DA AÇÃO E DAS AÇÕES – 6ª PARTE, CAUSA DE PEDIR: UM DIFÍCIL CONCEITO – 1ª PARTE

26/11/2019

1. Uma premissa fundamental: o conceito de causa de pedir

Depois de um “longo inverno”, retorno à Série sobre as ações, iniciando a análise da chamada causa de pedir, elemento que é da demanda, terceira forma acional existente, conforme visto alhures.

Sem dúvida, trata-se de um dos mais difíceis conceitos existentes do Direito Processual. Uma coisa, porém, é certa: sua definição não pode contrariar as consequências lógicas do próprio termo. Neste, o pedir é a razão de ser da causa. A causa está à luz do pedido, eis o que se demonstrará a seguir.

 

1.1. Causa de pedir à luz do pedido: uma demonstração

Causa de pedir é termo que denota aquilo que dá ensejo ao pedido. Em rigor, é causa do (ato de) pedir. Portanto, ela se dá em virtude do pedido, mais especificamente, sua razão de existir é justificar a formulação dele. Embora logicamente a pós-ceda; gnosiologicamente, antecede-a: somente é possível conhecer a causa a partir do pedido. Desse modo, é definindo pedido que se possibilita definir causa de pedir.      

E por pedido não se pode ter um fato bruto[1] de uma realidade pré-comunicativa. Pedido não é uma “mera” consequência jurídica, como a obrigação que decorre naturalmente da celebração de um contrato. Também não é um simples ato jurídico, como a consumação da coisa pelo interessando em comprá-la. Pedido é uma comunicação, pois, se se pede algo, pede-se a alguém. Um sujeito fala a outro, portanto. No caso, o interessado em algo comunica vontade ao titular do poder de realização do interesse que subjaz a esse algo. Numa linguagem mais sintética: a parte pede ao juiz. Pedido, por isso, é comunicação de vontade. É vontade manifestada (saída do mero estado de consciência), mas numa manifestação em comunicação. É da essência do pedido a linguisticidade. Eis a razão de o pedido perfazer-se por um escrito contido numa petição ou, quando permitido por lei[2], via expressão oral reduzida a termo por um auxiliar do juiz.

Ora, se pedido é ato comunicativo contido num escrito (como a petição), seu fundamento, a causa de pedir, também deve sê-lo. E isto exatamente pelo fato de ela não ser causa eficiente (motora) do direito subjetivo (e seus consectários, como a pretensão e a ação) invocado pela parte. Sua existência é devida ao pedido. Observe-se: devida. A causa de pedir é uma necessidade normativa (deontológica), e não uma necessidade fática (ontológica). Enfim, porque há um pedido, faz-se necessária uma causa que o justifique, tal como já se antecipou acima.

Diante disso, já se pode concluir que, tal como o pedido, a causa de pedir não é um fato bruto da realidade. Não o é nem mesmo numa realidade já referente ao direito. Em hipótese alguma se pode dizê-la fato jurídico, muitíssimo menos “simples” fato. De igual forma que o pedido, ela é comunicação, e a ele vinculada.  

A necessidade da causa de pedir, porém, não diz respeito ao pedido em si, de modo que este inexistiria caso ela não fosse indicada. Tal indicação não é pressuposto (rectius: requisito) para a existência do pedido, refere-se a outra coisa, a ser vista abaixo.

Pedido é algo que está em outro. Pedido não existe por si só. Ele é elemento, no caso, de uma petição, que é um ato do procedimento. Costuma-se denominar esse ato-petição de demanda, até para se evitar a confusão entre petição como ato e a petição como documento representativo desse ato. A demanda é ato jurídico, logo passível de existência, válida e eficaz. De um ponto de vista ontológico, a petição existe quando dirigida a alguém. Contudo, para ser algo a mais do que uma simples missiva, a petição precisa conter o petitum, ou seja, um querer algo do agente comunicado. Em termos mais próprios à linguagem processual: petição só existe se o sujeito peticionante (parte) comunicar ao juiz que quer algo. Pedir-lhe, portanto.

Logo, se se pede algo, petição há. É certo que, mesmo no âmbito da existência, a juridicidade interfere, de modo que o ser (ontológico) jurídico é antes um dever-ser (deontológico). Assim sendo, poder-se-ia dizer que para a existência (jurídica) do ato-petição algo mais seria necessário. Por exemplo, só se forma petição caso haja causa de pedir. Isto, todavia, necessitaria de expressa previsão normativa. O que se desconhece no direito brasileiro. Neste, a necessidade da causa de pedir refere-se a outro plano: ao da validade. Não por outro motivo, tem-se por irregular (inepta, especificamente) a petição em que não há causa de pedir (CPC, art. 330, § 1°, I). Ora, o que é irregular tem de existir. Não há irregularidade no que inexiste, pois este sequer tem a possibilidade de ser regular ou irregular.      

A necessidade da causa de pedir funda-se na ordem democrática. Como a atividade jurisdicional é de natureza impositiva, alguém só pode querer submeter (objeto do pedido) outrem se tiver uma justificativa jurídica para tanto. Se se quer obter a condenação do réu, por exemplo, é necessário dizer a razão juridicamente relevante disso: e. g., o inadimplemento de uma dívida. Tal como o juiz precisa motivar a decisão condenatória (CRFB, art. 93; CPC, art. 489, II, § 1°), o autor precisa justificar o porquê de seu pedido condenatório: aquele que foi colocado na condição de poder sofrer (o réu) tem o direito, até para poder exercer a ampla defesa, de saber a razão que pode levá-lo a tanto, eis a democraticidade referida acima.

Por isso e por todo o restante dito anteriormente, a causa de pedir existe por conta do pedido. Dada a relação estritamente deontológica entre eles, a análise dela deve ser à luz dele; e não o inverso, como seria se a relação fosse ontológica. Entretanto, não é que o pedido defina por completo a causa de pedir. Para todo pedido há uma causa de pedir. Por isso, em tese, a demanda já se encontra individualizada diante da formulação do pedido.

Ocorre que é possível que o mesmo pedido seja lastreado em mais de um fundamento. Desse modo, duas ou mais causas de pedir convergem para tanto. É o que se dá com a ação indenizatória movida pelo comodante contra o comodatário por danos causados à coisa emprestada. O fundamento para o pedido condenatório pode ser tanto a ofensa aos deveres contratuais como a ofensa ao direito de propriedade (ou, até mesmo, à posse)[3]. Há, aqui, um tipo de concurso de ações. No caso, de causas que concorrem para o mesmo pedido.    

Eis uma conclusão fundamental para o deslinde da problemática em apreço. Não haveria, por isso, forma mais adequada de encerrar este subitem.

 

1.2. Natureza da causa de pedir no contexto do ato-petição

Como cediço, a base normativa – ao menos a mais relevante – da necessidade da causa de pedir é o inciso III do art. 319, CPC. Por ele, estabelece-se que o autor deve indicar na petição inicial “o fato e o fundamento jurídico do pedido”.

Disto, duas conclusões já podem ser tiradas: i) há mais de uma indicação, sendo uma do fato e a outra do fundamento jurídico; ii) a causa de pedir é a própria indicação. Esta última carece de maiores explicações.

De acordo com o texto legal, a necessidade é de indicar e, como não poderia ser diferente, indicar algo. Nesse sentido, existe o ato indicativo e o objeto indicado: este é, primeiramente, um fato e, consequentemente, um fundamento jurídico; aquele, um texto que fala deles.

Desse modo, a ideia de causa de pedir deve ser enquadrada em alguma dessas duas coisas. Não há, não nos limites do texto legal em análise, um terceiro elemento. A causa de pedir não pode ser considerada como o objeto indicado acima referido, já que ele, como fato ou fundamento jurídico, tem a ver com a causalidade do direito subjetivo invocado, não com o pedido em si. O fato indicado, por exemplo, não se dá como fato processual, mas sim como fato afirmado processualmente. Ele é referente ao que se convencionou chamar de direito material[4]

Logo, a causa de pedir – até por ser, como demonstrado acima, o lastro do pedido – reside na própria indicação. Causa de pedir é um texto, não apenas um fato. É texto que se reporta a fato.

Eis o porquê de se dizer que a petição contém, além de comunicação de vontade (o pedido, consoante se demonstrou), também comunicação de fato, a causa de pedir. 

Por isso, a causa de pedir, tanto a dita remota quanto à próxima, reside numa alegação. Quem comunica fato diz que algo ocorreu ou não ocorreu. Relata. Essa alegação precisa ser constatada, a partir do aparato probatório possível.  

Mas não se alega o fato em sua realidade bruta. Alega-se-o já como produto de juridicização, ou seja, o fato jurídico. Por mais que se possa mal qualificar o fato alegado, a qualificação jurídica estará presente. Isto é devido ao pedido, pois este individualiza a demanda. Se se pede, por exemplo, a condenação do réu ao pagamento de determinada soma em dinheiro por ele não ter pago uma dívida oriunda de um contrato, estabeleceu-se este como referente à causa de pedir. Observe-se, no exemplo, a causa de pedir é, antes de tudo, formada pela alegação da existência do contrato, não ele em sua “mera” faticidade, mas sim como fato jurídico que é.

Outro exemplo é ainda mais esclarecedor. Suponha-se a propositura de uma ação de invalidação de contrato de compra e venda de veículo automotor, no âmbito da qual o autor alega que, iludido pela lábia do réu-vendedor, comprou um carro com motor recauchutado. A alegação da ocorrência de uma compra motivada pela mentira do vendedor é a causa de pedir dessa ação. Posto que esteja numa linguagem não propriamente técnico-jurídica[5], tal alegação já é referente à juridicidade, porquanto seja o suporte fático do ilícito dolo invalidante, este causa eficiente da ação anulatória. Dar a ela o nomen juris correto, porém, é algo que escapa ao ônus legal, o de indicar.   

É este, e somente, o modo pelo qual há de se analisar se o pedido é correspondente à causa. No exemplo, ao pedido anulatório está devidamente acoplada causa de pedir denotativa de fato jurídico ensejador da consequência almejada.

Um detalhe é fundamental, o princípio de individuação da demanda é definido no pedido, não na causa de pedir isoladamente[6]. Diz-se isso por uma razão muito simples: o mesmo composto fático pode ser fundante de mais de um fato jurídico. O recebimento de propina por servidor público é tanto base para o ilícito administrativo quanto para o criminal. Mais do que isso, o mesmo fato jurídico – portanto já dentro da juridicidade – pode dar ensejo a consequências distintas. O vício redibitório, por exemplo, gera ao adquirente da coisa tanto o poder de rescindir o contrato quanto o poder de, modificando-o, exigir o abatimento do preço.

Resta, todavia, um problema relativo à causa de pedir no contexto do ato-petição. Por qual razão se diz que existe uma causa de pedir remota e outra próxima? Será pela mesma razão, e até por isso mesmo, de a regra do inciso III do art. 319, CPC, imputar ao peticionante o ônus de indicar o fato e o fundamento jurídico do pedido?

Essas questões necessitam de ser enfrentadas num texto próprio. Até lá.  

 

Notas e Referências

[1] Por fato bruto deve se entender, primeiramente, o fato independentemente de sua juridicização, um puro fato, portanto. No segundo momento, bruto é qualquer fato – inclusive o jurídico – que ainda não foi objeto de comunicação a um agente detentor do poder de constatá-lo, como, acima de todos, é o juiz. Neste caso, há um bruto de segunda ordem. 

[2] Caso dos juizados especiais.

[3] Exemplo dado por Pontes de Miranda.

[4] A expressão direito material acima refere-se ao direito da res in iudicium deducta, e não aos direitos da relação jurídico-processual.

[5] Isto não obstante o fato de, ao menos, o termo compra já denotar juridicidade, uma vez que referente ao contrato de compra e venda. Tal contrato, no exemplo, volta à realidade fática de modo a compor suporte fático de outro fato jurídico, o do dolo invalidante.

[6] Essa afirmação é polêmica, contrária que é a entendimento doutrinário consolidado (José Rogério Cruz e Tucci, por todos). Necessita de maiores explicações, além das acima já feitas. Por princípio de individuação entende-se aquele elemento que diferencia, dentre as espécies, a unidade, o indivíduo, que é sempre diferente dos demais, embora tenha a mesma essência e propriedades. Como dito acima, o fato bruto (não juridicizado) não pode servir para individualizar numa realidade jurídico-processual, uma vez que o direito pode lhe atribuir mais de uma significação. Mesmo ao fato já jurídico, também consoante demonstrado, a individualidade não se dá necessariamente, já que mais de uma eficácia lhe pode ser atribuída. O processo necessita de uma definição, a qual se dá de dois modos: quanto às partes, na petição; quanto ao juiz, na decisão. E a petição somente se define com o pedido, do contrário haveria apenas uma simples missiva. Por mais individualizado que esteja o fato, incluindo a determinação de sua eficácia, sem o pedido não se pode definir e, consequentemente, não se tem como julgar. A ausência de pedido é o grau mais alto de inépcia existente. Se o sistema permitisse apenas a indicação do pedido, sem o lastro causal, a rejeição implicaria total impossibilidade de ele ser reformulado. Haveria um pedido abstraído de causa. Como é necessária a indicação da causa de pedir, a individuação faz-se pelo pedido devidamente colorido pela causa de pedir, de modo que o pedido se torna causal.          

 

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