1 - A IBM e o Holocausto:
Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 12 de fevereiro de 2001, por ocasião do lançamento do livro "IBM e o Holocausto", do estadunidense Edwin Black, Marcos Guterman nos informa que em uma das salas do Museu do Holocausto de Washington há uma máquina da IBM para tabulação de dados em cartões perfurados. Segundo o texto que o acompanha, o engenho, produzido a partir de um modelo inventado por Hermann Hollerith, é semelhante ao que serviu para que a Alemanha nazista fizesse recenseamentos demográficos levando em consideração informações sobre a religião e a raça dos entrevistados, com o objetivo de identificar quem era judeu.
O estadunidense Edwin Black, em seu livro, sustenta que essas máquinas facilitaram consideravelmente a tarefa de tentar eliminar os judeus da Europa[1].
Edwin Black, jornalista e filho de sobreviventes do Holocausto, passou três anos investigando o envolvimento da companhia com o Terceiro Reich e no livro argumenta que o Holocausto foi facilitado graças à tecnologia desenvolvida pela International Business Machines, mais conhecida como IBM, especialmente para os nazistas, permitindo que Hitler automatizasse sua perseguição a judeus, ciganos, homossexuais e outros “inimigos” através da geração de listas de grupos de pessoas que deveriam ser enviadas aos campos de concentração.
Para Edwin Black, escritor da polemica obra, o Holocausto não teria acontecido nos moldes em que ocorreu não fosse a tecnologia da IBM, que teria “organizado” toda a “Solução Final” (plano de extermínio total dos judeus).
É certo que a IBM dominava uma tecnologia ancestral do computador, os cartões perfurados. Esse sistema, desenvolvido para fazer censos, podia capturar qualquer tipo de informação por meio de furos feitos em colunas e fileiras de um cartão especialmente preparado. Linhas horizontais e verticais tinham significados diferentes e, com o cruzamento delas, obtinha-se a informação, que seria interpretada por uma máquina da empresa.
As máquinas de Hollerith foram utilizadas em diversos campos de concentração - entre eles Auschwitz, Buchenwald e Dachau - para que os nazistas pudessem manter registros dos prisioneiros e monitorar o trabalho escravo. Além disso, elas permitiam que os oficiais alemães identificassem quais judeus tinham sido mortos a tiros, morrido de tanto trabalhar ou haviam sido exterminados nas câmaras de gás.
Após o lançamento do livro de Edwin Black, a IBM se limitou a dizer que não tem muita informação sobre a guerra e que perdeu o controle de seus negócios na Alemanha no período.
A obra de Black, lançada há 17 anos, dividiu e continua dividindo opiniões entre historiadores, jornalistas e estudiosos do Holocausto.
2- O DNA e a proposta do ministro:
Em palestra sobre Ciências Forenses, no último dia 30 em São Paulo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, defendeu a coleta de DNA, e não apenas de digitais, dos cidadãos para identificá-los com a finalidade de aprimorar investigações de crimes.
“Qual o problema de realizar um cadastramento de DNA, que é um exame nada invasivo? Eu propus inclusive na época [quando era ministro da Justiça] ao presidente do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] – para evitar isso [de dizer]: ‘Então, é só em relação aos presos – que se fizesse no recadastramento eleitoral da biometria, não só biometria, mas já a coleta do DNA. Se você pode e deve constitucionalmente dar sua identificação, que é a digital, hoje mais moderno que isso é o DNA”, disse o ministro.[2]
No Brasil, a Lei nº 12.654/2012, que alterou a Lei nº 12.037/2009, bem como a Lei de Execuções Penais, prevê a coleta de perfil genético, mediante extração de DNA, como forma de identificação de pessoas condenadas por crimes hediondos e dolosos praticados com violência grave contra a pessoa.
3- As sociedades de controle:
Zygmunt Bauman[3] recorreu a Wikipédia (versão inglesa de 08 de março de 2009) para definir o significado de privacidade, onde se lia que:
“Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar-se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado na esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há nele algo que se considera inteiramente especial ou pessoal. [...]”.
Para Bauman, “privado” e “público”, são conceitos antagônicos que estão separados por fronteiras demarcadas e intransponíveis, “de preferência fechadas com rigidez e pesadamente fortificadas de ambos os lados para impedir transgressões”[4]. Durante a maior parte da era moderna, observa o sociólogo polonês, “há uma suspeita geral sobre a tendência endêmica das instituições públicas a bisbilhotar e ouvir atrás das portas; um inextinguível impulso para invadir e conquistar a esfera do privado a fim de colocá-lo sob sua administração, recobrindo-se de uma densa rede de fortalezas, mecanismos de espionagem e escuta, e privando os indivíduos e grupos da proteção oferecida por um espaço privado intransponível; da mesma forma, sua segurança pessoal ou de grupo”.[5]
Hodiernamente, dúvida não há de que nossas vidas não nos pertencem mais. Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamar que: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques, toda a pessoa tem direito a proteção da lei” (art. 12) e, de igual modo, a nossa Constituição da República (art. 5º, X), a vida privada e a intimidade se perderam ao longo do tempo e sofrem a cada dia, com o constante avanço tecnológico, uma nova forma de intromissão.
Um dessas inovações tecnológicas é o telefone celular. Os telefones celulares, diz Bauman, “são o fundamento técnico da suposição de constante acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da modernidade líquida, a condição de ‘lobos solitários sempre em contato’, já foi viabilizada e se converteu em ‘norma’, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto”. [6]
Os mecanismos de vigilância aperfeiçoaram-se e passaram de um caráter institucional para o de uma vigilância geral. A multiplicação de câmeras de vídeo em espaços sociais (públicos e privados), o uso de transponders, de aparelhos celulares, de cartões de crédito e da Internet, facilitaram o exercício de mecanismos de vigilância e controle cada vez mais eficientes.[7]
Em tempo de globalização, na era do mundo digital e virtual, da “sociedade do espetáculo” [8] e de outra, denominada “sociedade do risco” [9], a vida privada foi atropelada pela tecnologia e pelas formas de controles impostas pelo Estado em nome de um ilusório combate ao crime e do pretexto de nos dar mais segurança.
Nota-se que em substituição as “sociedades disciplinares” vieram às chamadas “sociedades do controle”. Michel Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX, alcançando seu auge no início do século XX. No entanto, Foucault observa que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior dos poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. Não se trata, diz Foucault, “de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguido do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou da linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”.[10]
No campo do direito, especialmente do sistema penal, os dominados pela enganosa publicidade como bem observa Maria Lúcia Karam, “não percebem que a explosão de tecnologias viabilizadoras de ampliados controle e vigilância, combinada com a debilitação das normas protetoras da privacidade, combinada com a desmedida expansão do poder punitivo, combinada com a troca do desejo de liberdade pela ilusão de segurança, estão nos arrastando para uma sociedade de controle, estão aproximando Estados democráticos de Estados totalitários, estão empreendendo uma viagem de ‘volta para o futuro’ previsto para um 1984 que só se tornou passado nas folhas do calendário”.[11]
4- Conclusão:
Sem colocar em dúvida as “boas intenções” do ministro Alexandre de Moraes, é certo que a coleta de material genético - DNA - ou qualquer outra forma de identificação para criação de um banco de dados pode se transformar em odioso e perigoso instrumento de controle nas mãos do Estado.
Note-se que, inúmeras vezes, a criação desses bancos de dados “instrumentaliza e reflete a discriminação em relação aos menos favorecidos socialmente”.[12]
Não é demais salientar que na relação com o Estado, a proteção da dignidade da pessoa humana – direito fundamental, inalienável e, portanto, inegociável – é que deve prevalecer como postulado do próprio Estado Democrático de Direito. O ser humano, já foi dito alhures, em uma formulação kantiana, jamais poderá ser tratado como meio ou como instrumento, mas somente como um fim em si mesmo.
Por tudo, inclusive por remeter as praticas abomináveis utilizadas pelo odioso regime nazista, é que toda e qualquer proposta que venha impor invasão da privacidade e da intimidade como forma de identificação e controle, sob o pálio de um fantasmagórico combate à criminalidade, deve ser repudiada em nome do respeito a dignidade da pessoa humana e do próprio Estado Democrático de Direito.
Notas e Referências
[1] Disponível em:< https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1202200105.htm Acesso em: 2/8/2018.
[2] Disponível em:< http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2018-07/moraes-defende-coleta-de-dna-da-populacao-para-investigacao-de-crimes Acesso: 02/8/2018
[3] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Trad. Vera Pereira. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
[4] Idem.
[5] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido, ob. cit.
[6] BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido, ob. cit.
[7] CHEVITARESE Leandro e PEDRO, Rosa Maria Leite Ribeiro. Da sociedade disciplinar à sociedade de controle: a questão da liberdade por uma alegoria de Franz Kafka, em O Processo, e de Phillip Dick, em Minority Report. Estudos de Sociologia. Rev do Programa de Pós-graduaçãoo em Sociologia da UFPE, v, 8, n. 1.2. p. 129-162. http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/viewFile
[8] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[9] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
[10] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.Trad. Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
[11] KARAM, Maria Lúcia. Monitoramento eletrônico: a sociedade do controle. Boletim do IBCCrim. Ano 14, nº 170 – jan/2007.
[12] QUEIJO, Maria Elizabeth. “O princípio nemo tentur se detegere e a coleta de material genético: identificação criminal ou colaboração na produção da prova?” in Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Ano 21, n. 250, setembro/2013.
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