O presente artigo trata da impossibilidade de continuidade delitiva em fatos delituosos insculpidos no art. 333, parágrafo único, do CP, em razão da sua natureza instantânea (crime formal) nas hipóteses de diversos pagamentos sucessivos de um prévio ajuste, porquanto mero exaurimento de necessariamente anterior promessa ou oferta da vantagem indevida - e não novas ações típicas autônomas. Inteligência dos arts. 1.º, 4.º e 71, todos do Código Penal Brasileiro.
Na base da jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, a continuidade delitiva é uma ficção jurídica que beneficia o agente, quando vários delitos cometidos são entendidos como desdobramento do primeiro, conforme o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos[1]; todavia, nos casos em que os pagamentos de um ajuste (prévio) com o funcionário público são sucedidos de diversas entregas de valores (ou quaisquer outras vantagens), essas são mero exaurimento da conduta delituosa, e não crimes autônomos a permitirem a incidência da continuidade delitiva.
É que ao crime de corrupção ativa é dado tratamento uníssono (jurisprudencial e doutrinário) de crime formal, de mera conduta ou instantâneo, ou seja, consuma-se de imediato quando do oferecimento ou do ajuste da vantagem indevida, antes de sua entrega, a qual, a bem da verdade, é despicienda para a consecução do delito, porquanto mero exaurimento.
Em assim sendo, nas hipóteses, muitas vezes vicejantes nos Tribunais, de condenações por continuidade delitiva quando são diversos os pagamentos de um único prévio ajuste, há evidente injustiça e incorreção jurídica.
É que não há interpretação possível capaz de compreender essa matéria no contexto da existência de múltiplos crimes de corrupção ativa havidos em mesmas condições de tempo, lugar e forma de execução e a partir de unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre os eventos, segundo exigido pela teoria mista (ou objetivo-subjetiva)[2].
Afinal, a continuidade delitiva exige pluralidade de delitos e não crime único com exaurimento plural (diversos pagamentos mensais), sob pena de se ter de aventar que, para cada suposto pagamento, haveria um novo ajuste.
Com efeito, nas hipóteses de crimes instantâneos ainda que com efeitos no seu exaurimento (como se poderia cogitar no caso dos pagamentos no delito de corrupção ativa consumado a um ajuste prévio a eles), preserva-se o caráter instantâneo da conduta punível, apesar de seus efeitos prologarem-se de forma temporária ou permanente. Em virtude disso, os delitos instantâneos (pouco importando a maior ou menor durabilidade de seus efeitos) devem ser havidos como produtores imediatos da fase consumativa do delito, encerrando-se, dessa sorte, integralmente, o iter criminis[3]. Por consequência, a doutrina entende que:
Não se coloca a figura do crime continuado, porque os efeitos (temporários ou permanentes) dos crimes instantâneos são o seu esgotamento, motivo pelo qual não se apresentariam, à espécie, um dos elementos objetivos essenciais para a configuração do delito continuado (pluralidade de ações típicas homogêneas). Trata-se apenas do exaurimento do crime, com reflexos no máximo, no setor da punibilidade.[4]
Inclusive, o Colendo Tribunal Regional Federal da Quarta Região, conhecido pela sua jurisprudência muitas vezes punitivista, em antológico aresto, já apreciou esse thema, a partir de julgamento de recurso então interposto pelo Dr. CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ (hoje eminente Desembargador da Egrégia Sétima Turma), assentando o seguinte entendimento:
Tanto a corrupção ativa quanto a passiva consumam-se instantaneamente, com a primeira oferta ou promessa de vantagem indevida ao funcionário público e com a primeira solicitação ou recebimento da vantagem, não havendo falar em continuidade do suborno que deu causa à série subsequente dos crimes de sonegação fiscal.[5]
No corpo desse v. acórdão, assim se decidiu:
(...) Acertada, também a decisão recorrida quando descartou a hipótese de continuidade nos crimes de corrupção: na verdade o suborno e o tráfico da função pública ocorreram “com a prática do primeiro ato de aceitação da vantagem indevida”. Daí em diante o que houve foi uma sucessão espantosa de fraudes, perpetradas conjuntamente pelos réus, com a partilha das vantagens ilicitamente auferidas no decurso da sequencia, o que caracterizou, como visto, sonegação fiscal continuada, mas não, repito, corrupção em série (...).[6]
A bem da verdade, não há, no tipo penal em testilha (o art. 333, parágrafo único do CP), a conduta de “pagar”, “entregar” ou “dar”, de modo que não é possível se aventar que esses verbos sejam ações nucleares constituintes de delitos autônomos, conforme o rigor dos princípios da legalidade e da lex praevia em matéria penal. Nessa esteira, deve ser reformada, portanto, qualquer sentença que entenda em sentido contrário, ou seja, de que a corrupção ativa pode se dar, por exemplo, mensalmente, não quando do ajuste dos pagamentos, mas da efetiva entrega das vantagens indevidas.
Certamente, apenas o crime de corrupção passiva tem em seu respectivo Tatbestand o verbo “receber”, de sorte que não há, de forma alguma, eventual bilateralidade com o delito do art. 333 do CP, cujos verbos nucleares (“oferecer” ou “receber”) representam a consumação instantânea quando do ajuste entre o agente particular e o agente público.
Sob nenhum viés, portanto, pode haver continuidade delitiva nessas hipóteses, e sim crime único com exaurimento, de modo que é de ser excluído da sanção qualquer eventual aumento havido pela incidência do art. 71 do Código Penal, na medida em que absolutamente impertinente.
É clarividente, verbi gratia, que o Colendo Tribunal Regional Federal da Quarta Região de há muito assentou que esse delito se consuma instantaneamente, com a primeira oferta ou promessa de vantagem indevida ao funcionário público e com a primeira solicitação ou recebimento da vantagem, não havendo falar em continuidade do suborno[7].
Nessa toada, mostra-se impertinente o reconhecimento de continuidade delitiva nas causas em que há aumento de pena, a partir do reconhecimento do crime continuado, de diversos pagamentos havidos ao depois de um prévio ajuste, no qual se consuma, às inteiras, o delito de corrupção ativa, e isso se extrai, facilmente, das normas dos arts. 1.º, 4.º, 71 e 333, parágrafo único, todos do Código Penal, e 5.º, incisos XXXIX e XLVI, da Constituição da República.
Notas e Referências
[1] STJ - HC 262.842/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 08/05/2014, DJe 16/05/2014. Destaquei.
[2] RHC 043601/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, Julgado em 03/06/2014, DJE 18/06/2014; HC 292875/AL, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, Julgado em 10/06/2014, DJE 17/06/2014; HC 262842/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, Julgado em 08/05/2014, DJE 16/05/2014; HC 207908/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, QUINTA TURMA, Julgado em 13/05/2014,DJE 19/05/2014; AgRg nos EDcl no REsp 1110836/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, Julgado em 11/02/2014, DJE 26/02/2014; AgRg no HC 217753/ES, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, Julgado em 10/12/2013, DJE 18/12/2013; HC 195062/RS, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), QUINTA TURMA, Julgado em 21/03/2013, DJE 03/04/2013; HC 199645/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, Julgado em 28/08/2012, DJE 12/09/2012.
[3] FAYET JÚNIOR, Ney. Do crime continuado. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2010, p. 96. Destaquei.
[4] FAYET JÚNIOR, Ney. Do crime continuado. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2010, p. 99. Destaquei.
[5] TRF4, ACR 97.04.71851-9, PRIMEIRA TURMA, Relator AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI, DJ 15/09/1999. Destaquei.
[6] TRF4, ACR 97.04.71851-9, PRIMEIRA TURMA, Relator AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI, DJ 15/09/1999, fl. 10 do v. acórdão. Destaquei.
[7] TRF4, ACR 97.04.71851-9, PRIMEIRA TURMA, Relator AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI, DJ 15/09/1999.
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