Da Dignidade da Pessoa Humana, do Trabalho, da Infância - no Papel, na Metafísica e na Realidade Dolorida das Diferenças

15/04/2017

Por Juliana Nandi – 15/04/2017

“A resposta que agora se impõe, ao que tudo indica, depende. Pelo menos se se tomar em consideração aquilo que pode ser verdadeiramente “vergonha” e sobretudo, se isso for colocado em comparação àquilo que pode ser um comportamento determinado pelo “medo”. Trata-se, portanto, de pensar a “vergonha” e o “medo” como determinantes dos comportamentos e, a partir deles, situar a própria existência.”

(COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. Empório do Direito. Florianópolis. 2016.)

A chamada “Realidade Social”, pode-se deduzir que seja em verdade, a reflexão da vivência alheia, em congruência com as diversas experiências sociais de diferentes pessoas e locais, externalizadas. Assim como refletiu Descartes na obra “Meditações”, não há senão a incerteza em relação a todas as verdades nas quais embasamos nossos pensamentos, e sobretudo, nossas convicções.[1]

Essa convicção de que há uma sociedade pautada em leis; que devem obrigatoriamente ser seguidas por todos os cidadãos, revela a inconsistência de que haja a diferença cultural regional dentro de um mesmo território. Diferença essa a ser também compreendida e, sobretudo, por meio do entendimento, respeitada e adaptada, para que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana; previsto na carta maior das normas de um país, a Constituição; possa ser praticado. [2]

Os princípios são normas abrangentes que têm como papel fundamental a proteção a normas menores; não se confunda com regras de pouca importância; de modo a servirem como garantia ao funcionamento do sistema normativo. [3]

Para o professor Canotilho[4], os princípios se dividem em político-constitucionais; como sendo aqueles em que se traduzem como as normas que traduzem as opções políticas do país, formadoras da própria Constituição; e jurídico-constitucionais; os quais são desdobramentos dos princípios fundamentais, entre eles os princípios relativos ao regime político – como exemplo o da Dignidade da Pessoa Humana, taxativo no Art. 1o, III da Constituição Federal brasileira de 1998.

Remeteremos ao passado para essa utopia do homem com o próprio “irmão”, que se traduzirá em cartas positivadas, ou as chamadas Declarações, Constituições, ou Tratados, a respeito da relação das normas de convivência mais harmônica dentro de um padrão civilizatório de inclusão. Leia-se inclusão dentro do sistema discriminatório, façam-se as interpretações hermenêuticas necessárias às convenções valorativas sociais.

O homem, em seu processo de evolução histórico, buscou (e acredita ainda buscar em si e seus “meios-fins”), a construção do que almeja como a sociedade ideal. Mesmo tendo esse discurso a valoração da força, daqueles que possuem o domínio físico, intelectual, ou/e econômico sobre os outros (pessoas ou nações).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, adotada na França, forneceu para outras nações a fonte da luta contra o regime absolutista, de exploração violenta. Daí se evoluiu para a Declaração da Virgínia, com maior grau de detalhamento de positivação, como Constituição, e ainda para a Declaração Universal dos Diretos do Homem (de 1948), constituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), declaração essa que logo no preâmbulo reconhece a Dignidade da Pessoa Humana – fundamentalmente em defesa dos direitos e das liberdades.

Queremos e estamos chegando ao ponto chave desse texto; que nos levará até a miséria do conceito de criança mais trabalho; as garantias constitucionais que remetem à igualdade entre os homens. O que se tem por ponto de divergência, entre a metafísica da sociedade almejada pelos pensadores; por meio do empoderamento de uma massa miserável via de lei; e a realidade do humano com humano, em um grande território; com clima e culturas diversas como o Brasil; é o que chamamos de isonomia formal perante o sistema normativo. Essa igualdade é dita formal porque está no papel, na letra da lei (diga-se aqui a lei seca, porque a lei jurisprudencial que faz julgada a coisa material, não há de ter isonomia. Muito pelo contrário, atribui sentido, em grande parte, à diferenciação do que detém a propriedade daquele que não a possui), e não no âmbito da realidade, ou seja, das coisas, o que seria a igualdade, ou isonomia material. Quase que retornamos ao estudo hermenêutico da escola da Exegese.[5]

A desigualdade material da qual trataremos, parece esconder-se atrás do legalismo de uma sociedade que se conserva em padrões de um Estado “estadista”, com padrões de normatização ainda calcados em formalização de Direitos, que se encontrariam aplicados como que dentro de uma moldura Constitucional legislativa.

Isso quer dizer que os julgamentos seriam (e porque não dizer São!) feitos por uma combinação de normas secas, sem o devido processamento que a linguagem social requer, a verdadeira interpretação. Essa interpretação das gentes deveria começar naqueles que são escolhidos como representantes da população no sistema Democrático de Direito, adotado pelo Brasil (previsto no art. 1o, CF/1988, em seu caput, e parágrafo único).[6]

Podemos começar a conversar sobre o nexo de causalidade entre a teorização do que foi posto acima e as leis brasileiras; de um direito positivo; envoltas em princípios; que estariam ligados à questões históricas, ou seja, à tradição consuetudinária.

Em um Estado Democrático de Direitos, com Princípios Constitucionais de ordem fundamental e social bem estabelecidos, como o da Dignidade da Pessoa Humana, como o Brasil, parece haver não apenas um distanciamento geográfico físico imenso entre Brasília (local em que se decide legislações de ordem pública que implicam em todos os Estados, e na vida da massa populacional de baixa renda) e os demais territórios (Municípios, Estados), mas também, uma completa abdicação de consciência da implicação das políticas de ordem pública para os, que na forma da lei, são desiguais, e que deveriam ser tratados como iguais na medida da sua desigualdade.

O trabalho é fator relevante para a construção da sociedade igualitária, em termos materiais. A Dignidade da Pessoa Humana está diretamente relacionada com fatores de ordem social. E o que é o trabalho senão a definição do papel do cidadão dentro do grupo em que situa-se, no cotexto micro familiar, e no macro social? Esse papel que atribui valor ao cidadão, concedendo-lhe função social, e possibilidade de obter o direito também à propriedade (um conceito muito próximo ao que já foi, e ainda o preserva a família). Esta que era senão a continuidade da manutenção dos bens e propriedades de um determinado grupo afim.

Para que a dignidade de fato tivesse valoração no âmbito do trabalho, ao longo da História, Convenções e Tratados, conforme já mencionado, fizeram parte de momentos definitivos de regularização entre os homens sobre as condições de exploração de uns sobre os outros.

O Brasil recepciona Tratados de Convenções Internacionais, entre eles estão os da Organização Internacional do Trabalho, a OIT. Além de seguir nomas de cunho internacional, o que faz com que os Direitos Humanos sejam observados de maneira a valorar os Direitos Fundamentais da nossa Constituição, o Brasil (principalmente em normas que envolvam os Direitos Humanos) os ratifica, o que significa a inclusão na própria Constituição. E direito social adquirido, via de regra, não pode ser excluído ou reduzido.

Além da não abdicação aos direitos adquiridos, e que pelo Princípio da Indisponibilidade nem mesmo podem ser renunciados pelos particulares que os possuem, as normas de proteção do Estado ao cidadão são rigorosas, como já comentado – em nível formal. Isso significa que em nível material, nem todos possuem acesso ao trabalho, logo, infringindo o Princípio da Dignidade Humana. Vivendo em condição de marginalização frente a sociedade, pois aquele que não produz, também não adquire, logo não satisfaz nem é satisfeito pelo sistema de criação de leis, que protegem aos desfavorecidos, mas que se impõe materialmente aos grupos mais fortes. E a força moderna não está nos braços, mas no capital. Apesar de o Estado tutelar o direito ao trabalho, ele mesmo não absorve a demanda na manutenção da máquina pública. Isso implica no setor privado dar conta do que o Estado não provém. E daí a confusão entre sistemas contrapostos: O privado – capitalista; e o Público – Capitalista economicamente, porém de normas socialistas, de manutenção ao “Bem Estar Social”.

Os legisladores previram, por meio de Tratados Internacionais, pautados em concepções históricas de aquisição de Direitos, dignidade pautada no acesso ao trabalho (gerador de condição digna de subsistência) e na proteção da família. Sobretudo, o Estado interfere na proteção aos inimputáveis.

Se os pais não têm acesso a condições que lhe proporcionem aceso ao trabalho remunerado, que lhes concederia a dignidade de sustento, e dignidade na manutenção familiar, como se falar em infância daqueles que nascem nessas condições miseráveis? A palavra criança já foi termo utilizado em guerras, para chamar carinhosamente os soldados, então não se confunda criança, termo diferenciador, com aquele que não atingiu certa idade (considerando-se assim adulto) no termo infância.

Basta viajar alguns quilômetros, ou alguns metros, para atestar a realidade a respeito do exercício do trabalho no Brasil, fugindo totalmente à letra da lei, realizado em condições precárias, com remuneração abaixo do mínimo nacional (este que já não consegue suprir o que está previsto na Constituição. Art. 7o, IV CF/1988), e realizado por crianças (negando novamente o Art. 7o, XXXIII, CF/1988) para auxiliar na renda das suas famílias.

Esse texto é uma análise baseada no documentário denominado: “A invenção da Infância”, que mostra a realidade de famílias no interior do nordeste, que possuem muitos filhos, e eles representam desde cedo a ajuda à renda dos pais. Essa ajuda não provida pelo bolsa família, mas pelo suor diário das crianças em pedreiras. Elas estudam no período noturno e sonham em aprender a ler e escrever para ter a oportunidade de um dia ir embora de onde moram. Por hora, pensam nos R$ 9,00 que conseguem acumular com o trabalho de 3 semanas, e que lhes rende ajudar na feira de casa. Em oposição a essa realidade, o documentário também mostra os depoimentos de crianças em capitais, de famílias de classe média alta, bastante ocupadas, e que acabam por ter as agendas tão comprometidas quanto a dos adultos. Perguntadas sobre a condição em que vivem, se crianças ou adultos, elas responderam que se vêem como adultos. As crianças do interior, que trabalham nas pedreiras, se vêem como crianças, pois não atingiram a idade de adultos, e dentro do seu contexto se comportam e se projetam de maneira natural na situação de exploração. Com a valoração de ajudar aos pais, já que em casa “paradas” (ou tendo o que o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA prevê para a infância) não receberiam dinheiro algum.

As leis que protegem podem ser também as que tornem o direito de fato, material inalcançável. A ideia de que se tem um Estatuto da Criança e do Adolescente, cominado com a Constituição para a proteção dos inimputáveis, dos “dependentes” (colocamos em aspas pela lógica de que criança que trabalha, produz, e o faz sob a vigilância do cumprimento de jornadas. Quem produz passa de dependente a provedor), em uma cultura de exploração ao miserável, que não se sustenta a si; muito menos à prole; parece ser como a venda a tapar os olhos do Estado. Há de se falar em proteção à infância, mas nem a miséria nem a riqueza, exploradas ambas pelo capital, possuem em seu contrato de exploração cláusulas de respeito à vida.

“Os problemas com o vocabulário continuam. Alguns falam de má nutrição; outros, de desnutrição; mas todos estão mais ou menos de acordo que existe uma coisa que chamam de Desnutrição – ou Má Nutrição – Aguda. A desnutrição aguda é o que acontece com uma pessoa que não come o suficiente: resultado físico da fome.”

(CAPARRÓS. Martín. A Fome. Ed. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 2016. Pg. 75)


Notas e Referências:

[1] DESCARTES. Rene. Meditações Metafísicas. São Paulo. Ed. Martins Fontes. 2000. Pg. 99: “Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar, são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que não mundo não há nada de certo.”

[2] Art. 1o CF/1988: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana.

[3] SILVA. José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29o edição. Ed. Malheiros. São Paulo. 2007. Pg. 91: “A palavra princípio é equívoca. Aparece em sentidos diversos. Apresenta a concepção de começo, de início...Não é nesse sentido que se acha a palavra princípios da expressão princípios fundamentais do Título I da Constituição. Princípio aí exprime a noção de “mandamento nuclear de um sistema”.

[4] CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5a edição. Coimbra. Almeida. 1991.

[5] BOBBIO. Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. Pg. 66: “Perante os códigos, não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceito pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei — nomeadamente esta lei compendiada e sistematizada em códigos — adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou de legalismo ou positivismo legal.”

[6] Art. 1o CF/1988, caput: A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos… Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

BOBBIO. Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995.

CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5a edição. Coimbra. Almeida. 1991.

CAPARRÓS. Martín. A Fome. Ed. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 2016

COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise. Empório do Direito. Florianópolis. 2016.

DESCARTES. Rene. Meditações Metafísicas. São Paulo. Ed. Martins Fontes. 2000.

MARTINS. Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22o edição. Editora Atlas S/A. São Paulo. 2006.

SARLET, MARIONI, MITIDIERO. Ingo Wolfgang. Luiz Guilherme. Daniel. Curso de Direito Constitucional. 5a Edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2016.

SILVA. José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29o edição. Ed. Malheiros. São Paulo 2007.

SUSSEKIND. Arnaldo. Convenções da OIT. 2a Edição. Editora LTR. São Paulo.1998.


Juliana Nandi. Juliana Nandi possui formação em Relações Internacionais pela Unisul; Pós-Graduação – MBA em Gestão Empresarial pela HSM Educação Executiva; Atualmente é aluna do curso de graduação em Direito da Univali; Atuou profissionalmente na Importação para algumas grandes empresas catarinenses e faz parte dos núcleos de estudos de Direitos Humanos e Direito Penal e Processual Penal na Univali.


Imagem Ilustrativa do Post: Povoado Mandacarú // Foto de: Otávio Nogueira // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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