Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Na era da globalização, a doutrina do neoliberalismo propugna por um Estado Social mínimo e um Estado Penal máximo. Essa ideia reflete a utilização do Direito Penal como instrumento de controle social, cuja seletividade contribui para a manutenção da estrutura vertical da sociedade. No sistema capitalista, a criminalidade, assim como todos os bens, positivos ou negativos, são distribuídos de forma desigualitária. Impende destacar o papel que a mídia e as autoridades incumbidas da persecução penal exercem nessa relação entre direito penal e exclusão social.
Inicialmente, falaremos da mídia, que, ao fomentar a cultura do medo e da insegurança nas pessoas, contribui decisivamente para que as políticas repressivas desfrutem de aceitação popular e ainda, em muitos casos, afasta os holofotes da premissa que alimenta o problema da criminalidade: a ausência de programas sociais governamentais adequados para diminuir as mazelas sociais.
As notícias veiculadas pela mídia seguem a famosa teoria do agendamento, vale dizer, a pauta é confeccionada de acordo com os interesses lucrativos das empresas midiáticas e seus parceiros colaboradores. É importante fincar que no sistema capitalista há os que lucram com a disseminação do medo e da insegurança. Acerca destes interesses correlatos, alude Christie: “(....) prisões significam dinheiro. Muito dinheiro. Em construções, em equipamentos e em administração. Isto é assim, independentemente de se tratar de prisões privadas ou públicas”[1].
O público, diante das informações recebidas, supervaloriza o fato que o veículo de comunicação propositadamente divulgou de forma enfática. Ademais, forma-se uma verdadeira confusão entre opinião pública e opinião publicada.
Alimentado pela mídia, o governo investe em programas de repreensão e olvida as políticas públicas de viés sociais. Nesse contexto, quão contemporânea o questionamento outrora feito por Thomas Morus: “Que outras coisas fazes, além de fabricar ladrões para então puni-los?”[2].
A mídia é responsável ainda pela criação no imaginário popular de um estereótipo de criminoso, vinculado fortemente aos economicamente desfavorecidos, que são vistos como verdadeiros outsiders pelos que se enquadram no topo da pirâmide social. Os pobres não são enquadrados como problema social e sim como categoria criminosa, sobre a qual devem incidir tipificação penal e rigorosa aplicação da lei. Nas palavras de Guimarães: “o Direito Penal é o mais eficaz e seletivo meio de controle social, não de resolução de conflitos sociais”[3].
Os desfavorecidos economicamente são, por conseguinte, duplamente prejudicados: além de mais facilmente enquadráveis na posição de criminoso, são também mais vulneráveis a serem vítimas de delito, uma vez que “a insegurança é uma desigualdade social que afeta sobretudo os cidadãos menos favorecidos”[4]. E, nesse contexto, ao invés de reivindicarem seus direitos, acreditam na ditadura do medo e apoiam as ideologias de lei e ordem. As leis, por sua vez, reverberam uma seletividade do Direito Penal.
A Justiça Penal atua desigualmente não apenas na criminalização primária, o impacto do tratamento destoante pode ser aferido também na criminalização secundária, o que é refletido na atuação dos agentes públicos e perceptível em todas as fases da persecução penal.
Os crimes cometidos pelos pobres ocorrem em lugares públicos e, por isso, mais facilmente detectáveis pelos agentes policiais. Os crimes dos poderosos operam em espaços reservados, o que obsta a atividade da polícia, e, em regra, não tem vítima determinada, o que dificulta que alguém se dirija à autoridade policial para notificar a ocorrência do delito. E, nas situações em que a noticia criminis chega ao conhecimento da polícia, não se vislumbra uma investigação nos moldes em que é operada com relação à criminalidade de rua.
Vários fatores explicam esse tratamento diferenciado, dentre eles, o custo/complexidade das investigações e o juízo de menor gravidade operado pelos próprios policias com relação ao delito dos poderosos. A polícia opera uma verdadeira seletividade nos crimes que deverão ser objeto de investigação e quais os que deverão ser relegados a compor as cifras ocultas. Visualiza-se com frequência o tratamento diferenciado entre uma adolescente pobre e um rico que porventura cometam um ato infracional. O primeiro será alvo de um procedimento criminal para apuração do ato infracional ao passo que o segundo será entregue aos pais, com a confiança de que estes advirtam aos filhos para que não reincidam na conduta desviante[5].
A atividade policial respinga na postura do Ministério Público, quanto ao oferecimento da peça acusatória ou proposta de acordo de não persecução penal, uma vez que que estes são ofertados com base nos elementos informativos de autoria e materialidade colhidos na investigação policial. Os crimes dos poderosos, em regra, envolvem, para o seu desvendamento, conhecimentos técnicos especializados, o que dificulta que se consiga formar uma materialidade. Além disso, conforme já exposto acima, os agentes policiais selecionam os crimes que julgam mais graves e sobre eles concentram sua atividade de colheita de material probatório. Ademais, as diligências de que necessita o parquet para o andamento da persecução penal, em regra, são executadas pela polícia.
Pode-se vislumbrar ainda tratamento diferenciado na fase de julgamento. Poucos os white-collars que são condenados a pena de prisão, por entenderem os julgadores que suas condutas, desprovidas de violência no modis operandi, são menos gravosas. Ainda sobre essa constatação, argumenta-se que os poderosos prescindem de ressocialização. Todavia, essa última argumentação é mera falácia, o que realmente acontece é que dificilmente os white-collars são importunados pela Justiça Penal, o que os impede de serem considerados reincidentes[6]. Ademais, os julgadores vislumbram na criminalidade comum o exercício de sua atividade rotineira, ao passo que os crimes dos poderosos, por serem complexos e exigirem, muitas vezes, até conhecimentos técnicos, demanda do juiz mais tempo e atenção; quando remanesce qualquer dúvida, opta-se pela absolvição do acusado[7].
Uma lei penal desigualitária tal qual verificada no Brasil, quer na sua confecção, quer na sua aplicação, desemboca, por conseguinte, em um sistema prisional formado essencialmente por pessoas dos estratos sociais desfavorecidos. A forma de aplicação das penas privativas de liberdade remonta à ideologia burguesa de trabalho, fulcrada no princípio do less eligibity: as condições de vida no cárcere devem ser aquém às condições de vida das categorias mais baixas dos trabalhadores livres[8].
Interessante notar que os direitos inerentes à execução penal, a exemplo da progressão de regime e livramento condicional, exigem requisitos bem mais rígidos para os reincidentes e agentes de crimes hediondos. Entretanto, hediondos são os crimes cometidos pelos pobres. Observa-se que a imensa maioria dos crimes elencados no rol dos hediondos correspondem à criminalidade comum, o que atesta que o sistema penal age de forma seletiva em face da conflituosidade social.
Os pobres são também, em regra, os reincidentes. A prisão não cumpre sua (teórica) função ressocializadora. Conforme há muito aludia Carnelutti: “O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas, ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado”[9]. Diante da visão estigmatizada, a sociedade nega-lhe direitos e possibilidades. Submerso numa cadeia de adversidades, é induzido a buscar oportunidades ilegítimas. Toda essa série de acontecimentos desembocam numa carreira criminal, que se materializa na reincidência.
Não se trata aqui de almejar-se o encarceramento dos ricos, mormente quando se sabe de todos os malefícios da prisão, mas apenas de questionar o tratamento mais rigoroso dispensado aos desfavorecidos economicamente e a utilização do Direito Penal como clamufagem dos problemas sociais.
Em conclusão, pode-se dizer que a violência estrutural é a gênese dos problemas sociais. As condutas dos poderosos, revestidas de corrupção, exploração, fraude, lavagem de dinheiro, na grande maioria das vezes quedam impunes, geram inúmeros danos sociais e abalam as estruturas sociais e políticas. Todavia, as classes detentoras de poder vinculam os problemas sociais à criminalidade, escamonteiam suas reais origens e assim surge um cenário favorável para que o Estado adote políticas repressivas.
Outrossim, o Estado Democrático de Direito cede espaço para um Estado Policial, cujo raio de ação dirige-se para as consequências do crime e não para a solução das causas determinantes da criminalidade.
Notas e Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 2 reimp. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2014
CARNELUTTI, Francesco; As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Nilobook, 2013
CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Traduzido por Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998
GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Georg. Punição e estrutura social. 2 ed. Traduzido por Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004
SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco ( Da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal). Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3 ed. Traduzido por Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015
[1] CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Traduzido por Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 101.
[2] Cf. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Georg. Punição e estrutura social. 2 ed. Traduzido por Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p. 41.
[3] GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, p. 30-31.
[4] WACQUANT, Loic. Punir os pobres : a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3 ed. Traduzido por Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015, p.460.
[5] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 2 reimp. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 181.
[6] SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco ( Da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal). Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 257-261.
[7] “Pesquisas empíricas tem colocado em relevo as diferenças de atitudide emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduos pertencentes a diversas classes sociais. Isto leva os juízes, inconscientemente, a tendências de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados... Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento conforme à lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores”. Cf. BARATTA, Alessandro. Op. cit, p. 177-178
[8] RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Georg. Op. cit, p. 36-37.
[9] CARNELUTTI, Francesco; As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Nilobook, 2013, p. 99.
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