Crianças, origens e violências: reflexões sobre o abolicionismo do acolhimento institucional de crianças

13/04/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Não faz um ano que dissemos em uma coluna para a OBIJUV algumas palavras sobre o discurso da violência como meio para a educação de crianças (GONÇALVES, 2020). Dois meses depois, foi nomeado pelo presidente da república para o Ministério da Educação um ministro que, dentre outras coisas, já defendeu a dor como instrumento para educar[1]. A nomeação não causa estranheza, uma vez que o próprio presidente Bolsonaro já defendeu a violência em muitos contextos, inclusive para evitar que, segundo sua visão distorcida da realidade, crianças se tornem gays[2].

Recentemente em Campinas/SP, um pai que mantinha um filho de 11 anos preso em um barril em condições subumanas justificou sua ação como uma forma de lidar com a agitação da criança e educá-la[3]. Só no primeiro trimestre deste ano foram noticiados pela mídia ao menos três casos de intensa violência contra crianças[4]. Os casos apresentam semelhanças entre si em relação à privação de liberdade das crianças e à violência física perpetrada por seus responsáveis. No presente trabalho, nosso objetivo é realizar alguns apontamentos sobre o uso do acolhimento institucional como mecanismo de controle das famílias negras e pobres pelo Estado.

 O que se observou a partir das publicações do caso da criança de Campinas é que se fomentou, sob a insígnia da defesa dos direitos humanos, que a institucionalização da criança estaria dentre as estratégias preventivas viáveis para dar conta do caso[5]. O discurso de institucionalização produziu efeitos na realidade. O menino foi descoberto por vizinhos em 29/01/2021[6]. Em 02/02, se lê que a criança estava sob tutela de uma tia[7]. No dia seguinte, em 03/02, a criança foi institucionalizada[8], mesmo que a família extensa tenha afirmado que queria a guarda da criança[9]. Um mês após a notícia sobre o fato, em 03/03, o Ministério Público afirmou a necessidade de avaliação da família extensa, colocando no debate público que o andamento do processo vai depender da "existência ou não desse familiar"[10], apesar de sabermos da existência da tia. O caso nos mostra a individualização da intervenção na família nuclear da criança, sem que se amplie no debate público a discussão para os contextos que ocasionaram a violência - tais quais a presença da linha discursiva de que a violência é instrumento para a educação.

A disputa pela noção de origem é de fundamental importância para salvaguardar o direito à convivência familiar e comunitária das famílias pobres, especialmente no contexto das Américas. A Convenção dos Direitos da Criança (CDC) defende que o bem-estar da criança deve ser produzido por meio da manutenção dos vínculos afetivos com a família de origem, proibindo retiradas de crianças de famílias por motivos arbitrários, lógica incorporada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A arbitrariedade das retiradas remonta ao período de colonização européia em relação a outros povos do mundo. Em muitos casos, a desaculturação dos povos foi o objetivo explícito por trás dos roubos de crianças cometidos pelo Estado, de modo tal que as crianças poderiam ser inseridas em famílias consideradas civilizadas de acordo com os padrões europeus.

Na atualidade, sabe-se que as medidas protetivas de acolhimento institucional se fazem menos presentes em países com maiores investimentos nos serviços públicos, garantia de renda mínima e auxílios sociais (FONSECA, 2019). Assim, a discussão sobre os direitos das crianças precisa considerar o espaço que suas famílias e comunidades ocupam nas agendas políticas dos seus países. No Brasil, por exemplo, o que se nota é uma política orquestrada de criminalização da população negra e pobre. Não por acaso, o perfil que chega aos serviços de acolhimento é de maioria negra[11]. Das famílias que adotam, espera-se a “salvação” das crianças da criminalidade por meio da adoção de crianças de outras origens sociais.

Estas atitudes, lidas como bem intencionadas, esfacelam a história das crianças e suas comunidades e promovem a percepção de fracasso dos seus lugares de origem. O sistema que temos hoje está construído na lógica de promover separações dos pauperizados na intenção de higienização popular, mas não de promover reconciliações. Em outras palavras, se destina a regular de quais famílias as crianças serão retiradas e para quais famílias as crianças serão devolvidas (GONÇALVES, 2020). O discurso de que a adoção existe para salvar crianças da violência é esteticamente preparado para trazer conforto para as famílias burguesas. Este discurso esconde, na verdade, um verdadeiro fluxo de crianças cujas famílias não conseguiram se adaptar aos modelos sociais e ideológicos dominantes (GONÇALVES & GUZZO, 2020).

Além de ser um sistema racista e que se auto-regula em torno de valores de reprodução social capitalista, ele é também um sistema que acarreta danos às próprias crianças. Atravessar a experiência de ser institucionalizada traz consequências como o aumento das chances de, na vida adulta, ser socialmente excluída, ter que lutar contra o abuso de álcool e de outras drogas, estar sujeita às diversas formas de violência social ou mesmo estar sujeita à inclusão no sistema penal. O abolicionismo do sistema de institucionalização de crianças envolve uma série de estratégias tais quais o fortalecimento da escuta das crianças, preocupações e soluções acerca dos problemas vividos, envolve a prevenção da separação familiar por meio de serviços comunitários oferecidos às famílias vulneráveis, dentre outras. Mesmo em situações graves de violência contra a criança, que devem contar com estratégias preventivas e intervenções precoces, a institucionalização não é recomendada (UNICEF, 2018).

O caso de Campinas e tantos outros casos deveriam estar sendo pautados por grupos que defendem direitos não colonizadores pela lógica do fomento à criação de estratégias mais solidificadas - na origem - que possam garantir o bem-estar da criança (FINNEY; PALACIOS; MUCINA, 2018). Dito de outra maneira, deveríamos disputar de formas mais sólidas no debate público que a manutenção da criança próxima às suas origens implica no necessário fim das instituições de acolhimento de crianças e de adolescentes.

A violência familiar foi descoberta e interrompida neste caso, mas é necessário ponderar, em todos os casos, se o Estado não procede outra violação do direito da criança ao realizar uma institucionalização arbitrária, em que há familiares extensos. As principais reportagens sobre o tema vão na linha da dura investigação contra órgãos de direitos da criança, mas se lê pouco ou nada sobre a concretização da ampliação de investimentos de larga escala em estratégias preventivas e de manutenção das origens das crianças[12]. Com estas considerações em mente, cabe-nos perguntar: Quais ações estão sendo investidas e efetivadas para prevenir que novas situações como essas voltem a ocorrer? Que suporte as famílias têm recebido para lidar com seus conflitos e os eventos estressores, como a pandemia de COVID-19, o aumento do desemprego e a crise econômica no país?

Em um país de histórico escravista como o Brasil, a prioridade dada à institucionalização frente a alternativas menos invasivas e baseadas no protagonismo das  comunidades de origem não se deu por acaso. Ela serve a manutenção desse sistema, o mesmo que negava às mulheres negras escravizadas o direito de serem mães e cuidarem dos seus filhos. Mesmo as práticas culturais de circulação de crianças entre familiares e pessoas de confiança adotadas por famílias negras como forma de resistência à intervenção do Estado são lidas no âmbito  jurídico-social como abandono e negligência (SARAIVA, 2020). Alternativas participativas de apoio às comunidades de origem são necessárias e possíveis. Sejam elas no âmbito do processo judicial, com o uso de práticas de justiça restaurativa e mediação, como no âmbito mais amplo de garantia de renda mínima e trabalho de cuidados pagos às mulheres.

O abolicionismo das instituições de acolhimento precisa, assim, caminhar junto com alternativas que façam sentido para as populações atendidas. Por todos estes motivos, a disputa pela ressignificação do termo "origem" é tão cara. Queremos dizer que defender que a criança permaneça na família de origem é apenas um dos aspectos dentro do que se deveria considerar como sendo a origem da criança. Origem é, além da família, o lugar geográfico, a comunidade que circunda a criança, os laços que a criança mantém com a comunidade, a cultura, a religião, a língua, o sotaque, as gírias, a etnia, as tradições. Defender que a criança permaneça na família de origem é apenas o modo europeu (pautado pela lógica familiar burguesa) de pensar suas origens. Para avançarmos na defesa dos direitos das crianças é necessário ir além, superando a lógica de que origem é apenas a família nuclear.

Os casos apontados têm em comum que a denúncia de maus-tratos partiu de vizinhos aos órgãos de proteção infantil e polícia militar. A discussão sobre a abordagem do caso de Campinas, entretanto, não incluiu representantes da comunidade e família extensa. Em Campinas, o Conselho Tutelar foi colocado na posição de investigado, como se somente aos seus trabalhadores coubesse a responsabilidade pela vigilância e proteção social de crianças. Desse modo, a agenda política nacional de um lado desinvestiu como um todo as políticas sociais nos últimos anos e de outro culpabilizou individualmente os trabalhadores.

Diante desta análise, conclui-se que o desenvolvimento de espaços seguros para as crianças não pode ser pautado em intervenções emergenciais e individuais. Uma das causas sociais que identificamos como perpetuadoras da violência contra crianças é a insistente existência na agenda política nacional do discurso medieval europeu de que a violência pode ser utilizada enquanto um instrumento para a educação (ARIÈS, 2014). Outra delas é a manutenção de uma agenda colonialista de que a institucionalização é o instrumento para a educação (adequação) familiar. É preciso ir ao cerne dos motivos pelos quais a violência contra crianças tem crescido em meio à pandemia de COVID-19, em vez de seguirmos por julgamentos moralizantes. Faz-se necessário investir em políticas sociais preventivas que definitivamente respeitem a origem das crianças.

 

Notas e Referências

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2014.

FONSECA, C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa, vol. 40, n. 2, p. 17–38, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/1808/180862611002/html/index.html. Acesso em: 06 abr. 2021. https://doi.org/10.34096/runa.v40i2.7110.

FINNEY, S.; PALACIOS, L.; MUCINA, M. K. Refusing Band-Aids: Un-settling “Care” under the Carceral Settler State. CYC-Online, v. 235, p. 28–39, set. 2018. Disponível em: https://www.cyc-net.org/cyc-online/sep2018.pdf. Acesso em: 27 set. 2019.

GONÇALVES, M. A. B. As faces ocultas da adoção de crianças: a destituição do poder familiar e a pandemia de Covid-19. OBIJUV UFRN, 21 mai. 2020. Disponível em: https://medium.com/@obijuvufrn/as-faces-ocultas-da-adoção-de-crianças-a-destituição-do-poder-familiar-e-a-pandemia-de-covid-19-1274ffec1bb. Acesso em: 22 maio. 2020

GONÇALVES, M. A. B.; GUZZO, R. S. L. Best Interests of the Child in Brazil and Theft of Children by the State. CYC-Online, v. 257, p. 38–48, jul. 2020. Disponível em: https://www.cyc-net.org/cyc-online/jul2020.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020.

SARAIVA,  V. C. dos S. Repensando a circulação e a adoção de crianças negras na família brasileira. Revista Em Pauta, v. 18,  n. 45, p. 84 - 99, 2019. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/47216. Acesso em: 07 abr. 2021.

UNICEF. In focus: keeping families together. UNICEF for every child. Genebra: UNICEF, 2018. Disponível em: https://www.unicef.org/eca/media/3661/file/in-focus-keeping-families.pdf February 2018. Acesso em: 20 mar. 2021.

[1] Reportagem disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/veja-falas-de-ministro-sobre-castigo-fisico-e-sexo-sem-limites-em-universidades/.

[2] Reportagem disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/144388-comissao-vai-debater-declaracao-de-bolsonaro-sobre-punicao-a-filho-gay/.

[3] Reportagem disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2021/01/31/pm-resgata-crianca-mantida-acorrentada-em-barril-e-prende-tres-por-tortura-em-campinas.ghtml.

[4] Reportagens disponíveis em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/02/06/pm-resgata-menina-de-3-anos-amarrada-com-fios-pela-mae-na-zona-leste-de-sp.htm; https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/02/26/crianca-de-3-anos-mantida-dentro-de-barril-e-resgatada-em-sao-paulo.htm e https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/03/15/menino-de-6-anos-mantido-em-jaula-pelo-pai-e-resgatado-no-df-crianca-tinha-marcas-de-agressao.ghtml.

[5] Conforme se lê na reportagem: https://g1.globo.com/google/amp/sp/campinas-regiao/noticia/2021/02/02/prefeitura-apura-eventuais-falhas-e-omissoes-no-caso-de-tortura-a-crianca-em-campinas-menino-era-atendido-desde-setembro-de-2019.ghtml

[6] Conforme se vê na reportagem: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/02/08/menino-acorrentado-em-barril-ganha-novo-amigo-durante-recuperacao.ghtml.

[7] Conforme se lê na reportagem: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2021/02/02/casa-onde-crianca-era-mantida-acorrentada-no-barril-e-invadida-e-vandalizada-em-campinas.ghtml.

[8] Conforme se lê na reportagem: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/02/03/menino-encontrado-dentro-de-barril-tem-alta-medica-em-campinas-sp.htm.

[9] Conforme se lê na reportagem: https://noticias.r7.com/sao-paulo/tios-de-menino-resgatado-de-tonel-vao-lutar-pela-guarda-do-garoto-03022021.

[10] Conforme se lê na reportagem: https://www.acidadeon.com/campinas/cotidiano/cidades/NOT,0,0,1588328,um-mes-depois-menino-acorrentado-em-barril-continua-em-abrigo.aspx.

[11] Dados extraídos do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento disponíveis em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ccd72056-8999-4434-b913-f74b5b5b31a2&sheet=e78bd80b-d486-4c4e-ad8a-736269930c6b&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel&select=clearall.

[12] Veja uma reportagem sobre a investigação contra o Conselho Tuelar de Campinas em: https://www.acidadeon.com/campinas/cotidiano/cidades/NOT,0,0,1585637,apos-menino-preso-em-barril-prefeitura-fara-pente-fino-em-casos-urgentes.aspx. Encontramos algumas reportagens de 08/02/2021 em que são citadas a reorganização do serviço de Conselho Tutelar e a ampliação de investimentos. Contudo, os dados não foram apresentados concretamente, não foi informado um planejamento sobre prazos e investimentos nem tampouco há informações posteriores sobre a efetivação dos investimentos. Veja em: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2021/02/damares-se-reune-com-prefeito-de-campinas-apos-caso-de-crianca-acorrentada-a-barril.shtml.

 

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