Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
É de suma importância dar voz à criança e ao adolescente, mas, tão importante quanto isso, é interpretar aquilo que não é verbalizado pela criança "e ir além das reivindicações de autenticidade para reformular a voz num continuum entre aquilo que é, literalmente, vocalizado e aquilo que é dito silenciosamente" (Hanna; Lundy, 2021, p. 466).
Nesse contexto, a Lei 13.431 de 2017 estabeleceu o sistema de direitos e garantias de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. A princípio, essa lei dá voz à criança vulnerabilizada pela violência; no entanto, também tem sido usada para garantir o ius puniendi estatal, revitimizando meninos e meninas.
Sob essa perspectiva, as autoras Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese, Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – NEJUSCA/UFSC, referência na pesquisa do Direito da Criança e do Adolescente, e a Profa. Dra. Sandra Muriel Zadroski Zanette, pesquisadora do NEJUSCA/UFSC, discorrem na obra “Cultura Punitivista e Depoimento Especial nas Ações de Violência Intrafamiliar: Estudos de Casos” acerca da aplicação do depoimento especial em crianças vítimas e testemunhas de violência doméstica, por meio de análise de casos e sentenças prolatadas pela Vara do Juizado de Violência Doméstica Contra Mulher da Comarca da Capital do Estado de Santa Catarina.
De modo inicial, as autoras discorrem acerca da cultura punitivista enraizada na sociedade e no judiciário brasileiro, relacionando o fenômeno ao Direito Penal do Inimigo, em que este não é simplesmente o infrator, ele é o outro, o estrangeiro, o estranho, o inimigo, o hostis – ou seja, aquele que, desprovido de direitos em termos absolutos, encontra-se fora da comunidade.
O desejo de punição do Estado deve encontrar limites para aplicação da pena, os quais devem garantir o direito do povo e, ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana. Nesse viés, o processo penal no Brasil, em que pese legislação existente, não tem como finalidade principal a proteção da vítima, seja ela adulta, menos ainda, criança ou adolescente, quedando-se ao esquecimento, posto que o objetivo principal é a imposição da pena ao autor do delito.
No entanto, as autoras destacam que, em casos de violência intrafamiliar, o autor não é, na maioria das vezes, um desconhecido, mas sim uma pessoa com estreitos laços de afinidade com a criança. Dessa forma, para o Estado, a punição pode encerrar o caso, mas para a criança, a situação não se resolve tão facilmente.
Nesse sentido, para mitigar o paradigma punitivista do Estado, as autoras sugerem a adoção da justiça restaurativa como uma alternativa à falência e morosidade do sistema penal para situações de violência intrafamiliar. Dessa forma, a justiça restaurativa é definida como um processo no qual todos os envolvidos em uma ofensa resolvem coletivamente como lidar com suas circunstâncias e consequências.
Um exemplo aludido pelas autoras foi a Lei Menino Bernardo, a qual trata a questão do agressor ao prever, além de outras sanções, o encaminhamento a programas oficiais ou comunitários de proteção à família, tratamento psicológico ou psiquiátrico, e cursos ou tratamentos especializados. Dessa forma, em vez de aplicar uma punição meramente retributiva, a legislação reconhece a culpa do infrator, que deve ser responsabilizado, mas também oferece a chance de ser perdoado pela vítima.
Embora a justiça restaurativa não possa ser utilizada em todos os contextos, há uma tendência de as vítimas perdoarem ofensas cometidas por familiares ou amigos. Isso torna a justiça restaurativa útil no contexto da violência intrafamiliar, pois a reparação é mais bem-sucedida do que a retaliação, uma vez que reduz o risco de reincidência do ofensor, envolve menos custos em comparação com o encarceramento e preserva os relacionamentos intrafamiliares.
Para além disso, a violência intrafamiliar exige um olhar mais sensível, especialmente diante de um sistema penal punitivista. Embora o agressor deva ser responsabilizado, o ato de a criança participar do processo, agora com voz ativa através do depoimento especial, por si só, já é uma violação de seus direitos. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, o ofensor tem um certo grau de parentesco e afetividade com a criança, que muitas vezes não deseja vê-lo condenado, havendo necessidade de questionar a realização do depoimento especial em casos como esses.
Por isso, a obra questiona a necessidade e a efetividade do depoimento especial em casos de violência intrafamiliar, apresentando, em um segundo momento, um estudo de casos e análise de 29 processos sentenciados, com depoimentos especiais de crianças e adolescentes, realizados no ano de 2018, na Vara do Juizado de Violência Doméstica Contra Mulher da Comarca da Capital do Estado de Santa Catarina.
Nesse ínterim, em uma abordagem numérica da análise realizada pelas autoras, destacou que, ao analisar a necessidade do depoimento especial para o resultado decisório pelo juízo, a resposta é que em 93% (noventa e três por cento) das vezes ele é considerado desnecessário. Isso ocorre por uma variedade de motivos, como a presença de elementos suficientes nos autos, a falta de convencimento do magistrado, ou ainda porque a criança ou o adolescente não souberam ou não quiseram falar sobre o fato.
A obra destaca, também, os tipos de violências em que crianças e adolescentes são vítimas ou testemunhas, sendo que, das sentenças analisadas, 21% (vinte e um por cento) eram de violência sexual, 38% (trinta e oito por cento) de violência física e 41% (quarenta e um por cento) de violência psicológica. Aludiu-se, ainda, que com exceção dos crimes sexuais, crianças e adolescentes foram vítimas em 100% (cem por cento) dos crimes denunciados em que todos os ofensores eram pessoas próximas às vítimas.
Observou-se também que, nos casos de crimes sexuais em que os réus não foram condenados, as vítimas, crianças e adolescentes, foram ouvidas e detalharam as violências sofridas. No entanto, o depoimento especial nestes casos reforçou a revitimização dessas vítimas e, ao contrário do que a lei propõe, não deu voz às crianças, negligenciando-as e causando ainda mais prejuízo.
À vista disso, a obra destaca que, apesar da Lei 13.431/2017 ter entrado em vigor apenas em 4 de abril de 2018, e os depoimentos analisados terem sido realizados tanto antes quanto depois dessa data, não foram observadas diferenças significativas nos procedimentos que pudessem alterar os resultados obtidos. Foi destacado que os depoimentos foram conduzidos por psicólogos capacitados, conforme ressaltado pelo juízo. As autoras também elogiam a preocupação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina com a capacitação dos profissionais envolvidos.
Na sequência, destacam que, na análise realizada, não se basearam na metodologia utilizada para a coleta dos depoimentos, mas sim na contribuição desses para esclarecer os fatos e fundamentar as decisões judiciais. Primeiramente, observou-se que, nos casos de crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes, a voz da vítima foi amplamente desconsiderada, sendo que a maioria dos acusados eram pessoas próximas, como parentes ou companheiros de parentes, caracterizando violência intrafamiliar. Dos seis processos analisados neste contexto, apenas 2 resultaram em condenação.
Consequentemente, concluem que fundamentar decisões judiciais com base no depoimento da criança e do adolescente é, no mínimo, ingênuo, pois o conceito de "voz" pode ser ambíguo e enganador. Para ilustrar, a Lei 13.431/2017, em seu art. 4º, inc. II, alínea C, define que qualquer conduta que exponha a criança ou adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou rede de apoio caracteriza violência psicológica. Logo, a obra enfatiza o papel do Ministério Público na utilização desse conceito para garantir que o acusado seja responsabilizado, mesmo sem a necessidade de dolo, por expor crianças e adolescentes a testemunhar violência intrafamiliar. Argumentam que não basta proteger a criança e ao adolescente apenas do dano físico, mas também do psicológico. Portanto, o entendimento é que o juízo, também, deve considerar a condenação do acusado nessas situações de violência intrafamiliar envolvendo crianças, devido à exposição desses jovens a violências e, consequentemente, traumas.
A obra reconhece a cultura punitivista do Estado e a marginalização da vítima, que muitas vezes é vista apenas como informante, enquanto o acusado enfrenta uma abordagem estritamente punitiva. À vítima é atribuído o papel de produzir provas para auxiliar o juiz em sua decisão, o que revela que o encarceramento por si só não é adequado. Para crianças e adolescentes que foram vítimas de violência, a retaliação é muito menos eficaz do que a reparação, que pode ser instituída de forma institucional. O perdão não deve ser visto como uma maneira de evitar prejudicar o ofensor, mas como um meio para que ele reconheça e repare o dano e o sofrimento causados às vítimas.
A pesquisa realizada concluiu que para crianças e adolescentes submetidos ao depoimento especial, o que deveria ser um direito torna-se um dever, e a suposta proteção transforma-se em revitimização. A obra sugere que o depoimento especial, conforme atualmente realizado, não é compatível com o sistema acusatório próprio do processo penal, mas sim com o sistema inquisitório, o que pode resultar na revitimização desses jovens ao expor suas feridas sem se preocupar em tratá-las adequadamente.
Notas e referências
HANNA, Amy; LUNDY, Laura. Voz das Crianças / Children’s Voices. Conceitos-Chave em Sociologia da Infância. Perspetivas Globais / Key Concepts On Sociology Of Childhood. Global Perspectives, p. 463-468, 13 dez. 2021. UMinho Editora. http://dx.doi.org/10.21814/uminho.ed.36.58.
VERONESE, Josiane Rose Petry; Zanette, Sandra M. Cultura punitivista e depoimento especial nas ações de violência intrafamiliar: estudos de casos. Florianópolis: Habitus, 2023. [recurso eletrônico]. 128 p.
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