CRIMINALIZAÇÃO DA LGBTIFOBIA – DO ACESSO À JUSTIÇA À INEFICÁCIA DO DIREITO PENAL

15/05/2019

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

O Supremo Tribunal Federal (STF), por ato de seu presidente, Ministro Dias Toffoli, remarcou para o próximo dia 23 de maio o julgamento da pauta sobre a criminalização da LGBTIfobia.

O caso tem origem na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, ajuizada pelo Partido Popular Socialista (PPS) e no Mandado de Injunção (MI) 4733, ajuizado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

Em apertada síntese, as ações requerem a intervenção do Poder Judiciário para que, face à omissão legislativa, reconheçam a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, bem como para aplicar interpretação conforme a constituição a fim de compatibilizar o significado da lei que define crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei 7.716/89) aos direitos constitucionais garantidos à população LGBTI+.

A discussão sobre o tema é fundamental, em especial no momento em que o país vive a supremacia da intolerância.

Expressão maior do Poder Legislativo, a lei, aqui entendida em sua concepção ampla, materializa a expressão de vontade do povo e é fundamental para o pleno exercício da cidadania.

Mais que isso, as leis determinam o patamar civilizatório de uma sociedade, ou ao menos onde se espera chegar. Em um Estado de Direito, no qual todos estão submetidos às normas e observância aos direitos fundamentais, sua importância é patente.

Dentre os direitos fundamentais, há de se destacar, do ponto de vista processual, um dos mais importantes: o acesso à justiça, garantido constitucionalmente no art. 5º, inciso XXXV[1], da Constituição Federal.

Com o advento do Estado Social, o acesso à justiça não mais se concretiza com a mera possibilidade de os interessados terem seu pedido apreciado pelo Estado, mas com a efetiva atuação estatal a fim de fazer valer direitos e garantir a solução de conflitos no menor prazo possível e com o menor prejuízo às partes litigantes[2].

Não à toa, este exercício implica na necessidade de edição de normas que prevejam especificamente quais condutas não são aceitas pela sociedade, bem como suas eventuais consequências.

Portanto, é seguro dizer que o efetivo acesso à justiça somente será garantido quando os cidadãos puderem submeter seu pedido ao Poder Judiciário e tê-lo analisado à luz de legislação específica, capaz de subsumir o fato à norma.

Logo, sob essa ótica, à comunidade LGBTI+ não é assegurado o efetivo acesso à justiça, pois ao submeterem eventuais violações de seus direitos à análise do Poder Judiciário, não lhes será prestada a tutela jurisdicional adequada, face à omissão do Poder Legislativo em legislar especificamente sobre práticas contrárias às suas liberdades individuais.

As omissões do Poder Legislativo, notadamente normas que resguardam a liberdade da comunidade LGBTI+, implicam em flagrante violação a seus direitos constitucionais.

Mas não basta. A mera edição de leis é medida paliativa e, uma vez que atuem isoladamente, correm o risco de se tornarem letras mortas e abarrotarem o arcabouço jurídico do país.

Os direitos e garantias fundamentais (de todos, portanto) previstos na Constituição da República impõe a intervenção do Estado, todavia no sentido de criar plenas condições para a efetivação daqueles direitos, e não no sentido de ampliar o poder punitivo, criminalizando condutas antes imunes à intervenção penal, feito o caso da LGBTfobia.

Servir-se de tais direitos, com vista ao alargamento da criminalização, representa profunda incoerência por parte dos grupos reconhecidamente defensores do sistema protetivo dos direitos humanos: outrora, enfrentar a descriminalização porque nos agredia, agora, criminalizar porque nos protege.

Espera-se, claro, que ninguém se diga contrário à Constituição ou ao combate de preconceitos e desigualdades, tampouco cúmplice ou complacente à criminalidade e seus autores, mas pregar a criminalização da LGBTfobia, em um contexto de expansionismo penal[3], especialmente por críticos habituais do funcionamento da justiça criminal, só reforça a legitimação desse sistema repressor, estigmatizante, desigual e seletivo e dos aparatos judiciais e policiais a ele relacionados.

Hipnotizados com esse desejo de transformação social,  certos grupos, especialmente movimentos sociais e políticos, agora protagonistas desse debate entabulado no Supremo Tribunal Federal, invertendo e contradizendo seus próprios princípios, se esquecem que a excepcionalidade está no âmago do direito penal, ou seja, sua utilização deveria ocorrer apenas em última instância (ultima ratio), valendo-se, para tanto, do inconsciente inquisitorial[4] tão presente na nossa sociedade, cada vez mais policialesca, culturalmente punitivista e com fascínio por violência[5].

Não é forçoso lembrar que o discurso punitivo, mesmo associado aos melhores intentos, seduz facilmente, feito canto de sereia, mas se não resolve patologia social alguma, não deverá resolver a odiosa realidade da LGBTfobia.

Inegável que atos discriminatórios, aqui compreendidos como práticas individuais ou institucionais de caráter circunstancial ou sistêmico que produzem desvantagens sociais para membros de certos grupos que são culturalmente construídos como inferiores[6], são gravíssimos e precisam ser enfrentados com rigor, apostando, no caso da LGBTfobia, por exemplo, em medidas afirmativas eficazes no combate à discriminação por conta de orientação sexual e de identidade de gênero, mas não a qualquer preço, não por meio do direito penal, que, bem se sabe, recai, historica e sistematicamente, sobre os ombros da população mais carente.

Não é difícil perceber que o uso do direito penal por suas agências parece não ter o condão de aliviar o sofrimento da vítima, devendo-se cuidar, por exemplo, para não se valer da justiça como pretexto para a prática de vingança. É preciso, então, apaziguar esse gozo por punição severa, atenuar o inchamento estatal na persecução penal e refletir sobre os motivos que fazem as coisas serem como elas são, sob pena de cairmos, repetidas vezes, no círculo vicioso da repressão[7].

 

 

Notas e Referências

[1] Art. 5º (…) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[2] Mendes, Aluisio Gonçalves de Castro e Silva, Larissa Clare Pochmann. Acesso à justiça: uma releitura da obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a partir do Brasil, após 40 anos. Quaestio Iuris. vol. 08, nº. 03, Rio de Janeiro, 2015. pp. 1827-1858

[3] SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

[4] CASARA, Rubens R R. Estado pós-democrático: não-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 106, 2017.

[5] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.

[6] MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando, p. 195, 2017.

[7] ROSA, Alexandre Morais da; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da punição: a ostentação do horror. 3. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, p. 75, 2017.

 

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