CRIANÇAS E ADOLESCENTES INTERNAUTAS E OS RISCOS DOS JOGOS DE DESAFIOS

28/02/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

No primeiro mês do ano de 2023 a mídia noticiou o caso de uma garota argentina, de 12 anos de idade, morta após realizar um desafio viral do aplicativo TikTok (CARVALHO, 2023, n.p.). A chamada “trend” consistia em promover um quase desmaio por meio da interrupção da oxigenação cerebral, com o auxílio de uma corda, lenço, cadarço, ou qualquer outro instrumento capaz de estagnar, na altura do pescoço, o fluxo sanguíneo. Essa prática leva a um sismo sensorial, decorrente da baixa oxigenação cerebral.

O ‘jogo’ do desmaio, “desafio do apagão”, “desafio do blackout”, “choking game”, dentre tantas outras nomenclaturas que denominam essa prática, pode ser realizada com o auxílio de outro participante com a compressão do tórax ou do pescoço. Entretanto, por vezes tal desafio é praticado por uma única pessoa, com a utilização dos instrumentos acima referidos de modo a permitir o estrangulamento.

Tal prática, perigosa por si só, adquire ainda maior risco ao ser efetuada de maneira individual, já que obviamente ninguém poderia soltar o instrumento utilizado para conter a circulação sanguínea após o desmaio. Contudo, crianças e adolescentes, diante de sua imaturidade psicológica, peculiar de seu estágio de desenvolvimento, acabam por acreditar que são capazes de se livrar da supressão sanguínea antes de perderem por completo os sentidos, o que muitas vezes não ocorre, ocasionando o óbito precoce daqueles que participam do desafio.

O problema dos chamados ‘jogos’ de desafio não é uma questão recente, embora suas origens não estejam claramente definidas em razão da clandestinidade que lhe é característica – eis que existe uma consciência, ainda que superficial, dos participantes de que são “brincadeiras” perigosas, motivo pelo qual são ocultadas dos adultos. É sabido que, já na Antiguidade, práticas de supressão da oxigenação cerebral eram utilizadas por filósofos gregos de maneira a experimentar sismos sensoriais, uma espécie de “transe” momentâneo, o que também foi verificado na década em 1940, em crianças esquimós, praticantes da asfixia com perda de consciência, sendo relacionadas à práticas autoeróticas em alguns casos. Na França e na Inglaterra, desde a década de 1950 já são estudados casos de jogos de asfixia que culminaram em óbitos. (GUILHERI, ANDRONIKOF; YAZIGI, 2016, p. 868).

Enquanto no passado essas práticas eram realizadas em pequenos grupos às escondidas, atualmente são utilizadas como ferramentas para alcançar “seguidores”, obter “likes” e até mesmo monetizar o próprio perfil nas redes sociais Visam a dar popularidade ao praticante e influenciar seus pares a também efetuar as mesmas práticas, ou pior, torná-las mais arriscadas.

Com fundamento nas pesquisas de Guilheri, Andronikof; Yazigi (2016, p. 874) e Giusti (2013, p. 7-14), pode-se dizer que os chamados ‘jogos’ de desafio não são uma novidade, existem há muito tempo e refletem algumas das necessidades dos infantoadolescentes, os quais podem ser mais ou menos exacerbadas em cada indivíduo. Dentre elas, destacam-se: testar as próprias capacidades; buscar prazer, euforia ou alucinação; perda da consciência como uma fuga da realidade, ainda que por poucos instantes; alívio de sofrimento psicológico; reconhecimento e autovalorização dentro de determinado grupo; sentimento de menos valia e autodestruição em consequência de um estado depressivo.

O que difere os ‘jogos’ de desafio na atualidade é a sua permeabilidade entre essa parcela mais vulnerável da sociedade que são as crianças e adolescentes, ocasionada por sua inserção no ambiente virtual, permitindo a ampla e acelerada difusão dessa espécie de conteúdo, eis que transmitidos, por muitas vezes, instantaneamente a um grande público.

Se por um lado esse tipo de ‘jogo’ é prática ancestral, por outro as consequências seguem sendo tratadas com pouca importância, com raríssimas ações de conscientização e prevenção. Muitas vezes o resultado “morte”, decorrente da sua prática, é equiparado ao suicídio, o qual é pouco noticiado como forma de evitar o efeito Werther, isto é, o também chamado efeito contágio decorrente da ampla divulgação, o que levaria outras pessoas a reproduzirem o mesmo comportamento (MUKHRA et al., 2019, p. 287-288; ALENCAR, 2020, n.p). O mais impactante é que esses casos são divulgados na mídia e lamentados, mas passado um tempo são esquecidos, como se fosse algo possível de ser naturalizado, ignorando-se o dever de cuidado assumido pelos Estados signatários da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989.

Cabe destacar que a Convenção sobre os Direitos da Criança inspirou a doutrina da proteção integral, importante marco no reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeito de direitos. Por meio da Convenção, os países que a ratificaram comprometem-se a não apenas cumpri-la, como também estabelecer mecanismos de controle acerca de sua observância, o que faz com que esse importante instrumento internacional, assinado por quase duas centenas de Estados, seja dotado de caráter coercitivo.

Sua principiologia inspirou positivamente o Brasil, cujo texto do art. 227 da Constituição Federal conferiu às crianças e adolescentes prioridade absoluta, com promoção de direitos a ser compartilhada pela família, sociedade e Estado lançando as bases da doutrina da proteção integral. Esse compromisso foi posteriormente detalhado e aprofundado no texto da Lei nº 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), inovador diploma legal que adota claramente a doutrina da proteção integral. Seguindo as lições de Josiane Veronese (2019, p 21), esta doutrina promove uma profunda mudança, pois além de reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em peculiar condição de desenvolvimento, supera o tratamento conferido pelo Direito Civil que os tratava como incapazes. Assim, sua adoção “redimensiona conceitos tradicionais, em uma necessária crítica ao adultocentrismo, que menorizava e coisificava a infância”. 

Em que pese todos os avanços normativos, sua transposição para o plano da efetividade ainda é permeada por dificuldades, que ganham novos contornos e complexidades quando se trata de tutelar as crianças e adolescentes diante dos riscos presentes nos ambientes digitais, dentre eles os jogos de desafio, destacando-se em particular o desafio do apagão.

Os dados referentes às mortes por sufocamento decorrentes dos desafios online são escassos, seja pela subnotificação ou por seu tratamento como mero suicídio, o que dificulta a sistematização das informações a esse respeito, contudo, em 2008, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, realizou um estudo pelo qual foi constatado que 82 mortes ocorreram em razão do “jogo do estrangulamento”, sendo que em sua maioria as vítimas eram do sexo masculino (87%), com idade entre 11 e 16 anos, sendo a idade média de 13 anos. Tais mortes foram identificadas em 31 Estados norte-americanos (CDC, 2008).

No Brasil, o que se constata é a ausência de uma preocupação nacional acerca do tema, carecendo de ações sistemáticas e organizadas visando à proteção e promoção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes quanto aos jogos de desafio.  As poucas ações existentes ficam a cargo de algumas entidades, a exemplo da Safernet Brasil, a qual abriga em seu site extenso material educativo e informativo acerca do uso seguro da internet, emite alertas, faz pronunciamentos acerca de temas relevantes sobre segurança online e mantém linhas de apoio, para fornecer auxílio, orientação e receber denúncias de crimes praticados na web. Outra organização que se destaca no cuidado dos jogos virtuais é o Instituto DimiCuida (INSTITUTO..., 2021). Em termos de monitoramento sobre o uso das tecnologias, destaca-se a atuação do Cetic.Br, cuja pesquisa TIC Kids Online oferece inúmeros subsídios para compreender esses novos cenários.

O Brasil busca um alinhamento às boas práticas adotadas na União Europeia, tais como o “dia da internet mais segura”, com hotlines disponibilizadas para atender denúncias de crimes cibernéticos e prestar auxílio e orientação sobre problemas online. A essas orientações também se somam todos os dados recolhidos na pesquisa TIC Kids Online, que segue padrões muito próximos da investigação realizada na Europa, a EU Kids Online. Contudo, essas iniciativas não são suficientes diante da ausência de uma política de abrangência nacional para tratar dos “jogos” de desafio. O que se vê é que o tema é tratado somente em momentos de crise, quando mortes, autolesões e graves problemas psicológicos desenvolvidos por crianças e adolescentes são levados a público pela imprensa, gerando comoção nacional e a necessidade de respostas imediatas.

As redes sociais, por sua vez, demonstram total falta de compromisso com a Convenção dos Direitos da Criança, o que se evidencia quando hospedam conteúdos cuja natureza é ‘jogo’ de desafio. Tal fato ocorreu no  TikTok, somente promoveu a exclusão dos vídeos da “trend” após várias mortes serem a ela relacionadas.

Em pronunciamento ao site de notícia UOL, o TikTok manifestou: 

Sobre o "Desafio do apagão", o TikTok alega nunca ter encontrado evidência desse tipo de tendência de conteúdo na plataforma e diz que a ação é anterior ao próprio aplicativo. A empresa destaca ainda que tem uma classificação para maiores de 13 anos nas lojas de aplicativos, o que permite que os pais controlem o acesso dos filhos. (CARVALHO, 2023, n.p.).

Ao que se percebe, a rede social busca se eximir de sua responsabilidade, alegando o desconhecimento dos conteúdos hospedados por ela própria, inseridos por significativo número de usuários e que se viralizaram naquele site. Tenta ainda responsabilizar tão somente os pais pelo controle de idade, como se ela própria não fosse igualmente responsável por identificar a veracidade das contas que registra.

Tais argumentos não podem prosperar, tanto em razão do compromisso de proteção integral, assumido constitucionalmente pelo Brasil, quanto em decorrência do Comentário Geral nº 25, exarado pelo Comitê Internacional dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO..., 2021, p. 02-04). Esse documento estabelece claras diretrizes aos Estados signatários da Convenção, pois estabelece o compromisso de promover políticas de prevenção e educação digital voltada às crianças e adolescentes, pais, cuidadores e professores. Ademais, responsabiliza empresas, que devem utilizar meios tecnológicos para proteger esses internautas, levando em conta sua condição de desenvolvimento, o que significa dizer que empresas também são responsáveis pelo que ocorre em seus ambientes digitais!

 Dessa forma, resta demonstrado que a participação em ‘jogos’ de desafio produz riscos à integridade física, psíquica, moral e à própria vida de crianças e adolescentes. Em que pese esses riscos, sua prática está bastante difundida e se revela uma triste realidade global, situação que não pode mais ser ignorada e gera novos deveres para a família, estados e sociedade, o que por certo inclui as empresas que atuam no segmento. Todos são igualmente responsáveis em promover a proteção integral desses internautas.

Para a superação desse estado de coisas sugere-se, como passo preliminar, a proposição de ações articuladas para a construção de uma estratégia nacional para tratamento de conteúdo ilícito e prejudicial, disponíveis na internet. Essas ações devem ser sustentadas pelo melhor interesse da criança e do adolescente, compreendendo-os como sujeitos cujo protagonismo deve ser considerado também na formulação das propostas. Isso significa dizer que crianças e adolescentes devem ter seu poder de agência considerado, atuando como partícipes desse processo.

A pauta é de alta relevância e as medidas de prevenção e proteção precisam ser adotadas com a urgência que o tema requer. Os riscos e os danos decorrentes da prática dos jogos virtuais de desafio não são brincadeira, não devendo ser ignorados, sob pena de novas vidas perdidas!

 

Notas e referências

ALENCAR, Juliana. ‘Jogo' do suicídio: nossas recomendações para a imprensa e alerta aos pais. Disponível em https://new.safernet.org.br/content/jogo-do-suicidio-nossas-recomendacoes-para-imprensa-e-alerta-aos-pais. Acesso em 05 fev. 2023. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 05 fev. 2023. 

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 05 fev. 2023. 

CARVALHO, Pietra. 'Desafio do Apagão': o que é viral que matou adolescente e o que causa?. Viva bem UOL. Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2023/01/18/desafio-do-apagao-o-que-e-viral-que-matou-adolescente-e-o-que-causa.htm. Acesso em 05 fev. 2023. 

CDC. Estudo do CDC adverte sobre mortes devido ao "jogo de estrangulamento". Departamento de Saúde e Recursos Humanos dos Estados Unidos. Disponível em: https://www.cdc.gov/media/pressrel/2008/r080214.htm. Acesso em 05 fev. 2023. 

GIUSTI, Jackeline Suzie. Automutilação: características clínicas e comparação com pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo. 2013. Tese (doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2013. 

GUILHERI, Juliana; ANDRONIKOF, Anne; YAZIGI, Latife. “Brincadeira do desmaio”: uma nova moda mortal entre crianças e adolescentes. Características psicofisiológicas, comportamentais e epidemiologia dos ‘jogos de asfixia’. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 867-878, Mar. 2017. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017002300867&lng=en&nrm=iso. Acesso em 05 jan 2023. 

INSTITUTO dimicuida. Disponível em http://www.institutodimicuida.org.br/. Acesso em: 27 jul. 2022.

MUKHRA, Richa; BARYAH, Neha; KRISHAN, Kewal; KANCHAN, Tanuj. ‘Blue Whale Challenge’: A Game or Crime?. Sci Eng Ethics 25, 285–291 (2019). Disponível em https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11948-017-0004-2. Acesso em 05 fev. 2023. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral N° 25 (2021) sobre os Direitos das Crianças em relação ao ambiente digital. ONU, 2021. Disponível em https://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2021/04/comentario-geraln-25-2021.pdf. Acesso em: 01 ago. 2021.

VERONESE, Josiane Rose Petry Veronese. Convenção sobre os direitos da criança: 30 anos. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Fun with Christmas Lights II  // Foto de: Carlos Andrés Reyes // Sem alterações

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