Da fundamentação da decisão judicial ao precedente: o problema da construção da ratio decidendi no direito brasileiro – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

14/03/2016

A entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que ocorrerá no dia 18 de março do ano em curso, além de apresentar aos operadores do direito o primeiro código de processo civil elaborado sob a égide de um regime democrático, trará a necessidade de uma mudança na perspectiva processual: de um modelo adversarial, se passará a um modelo cooperativo (comparticipativo), com todas as dificuldades inerentes ao novo, que teima em ser visto com olhos do velho.

Para além das dificuldades do novo, tem-se, ainda, a necessidade de se efetuar releituras daquilo que já existe, ainda que em menor escala; é o caso dos precedentes judiciais. Não se pode afirmar que o Brasil, embora integrante da família do civil law (modelo romano-germânico), esteja alheio à Teoria dos Precedentes Judiciais.

Ocorre que o novo diploma processual aumentou, e muito, a importância dos precedentes judiciais, tornando-os, em certos casos e sob alguns requisitos, obrigatórios, daí a importância de seu estudo incansável.

Inúmeras teses, dissertações e livros estão sendo escritos, todos tratando do tema com a profundidade que a mudança de paradigma impõe. Entretanto, apesar desse esforço doutrinário, várias zonas cinzentas ainda teimam em existir, sendo uma delas a própria noção de ratio decidendi. Mesmo nos países da família do common law, várias teorias sobre a identificação da ratio decidendi foram elaboradas, mas nem lá o problema da sua identificação pode se considerar superado.

O problema se agiganta ainda mais quando se transfere o seu objeto não para a identificação da ratio decidendi, mas para a sua elaboração, o que necessariamente perpassa a noção de fundamentação da decisão judicial, que apesar de já ter tratamento constitucional expresso, mereceu enorme preocupação do novo diploma processual e vem atormentando os operadores do direito, pouco importando em que polo da relação processual eles se encontrem.

Se é certo que nem toda decisão judicial é um precedente, também é certo que todo precedente emana de uma decisão judicial. E é da fundamentação da decisão judicial que se extrairá a ratio decidendi, o precedente propriamente dito, fazendo imperioso o seu estudo à luz do Novo Código de Processo Civil, que na busca da segurança jurídica, da igualdade, da integridade e da coerência, deu primordial importância à fundamentação das decisões judiciais, porque sabia que dela dependia todo o sistema de precedentes que se buscou implantar.

Ainda que se veja a fundamentação da decisão judicial como um duplo discurso[1]: um deles voltado ao caso concreto e outro destinado ao direito como integridade, inerente ao sistema de precedentes judiciais, faz-se importante o estudo da fundamentação da decisão judicial com os olhos voltados, sobretudo, ao sistema de precedentes, no intuito de obter a correta construção da ratio decidendi, objetivando a entrega, aos jurisdicionados, da promessa de integridade e coerência do direito, perspectiva hermenêutica que deve permear todo o estudo da decisão judicial.

É certo que, no sistema de precedentes, as razões da decisão importam não apenas às partes, mas aos juízes e à sociedade como um todo. Para os juízes, porque são eles que devem dar coerência à aplicação do direito; para os jurisdicionados, porque necessitam de segurança jurídica e previsibilidade para desenvolverem suas atividades cotidianas.[2] Abandona-se, portanto, a ideia do discurso para o caso concreto e passa-se à análise da decisão judicial (seus fundamentos), na ótica do sistema de precedentes judiciais.

Nessa senda, incumbe asseverar que um precedente é uma decisão judicial que contém, em si mesma, um princípio. Esse princípio subjacente é o que se denomina de ratio decidendi, e é ele que forma a parte impositiva (vinculante) da decisão.[3]

Dito isso, importante voltar os olhos ao art. 926, do NCPC, que exige que os tribunais mantenham sua jurisprudência estável, íntegra e coerente, sendo certo que a polissemia da palavra “jurisprudência”, nesse caso, engloba a súmula e, principalmente, o precedente judicial, do qual aquela é sempre dependente, sem perder de vista a fundamentação da decisão judicial.

Se por um lado a coerência vincula o juiz ao que restou decidido no passado, por outro a integridade não permite que decisões erradas sejam perpetuadas, pois o direito que todos têm de ser tratados com mesma consideração e respeito impõe que o Poder Judiciário leve o caso a sério e o trate com extremo cuidado e não apenas como mais um de uma série.

Diante dessa preocupação, o magistrado tem, ainda, que engendrar esforços para que a sua decisão seja a única correta para a resolução do caso em análise e não apenas uma entre tantas possíveis, pois a integridade não se alinha com a possibilidade de que o caso possa receber mais de uma solução, apenas mudando-se o julgador, o que parece intuitivo.

A construção da ratio decidendi depende de uma correta fundamentação da decisão judicial; ou seja, que o magistrado realmente leve a sério os argumentos das partes e com eles dialogue, deixando-se influenciar por aquilo que de relevante foi deduzido pelas partes no processo. Mais! Que o magistrado realmente enfrente todos os fundamentos deduzidos pelas partes, criando, assim, um princípio jurídico que possa ter pretensão de universalização, abarcando os casos similares vindouros, o que apenas se consegue com uma atenção redobrada à motivação da decisão judicial.

O fato é que a forma como as Cortes Supremas[4] do Brasil decidem, não se coaduna com a aplicação da Teoria dos Precedentes Judiciais Obrigatórios. No Brasil, impera um tipo de argumentação fundada em argumentos de autoridade[5], com opiniões pessoais dos ministros das cortes, que decidem por mera agregação de opiniões, onde “a pessoa que toma a decisão e a decisão em si mesma são mais importantes do que o raciocínio desenvolvido para se chegar nela”.[6]

Como então, sem qualquer preocupação com uma argumentação racional e unificada das Cortes Supremas, poder-se-ia pensar em adotar um sistema de precedentes judiciais obrigatórios no Brasil? A resposta pode ser encontrada, como parece intuitivo, em uma mudança de paradigmas acerca da fundamentação da decisão judicial e no abandono, ainda que tardio, do Princípio do Livre Convencimento Motivado, que em boa hora não foi reproduzido no Novo Código de Processo Civil.

Ou se muda a forma como as cortes decidem no Brasil, ou o uso dos precedentes obrigatórios continuará apenas retórico, sem qualquer preocupação com a teoria que lhe dá base. Em se mantendo nossa cultura jurídica, sempre na busca de objetivações e subsunções, será difícil, para não dizer impossível, a correta aplicação dos precedentes, mesmo porque sequer de precedentes se estará falando, devido à impossibilidade de extração da ratio decidendi das decisões emanadas pelas cortes brasileiras, que descuidam, sobremodo, da garantia fundamental à motivação das decisões judiciais e lutam, não se sabe bem o porquê, para continuar sem o dever de motivar suas decisões, e a perpetuar seus argumentos de autoridade e junção de opiniões, o que é lamentável.[7]

Antes de nos preocuparmos com a identificação da ratio decidendi, temos que nos preocupar com sua construção, pois, num país onde há um recurso próprio para impugnar defeitos de fundamentação[8] e onde os magistrados teimam em não respeitar o dever de motivar suas decisões[9], decerto a extração da ratio decidendi será um problema salutar, mas que somente se tornará um problema se pudermos trabalhar corretamente com o sistema de precedentes obrigatórios, o que não se mostra viável em curto espaço de tempo.

O novo se aproxima e com ele toda a incerteza do porvir. Embora não se possa saber como as coisas ficarão após a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, já se sabe como as cortes decidem no Brasil, já se sabe que os magistrados, ao se depararem com o texto do NCPC, contra ele já levantaram armas, tentando manter o atual estado de coisas. Incumbe à doutrina constranger epistemologicamente o Poder Judiciário para que ele tenha a exata noção de sua função institucional, qual seja, efetivar o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, o que se obtém tendo o direito como integridade, com coerência, previsibilidade, segurança jurídica, pois a decisão judicial não é um ato de escolha, mas um ato de responsabilidade política. Que venha o novo, embora, ao que parece, não estejamos preparados para ele.


Notas e Referências:

[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 151.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 221.

[3] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança Jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 216.

[4] Cortes Supremas aqui entendidas como cortes de precedentes e não de revisão, das quais o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, no que interessa ao presente trabalho, são espécies. Cf. MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013.

[5] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013, p. 62.

[6] Idem. ibidem.

[7] Cf. Enunciado nº. 47 do ENFAM, que assevera: o art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais.

[8] Refiro-me aos Embargos de Declaração.

[9] Enunciado nº. 47 do ENFAM


 

Imagem Ilustrativa do Post: Lost / Warsaw Pride 2009 // Foto de: Carlos Andrés Reyes // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/100477236@N02/16210438328

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura