilidade de haver poderes instrutórios no processo moderno, havendo os que são a favor e os que são contrários. Comecemos pelos que admitem essa possibilidade.

Aos defensores dos poderes instrutórios do magistrado, argumenta-se que a essência da divisão entre o sistema acusatório e inquisitório diria respeito, apenas, à separação inicial entre as funções de acusar, julgar e defender. Havendo esta separação, a possibilidade de o juiz, depois, desde que supletivamente à atividade das partes, autorizar a produção de determinada prova de ofício não infringiria a lógica do sistema acusatório[14].

Um dos argumentos da doutrina favorável aos poderes instrutórios do juiz reside no fato de o processo, atualmente, ser regido pelo princípio publicístico[15], sendo a sua função, de um lado, a pacificação social e, de outro, a busca da verdade.

Uma vez proposta a ação, é como se o processo ganhasse vida própria, tendo impulso oficial, não dependendo da atividade exclusiva das partes. Alega-se que, em um Estado Social de Direito, as regras processuais vão muito além do interesse das partes, estando a serviço dos interesses de toda a sociedade, em prol do justo processo.

Nesse sentido, seria de rigor haver poderes instrutórios do juiz, ressalvando a doutrina, contudo, que essa iniciativa deveria ser sempre supletiva à atividade das partes. É dizer, o juiz nunca poderia ir à procura, melhor dizendo, sair à caça dos elementos indiciários, como se fosse um detetive desvairado; limitar-se-ia apenas aos elementos de prova trazidos pelas partes, podendo ostentar poderes instrutórios a fim de dirimir dúvida sobre algum ponto relevante da produção da prova pelas partes[16], o que, inclusive, poderia beneficiar a defesa; afinal, segundo se afirma, o magistrado não teria como saber qual será o resultado da prova, sendo que os poderes instrutórios poderiam ser utilizados a favor do réu. Por exemplo, na colheita da prova testemunhal, havendo referência a documentos ou pessoas que poderiam trazer maiores esclarecimentos sobre os fatos, nada impediria que o juiz determinasse a colheita desses elementos ou a ouvida da testemunha referida.

Outro argumento a favor dos poderes instrutórios do julgador reside na premissa de parte da doutrina de que essa possibilidade, a princípio, não violaria o sistema acusatório, pois, na realidade, nunca houve sistemas processuais puros[17]. Assim, o sistema acusatório tanto poderia conviver com a total ausência de poderes instrutórios (na vertente do sistema anglo-americano do adversarial system) ou com a sua presença (na vertente inquisitorial system, do modelo de Common Law).

Haveria, dessa maneira - ao ver de parte da doutrina - confusão entre o sistema acusatório e inquisitório dentro da lógica de direito continental com o que existe no sistema adversarial e inquisitorial, próprio do ordenamento jurídico anglo-americano[18], sendo modelos completamente diversos. Apenas no último caso (lógica anglo-americana) haveria delimitação quanto à existência ou total ausência de poderes instrutórios, não se aplicando tal sistemática aos sistemas continentais, como o nosso.

Assim, na esteira das ponderações de Marcos Alexandre Coelho Zilli, segundo parte da doutrina, o sistema acusatório tanto pode conviver com a lógica do sistema de common law adversarial como com sua vertente inquisitorial.[19]

Por seu turno, acrescenta Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró que “não há, pois, relação necessária entre o poder do juiz, em especial o de determinar a produção de provas, com modelos de Estados autoritários ou mesmo sociais. Em suma, a relação entre os poderes das partes e do juiz no processo civil não teria fundamentos políticos ou ideológicos”[20].

Pontua-se, outrossim, que, uma vez sendo o julgador o “destinatário” das provas, “ninguém melhor que o juiz, a quem está afeto o julgamento, para decidir sobre a necessidade de produzir determinada prova. Como ele é destinatário dela, pode avaliar quais os meios de que necessita para formação de seu convencimento. Nessa medida, e considerando o escopo da atividade jurisdicional, a colheita de elementos probatórios interessa tanto ao juiz quanto às partes”[21].

Outro ponto utilizado a favor dos poderes instrutórios refere-se ao fato de a atividade instrutória do juiz poder servir para concretizar o princípio maior da isonomia processual, na medida em que a atividade do juiz, de certo modo, compensaria a atuação da parte hipossuficiente (precisamente o acusado), evitando decisões injustas[22].

Alega-se, ademais, que o juiz, ao pedir a produção de uma prova, não estaria sendo parcial, isto é, não estaria abraçando tese alguma, ou sendo simpático a quem quer que seja, já que não teria como prever o resultado da prova, que tanto poderia ser prejudicial à parte quanto benéfico a ela[23]. Diz-se que imparcialidade e passividade do juiz não podem ser confundidas, não havendo mais lugar para juiz impassível – o “magistrado samambaia” - isto é, aquele indiferente, que nada faz, até o momento da sentença[24].

Por fim, pondera-se que os poderes instrutórios do magistrado se inserem no processo moderno, não mais ligado à noção de processo individualista, de interesse das partes. Nesse sentido, José Roberto dos Santos Bedaque afirma que “aquilo que se convencionou chamar de processo acusatório, em que os poderes de iniciativa das partes são levados a extremos, resulta de um individualismo político e filosófico já ultrapassado, pois não atende à realidade socioeconômica do Estado moderno, cuja atividade é toda voltada para o social”[25].

A título meramente ilustrativo, defendem os poderes instrutórios do juiz, dentro do direito processual penal: Ada Pellegrini Grinover[26], Antonio Scarance Fernandes[27], Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró[28], Marcos Alexandre Coelho Zilli[29] e Vicente Greco Filho[30], apontando esses doutrinadores, em geral, que a medida é possível, desde que seja (1) observado o contraditório, na produção da prova, (2) desde que a decisão do juiz seja motivada e (3) a desde que a prova seja produzida de forma lícita e legítima[31]. Na doutrina estrangeira, a favor dos poderes instrutórios, cf.: Michele Taruffo[32].

Os que são contrários aos poderes instrutórios do juiz no processo alegam que, com esta possibilidade, o sistema acusatório restaria vulnerado, na medida em que a sua característica essencial – muito mais que se restringir à mera separação entre a função de acusar, defender e julgar - diria respeito à gestão da prova pelas partes[33].

Alega-se que a possibilidade de haver atividade instrutória pelo magistrado, mesmo que seja supletiva à atuação das partes, vulneraria sua imparcialidade, passando o juiz a abraçar, ainda que inconscientemente, a tese de um dos litigantes.

Como expõe Geraldo Prado, “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”[34].

Afirma-se, também, que os poderes instrutórios vulnerariam o “in dubio pro reo”[35], decorrência do princípio da presunção de inocência, de não consideração prévia de culpabilidade, na medida em que – na hipótese de haver dúvida razoável durante o curso do procedimento - esta sempre militaria a favor do acusado. É dizer, ao se ordenar, unilateralmente, a produção de determinada prova, o juiz já estaria diante de uma dúvida razoável, pois, senão, seria desnecessário requisitar a produção da prova de ofício.

Diante da dúvida, haja vista a máxima do “in dubio pro reo”, em vez de determinar a produção de prova, deveria o magistrado julgar a questão favoravelmente ao imputado. Nesse diapasão, a possibilidade de o magistrado ostentar poder instrutório, ainda que mínimo, sempre prejudicará o acusado, pois, da produção da prova, ele pode sair do estado de dúvida em que se encontrava (o qual deveria ter implicado a absolvição), podendo chegar ao estado de certeza para a condenação.

A doutrina refratária aos poderes instrutórios do juiz acrescenta que o fato de não haver sistemas processuais puros não impede que se consiga chegar (ou mesmo vislumbrar) um núcleo essencial, um “princípio informador”[36] de cada sistema, sendo que, para os que são contrários à atividade instrutória do juiz, o núcleo fundamental residiria justamente na gestão da prova, que deveria ficar a cargo, exclusivamente, das partes.

3. Nosso entendimento

Particularmente, acompanhamos o entendimento dos autores que discordam que o magistrado possa ter poderes instrutórios. Melhor que o juiz não os tivesse mesmo.

A possibilidade, no processo penal, de o julgador produzir prova, a nosso ver, restringe o princípio da presunção de inocência, na sua vertente “in dubio pro reo”, na medida em que a dúvida sempre deveria acarretar uma decisão favorável acusado, e não a produção da prova, para dirimir dúvida sobre determinado ponto.

Não existe, entre nós, um suposto “in dubio pro” continuidade da instrução ou da investigação, que em si mesma já é um mal, mas sim em prol da garantia do estado de inocência (e liberdade) do cidadão.

Poder-se-ia argumentar que a produção de prova pelo magistrado visaria a uma melhor apuração dos fatos, em prol da busca da verdade, ou em homenagem a uma profícua verificação dos fatos, sendo que o juiz, ao requisitar a produção da prova, não estaria, rigorosamente, em um estado de dúvida que o levasse à absolvição do réu. Assim, poder-se-ia tratar de uma dúvida meramente circunstancial, secundária, no sentido de um melhor acertamento dos fatos.

Em que pese a relevância da objeção, convenha-se que o juiz somente utilizará tal possibilidade se estiver diante de uma dúvida séria, melhor dizendo, razoável; de maneira que se mostra pouco crível pensar que um magistrado ordenaria a produção de uma prova apenas para verificar, com uma maior precisão, como ocorreu o fato, em seus mínimos detalhes.

Apesar de favorável aos poderes instrutórios do juiz, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró reconhece que “num certo sentido, os poderes instrutórios do juiz no processo penal são prejudiciais ao acusado. Vigorando o in dubio pro reo como regra de julgamento, se não houver prova suficiente para superar esta premissa inicial, que é a inocência do acusado, a solução que se impõe é a absolvição. Num sistema em que o juiz não tivesse iniciativa probatória, se a prova produzida pela acusação fosse insuficiente para comprovar a culpabilidade, somente restaria ao juiz a absolvição”[37].

Embora sem se descuidar da importância do valor verdade para o processo e – como diria Luigi Ferrajoli - para a própria teoria do garantismo penal[38] - deve-se ponderar que, ao não se pretender alcançar uma verdade de cunho absoluto no processo, não convence o argumento de que o juiz deveria, a todo custo, apurar como o fato ocorreu, em seus mínimos detalhes.

A possibilidade de o juiz se utilizar de poderes instrutórios, mesmo que essa iniciativa se mostre supletiva à atividade das partes, não deixa de arranhar, ainda que de maneira sutil, o princípio acusatório (e, com ele, os seus consectários, como da presunção de inocência), pois, da prova produzida de ofício, sempre poderão ser carreados aos autos elementos contrários ao acusado. Enfim, a situação jurídica do acusado sempre poderá piorar com a iniciativa instrutória do juiz, nunca o contrário[39]. A instituição de poderes instrutórios pelo magistrado, apesar de não ser tida por nós como alternativa totalmente ilegítima, ou inconstitucional, não nos parece e melhor opção.

Argumenta-se, para justificar os poderes instrutórios do magistrado, que a possibilidade ofertada ao magistrado implica reforço à isonomia entre as partes, na medida em que o poder instrutório, em muitos casos, ajuda a desnivelar a desigualdade existente no processo entre acusação e defesa. Em que pese o respeito à opinião exposta, ocorrerá, justamente, o contrário, já que a parte hipossuficiente no processo penal só poderá vir a ser prejudicada com a produção de prova pelo juiz. Por fim, é de se convir: em vez de se procurar estruturar o Judiciário e o Ministério Público, não seria o caso de se investir mais nas Defensorias Públicas e, nas localidades onde não haja o seu exercício a contento, na assistência/convênio por meio da honrosa atividade de advogados?

Segundo bem ensina Aury Lopes Júnior, se há problemas com a estrutura do Estado, seja na acusação ou na defesa do indivíduo, deve-se “fortalecer a estrutura dialética e não destruí-la, com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz”[40] .

Enfim, cada ator processual deve ser colocado em seu devido lugar. Cada parte tem que ter a sua responsabilidade e atuar conforme a sua condição[41].

Somente com essa tomada de posição, com a assunção de que cada parte deve cuidar do seu caso, sendo que a sua inércia não será suprida pelo juiz, é que cada um vai passar a assumir sua responsabilidade e os riscos de sua atuação. No final, todos se esforçarão ao máximo para cumprir o seu papel, trazendo elementos que ajudam a criar um clima em que o contraditório efetivo possa, de fato, ocorrer.

Entende-se que somente com essa concepção, de um processo de partes, consegue-se chegar a um resultado mais satisfatório, do ponto de um melhor acertamento do fato investigado. Muito ao contrário do que se possa imaginar, em invés de dificultar o julgamento pelo juiz, ou de, supostamente, prejudicar a busca de um melhor acertamento dos fatos, é justamente com essa concepção de processo que se garante um método mais eficaz para se chegar, justamente, a um resultado mais próximo possível da justiça de uma verdade mais próxima possível dos fatos ocorridos extra autos.


Notas e Referências:

[1] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo, RT, 2003, p. 35-36.

[2] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 39.

[3]  MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 (reimpressão da 1ª ed.), p. 15.

[4] A finalidade do processo servia, assim, para a punição do acusado. Nesse sentido, cf.: PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 21.

[5] Em um primeiro momento, vale observar, com Ada Pellegrini Grinover, que “o sigilo do processo foi instituído para proteger os indivíduos, sendo que “o segredo foi utilizado não apenas para assegurar o bom êxito das investigações, mas também para evitar que os humildes fossem vítimas da cólera dos poderosos, e que os homens de bem sofressem na boa fama; o processo secreto foi documentado pela redução a escrito de todos os seus atos (quod non est in actis non est in mundo)” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 45). Contudo, posteriormente, o sigilo, então usado para proteção do indivíduo, foi empregado em seu prejuízo.

[6] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 39.

[7] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades: processo penal e instrumentalidade constitucional. Tese (Doutorado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná, 2010 p. 01.

[8] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 105.

[9] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 40.

[10] “Daí a denominação de sistema misto: existência de uma fase inquisitorial secreta, presidida pelo juiz, sem participação da defesa, e de uma fase pública contraditória, com a intervenção da acusação e defesa” (FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 56-57).

[11] Carece-se, assim, da construção de uma teoria das invalidades dos vícios cometidos na investigação preliminar, conforme destacado em estudo anterior: PASCHOAL, Jorge Coutinho. O prejuízo e as nulidades processuais penais: um estudo à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 421/425.

[12] “Além do valor político de permitir que os sujeitos do ato de poder possam participar da elaboração de tal ato, o contraditório possui um valor heurístico. O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de indagar e de verificar os contrários, representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais do que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 19). Em outra passagem, o autor também afirma: “a comparação do processo acusatório com o inquisitório demonstra, inegavelmente, que há maior probabilidade de uma decisão justa quando a prova se forma na dialética processual, em vez da solitária pesquisa do órgão instrutor, seja ele o juiz ou o Ministério Público. Um saber depurado pelo contraditório oferece garantias maiores do que um saber buscado unilateralmente” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal, p. 197).

[13] “... o modelo em estudo parte da premissa de que a verdade processual está contida nas versões antagônicas dos fatos apresentadas pelas partes processuais, cabendo ao julgador individualizá-la com base no resultado do confronto adversarial. A idéia da verdade na doutrina anglo-americana não se baseia de modo exclusivo na correspondência entre a reconstrução judicial dos fatos e a realidade histórica, focando mais no método processual empregado para desvendar a verdade. Nesse contexto, se encontra implícito na doutrina em apreço que a verdade se obtém com o uso correto da metodologia processual mais adequada para tal desiderato” (MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 43)

[14] Inclusive, em reforço ao argumento dos que assim pensam, deve-se anotar que os poderes instrutórios do juiz são admitidos em nosso ordenamento, bastando consultar, em âmbito penal, os artigos 156, 209, 212, parágrafo único, 234, 404, 473, § 2.º, todos do Código de Processo Penal.

[15] “a visão publicista do fenômeno processual é incompatível com a figura do juiz espectador, para quem o resultado do processo está relacionado ao desempenho da parte e de seu representante legal” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 5ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 10-11).

[16] “Na verdade, o que não parece adequado é que o juiz saia averiguando e buscando fontes, pois, neste caso, transformar-se-ia em juiz instrutor, ao mesmo tempo em que seria o julgador da causa, com seriíssimos riscos de perda da imparcialidade. Porém, se o juiz tiver conhecimento das fontes, seja porque as partes as levaram para o processo mediante um meio de prova, seja porque a produção de um meio de prova revelou uma nova fonte de prova, nada impedirá que o juiz determine a normal produção daquela prova. Ao mais, pode ser determinada a produção de ofício de um meio de prova, sem que sobre o mesmo haja qualquer fonte no processo, como, por exemplo, quando o juiz determina que se junte aos autos a certidão de antecedentes criminais do acusado” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 168).

[17] Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 101-102; ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 27, nota de rodapé n. 11.

[18] Isso porque, ao lado desses grandes sistemas continentais (o acusatório, o inquisitório e misto), existem os sistemas adversarial e inquisitorial, mais ligados à tradição dos países de cultura angloamericana. O processo, nos países de Common Law, é visto como uma verdadeira luta ou contenda entre as partes, ficando ao seu encargo “a responsabilidade pelo impulso da marcha processual, dentre a qual estaria incluída a produção e a apresentação da prova”. O sistema adversarial e inquisitorial, seja o norte-americano, ou inglês, nesse sentido, não têm relação com a noção existente nos países de cultura continental, com relação à divisão que se faz entre sistema inquisitorial e acusatório.  Nos países de cultura angloamericana, as funções de julgar, defender e acusar são separadas e muito bem definidas, tendo como pressuposto a separação de funções no processo, diferenciando-se, apenas, no que concerne à possibilidade de o juiz ostentar algum tipo de poder probatório; o que ocorre no sistema inquisitorial, inexistindo essa possibilidade no sistema adversarial.  A respeito, cf. com ampla abordagem a respeito; ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo, RT, 2003.

[19] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 27.

[20] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 152.

[21] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 17.

[22] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 109.

[23] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 120.

[24] COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Igualdade no direito processual penal brasileiro. São Paulo: RT, 2001, p. 129.

[25] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 110. Interessante que na doutrina processual civil defende-se uma atividade ampla do juiz. Assim, discorre José Roberto dos Santos Bedaque que “os sujeitos parciais do processo podem estabelecer limites quanto aos fatos a serem examinados pelo juiz, não em relação aos meios de prova que ele entender necessários à formação de seu convencimento. E não se trata de atividade meramente supletiva. Deve o juiz atuar de forma dinâmica, visando a produzir nos autos retrato fiel da realidade jurídico material” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 102).

[26] GRINOVER, Ada Pellegrini. “A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 27, 1999.

[27] FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, p. 17, nota de rodapé n. 13.

[28] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy Ônus da prova no processo penal, p. 148 e ss.

[29] Cf.: ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003.

[30] O autor, contudo, faz a seguinte observação: “Não é possível predeterminar a linha divisória entre a utilização adequada do poder inquisitivo na busca da verdade e o abuso desse poder com invasão das funções de acusação e defesa. Todavia, os casos concretos saberão mostrar a distinção, uma vez compreendido que os poderes não são ilimitados, e que o limite é a exigência de imparcialidade” (GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 206).

[31] [34] José Roberto dos Santos Bedaque defende: “sem dúvida alguma, a melhor maneira de preservar a imparcialidade do magistrado é submeter sua atividade ao princípio do contraditório e impor-lhe o dever de motivar suas decisões” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 119). Contudo, com relação às provas ilícitas, referido autor admite a sua valoração, na medida em que entende que “cabe ao julgador utilizar-se de todos os meios necessários à descoberta da verdade. Inadmissível que irregularidades cometidas na colheita da prova impeçam a sua apresentação e, possivelmente, uma decisão justa. Deveria o juiz criminal absolver um criminoso, ou condenar um inocente, apenas porque não pôde tomar conhecimento de um meio de prova obtido ilicitamente?” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p. 119).

[32] TARUFFO, Michelle. La semplice verità. Il giudice e la construzione di fatti. Roma-Bari, Laterza, 2009, p. 172-179.

[33] Nesse sentido: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 160; LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 80; Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade garantista). 3.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85-90.

[34] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p, 137.

[35] “Desta forma, qualquer atividade instrutória atribuída ao juiz é uma regra cujo principal efeito é sacrificar a instância da dúvida razoável, como pertencente ao fundamento absolutório” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 160).

[36] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal, p. 156.

[37] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 120, nota de rodapé n. 227. Em que pese o exposto, o autor entende que não há perda da imparcialidade do juiz, pois o sistema deve privilegiar uma melhor reconstrução dos fatos (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 120, nota de rodapé n. 227).

[38] Segundo discorre Luigi Ferrajoli: “por outro lado, o modelo cognitivo de processo penal, recebido apenas de modo sumário pela nossa constituição, confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do Poder Judiciário e à validade de seus provimentos que não residem no valor político do órgão judicante nem no valor intrínseco de justiça de suas decisões, mas sim na verdade, inevitavelmente aproximada ou relativa, dos conhecimentos que a ele é idôneo obter e que concretamente formam a base dos próprios provimentos” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 435).

[39] Poderia ser pensada a hipótese na qual, havendo dúvida, a atividade do juiz visaria à comprovação cabal da inocência do acusado, visando a uma “absolvição cheia” e não a uma absolvição pautada na dúvida, na ausência de provas. Contudo, tecnicamente, para fins penais, uma hipótese de absolvição não se diferencia de outra. Não havendo um terceiro gênero, do cidadão “mais ou menos culpado ou inocente”, verifica-se que ou a pessoa é inocente ou culpada, sendo indiferente, para comprovação desse estado, discorrer em qual inciso do artigo 386 se teria dado a absolvição. Portanto, não obstante Ana Carolina Andrade Carneiro defenda, com muita propriedade, que o poder instrutório do juiz só pode ser utilizado em benefício do acusado, é difícil imaginar como isso pode se dar, pois se o juiz ordenou a produção de prova, é porque já estava em dúvida e, neste caso, o réu já se encontraria beneficiado pelo in dubio pro reo. De toda forma, consulte-se a respeito: CARNEIRO, Ana Caroline Andrade. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal e sua conformidade constitucional. Florianópolis: Conceito, 2010.

[40] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal, p. 160.

[41] O processo, afinal, na ótica das partes, segundo feliz síntese de Alexandre Morais da Rosa, é visto como um jogo. A respeito, cf: ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


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Luana Paschoal. . Luana Paschoal é Advogada e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Nohara Paschoal

. . Nohara Paschoal é Advogada e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Jorge Coutinho Paschoal

. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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