CURATELA, INTIMIDADE E SEGREDO DE JUSTIÇA

03/04/2024

O instituto da curatela oferece na atualidade uma série de desafios: qual a medida da autonomia que protege a pessoa da má administração financeira, mas mantém a sua autodeterminação?

A proteção da pessoa vulnerabilizada pela deficiência intelectual, pela demência ou pelo transtorno mental gera grandes reflexões, mas a sua concretização pode estar nos detalhes.

Aqui se quer especialmente refletir sobre a proteção da intimidade da pessoa a ser curatelada no processo de interdição, vez que a salvaguarda de sua personalidade deve ocorrer com especial atenção.

 

A mudança de perspectiva da curatela na última década

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, de julho de 2015, trouxe mudanças significativas ao estatuto das capacidades no Código Civil, assim como revogou parte significativa do capítulo da curatela.

Naquela ocasião, chegou-se a cogitar que o instituto da curatela teria desaparecido do Direito brasileiro como forma de valorização da autodeterminação e afastamento da noção de incapacidade absoluta para pessoas com mais de dezesseis anos, devendo ser substituído pela tomada de decisão apoiada.

Passado o agito inicial e a com a entrada em vigor do Código de Processo Civil, restou consolidada a ideia de que a curatela continuava a existir no nosso sistema, mas que merecia uma mudança drástica de perspectiva, ficando limitada, sempre que possível, aos aspectos patrimoniais da vida do curatelado.[i] A partir disso, a curatela assumiu uma dimensão protetiva das pessoas vulneráveis que, por algum motivo, não conseguem ter controle de sua renda e de seus bens, transferindo essa responsabilidade a um terceiro fiscalizado pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

O aspecto central e desafiador da curatela é como permitir que a pessoa curatelada seja representada em suas contas, mas que mantenha a sua autonomia frente às decisões existenciais, sempre que possível.

De toda forma, no paradigma atual da proteção das pessoas cuja capacidade está desafiada por deficiência intelectual ou transtorno mental, a manutenção de sua dignidade em todos os seus desdobramentos é o princípio orientador de todas as decisões jurídicas para a sua representação.

 

A inviabilidade de que as informações de um processo de curatela sejam públicas

Ora, (i) tendo mudado a curatela, (ii) tendo a dimensão de intimidade se transformado com a internet, e (iii) tendo o direito processual se alterado para a proteção do jurisdicionado, ainda é viável falarmos ainda de processos de interdição tramitando publicamente? Entendo que não.

O artigo 189 do Código de Processo Civil prescreve que os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça, especificamente, os processos que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes. Não estando a curatela enumerada entre as ações de família que devem tramitar sob sigilo, o Poder Judiciário, especialmente em Minas Gerais, tem entendido que não é possível estender o segredo de justiça às ações de interdição.

Ao argumento de que não há previsão legal, consigne-se que é claramente aplicável o inciso III do mencionado dispositivo processual, que determina o sigilo aos processos em constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade. Isso porque os laudos comumente juntados a essa espécie de processo trazem dados sobre a capacidade da pessoa para realizar as atividades da vida diária, com detalhes sobre higiene pessoal, sobre medicação prescrita e sua rede de cuidados. Não bastasse, é normal que sejam exigidos comprovantes de renda e extratos bancários. Difícil imaginar informações mais ligadas à intimidade do que as que fundamentam um pedido de curatela.

Há, ainda, o argumento de que a condição de curatelado precisa ser pública, o que não se nega. Aquele que negocia com uma pessoa curatelada precisa ter disponível a informação acerca de sua capacidade para os atos que serão praticados. Mas não é o processo completo deixado como público que deve garantir essa publicidade. A publicidade da curatela é dada pelo assento no livro E dos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Até a curatela provisória pode ser registrada, cumpridas as exigências dos regulamentos de cartórios. O Poder Judiciário, ao conceder a curatela provisória ou definitiva, deve exigir a prova de que o curador cuidou do registro e, portanto, da publicidade, conforme a determinação do artigo 755, § 3º, do Código de Processo Civil.

Isso sem falar que os editais são publicados nos sites dos Tribunais, o que faz com que a informações de uma curatela sejam passíveis de serem encontradas a um clique no buscador de informações.

Ao apelo de que outras pessoas precisam ter conhecimento do processo de curatela para que possam intervir e, porventura, requerer o múnus para si, é de se anotar que há sistemas de certidões judiciais nos sites dos tribunais, como é o caso do sistema rupe no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Não há argumento que se sustente para a tramitação pública de processos de interdição, nos quais, pela natureza da ação, é preciso afirmar e comprovar aspectos extremamente íntimos da vida de uma pessoa que já se encontra vulnerável. Como defende Iara Souza, a “interdição deve ser interpretada como o reconhecimento judicial da falta de discernimento e a curatela como cuidado”.[ii] Nessa perspectiva, o processo deve servir para proteger e não para expor o curatelado.

As pretensas justificativas de que não há previsão legal ou de que terceiros precisam tomar conhecimento da informação não têm como centro a proteção da intimidade, da autodeterminação e, em última instância, da dignidade da pessoa curatelada. Portanto, não cabem no paradigma protetivo atual do Direito brasileiro.

 

Notas e referências

[i] A história da sucessiva entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Código de Processo Civil, assim como dos desafios da limitação da curatela à administração financeira, é contada em detalhes em: Lara, Mariana Alves. Capacidade civil e deficiência: entre autonomia e proteção. Belo Horizonte: D’Plácido: 2022, p. 129 e ss.

[ii] Souza, Iara Antunes de. Estatuto da Pessoa com Deficiência: curatela e saúde mental. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 378.

 

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