O desdobramento da História: um tanto de acaso, um tanto de investimento. Nossa História complicou-se e foi por demais complicada por nós mesmos. História, em geral, confunde-se com a narrativa das relações de poder.
O exercício do poder instituído sempre está mais ou menos autorizado pelos poderosos de fato. Quero dizer: quem alcança o poder político tem compromissos com o sistema de poder real de uma sociedade.
Esses compromissos são, ou deveriam ser, o objeto do permanente escrutínio do intelectual não alinhado partidariamente. Desimporta quem o exercite; o exercício mesmo do poder deve estar sempre sob suspeição.
Cá entre nós, a grande parte dos intelectuais engajou-se, perdendo o distanciamento necessário para analisar as circunstâncias. Sim, não existe neutralidade, mas poderia haver alguma equidistância metódica e honesta.
As relações de poder em países com larga tradição liberal e democrática de direito acontecem com menos pessoalidade. Democracias fortes repudiam personalismos; os indivíduos subsumem-se nas instituições.
Democracias interrompidas por ditaduras têm esvaziado o significado das instituições. Valorizamos as estruturas marcadas por um chefe: o caciquismo, o mandonismo, o coronelismo, o caudilhismo. E os demagogos.
As instituições são o sagrado do mundo laico. São estruturas políticas estabelecidas em lei com intenção de vigor perene. Os institutos estruturais do Estado brasileiro são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
É da doutrina e da prática da organização do estado liberal democrático de direito que cada Poder seja, de fato, independente. A vida institucional democrática é um discurso possível que carece de uma prática realizada.
Discurso demais, prática de menos. Se desgostamos de dado governo ou mesmo de certa autoridade, logo propomos o contorno das leis. Não há, contudo, república que resista ao atropelo do seu arcabouço estruturante.
A ideia da norma pública para todos em todas as circunstâncias não vingou; a lei nos parece um estorvo e não uma necessidade. O pessoal está antes do público. Em verdade, confundimos um com o outro.
Na salvação a qualquer custo de concepções particulares, seguimos quem atenda reclamos particulares. Se ainda não encontramos um político salvador (um demagogo autoritário) encontramos um Poder sem políticos.
Nesse instante de (motivado) desgosto com políticos (do Legislativo e do Executivo) o Judiciário estaria, na concepção dos vingativos, promovendo a devida higiene moral da Pátria. E está, mas está-se passando da conta.
O Mensalão com o dedo em riste do Barbosa, a Lava-Jato com o “consequencialismo” do Moro (confirmado pelo STF), o impeachment fatiado do Lewandowski salvando os direitos políticos de Dilma. É o Judiciário agradando.
O Supremo foi levado para longe do papel de Corte Constitucional; foi tornado Corte de Apelação de tudo. Está procurando safar-se disso, mas meteu-se em outras decisões que constitucionalmente não são suas.
Sem base constitucional para tanto, o STF afastou o (execrável) Cunha. O ex-sócio de Dilma havia patrocinado o impeachment da ex-presidenta, então aplausos lulopetistas ao Judiciário. Silêncio da oposição.
Agora, o (abominável) Renan. Existia “jurisprudência”: Teori havia, numa canetada, derrubado o presidente da Câmara dos Deputados. Marco Aurélio, liminarmente, monocraticamente, tombaria o Presidente do Senado.
A Mesa Diretora do Senado não concordou. A Mesa é sobra do combo peemopetista. O STF não imaginava a reação. Foi uma inusitada contraposição de poder a um Poder que estava por demais abusado.
Com cautela, declaro que gostei. O STF doravante pensará no que pode, como sempre pensou, mas também no que não pode. É fundamental para a República que as autoridades saibam o que não podem.
Refiro o ordenamento político do País, as instituições, a divisão de Poderes. Não me ocupo do Cunha ou do Renan. Sobre esses dois, ou seus significados institucionais, todavia, algo há de ser falado. Eles foram eleitos.
Vamos lembrar que os políticos são eleitos não apenas pelo que são e representam, mas a despeito do que são e representam. Não vale argumentar que o povo, o titular dos mandatos, não sabe o que faz.
Cabe ao povo escolher os políticos; esse é o perene jogo institucional. Os políticos são postos e depostos pelas urnas. A intervenção judicial é exceção; uma liminar não pode ser ferramenta para depor um chefe de Poder.
Ainda que o nome do político seja Cunha ou seja Renan, a “lógica” da sua presença no poder é política, não judicial. É um engano trágico descontruir a política quando apenas se deseja afastar um político.
Política é eleição: filiação partidária, eleição do diretório, nominata de candidatos, campanha eleitoral, voto. Se desprezamos o processo, elegemos políticos que nos são estranhos. Aí, óbvio, o estranhamento.
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