COVID-19 e as relações de trabalho domésticas

24/03/2020

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

A pandemia do COVID-19 (coronavírus) dispensa notas introdutórias a respeito de sua importância e da relevância da repercussão jurídica no país e mais diversas áreas do direito. De toda forma, é importante registrar que o que todo esse contexto fático não tem precedente no país, sendo certo que é um momento de muita cautela na interpretação jurídica para aplicação às situações de fato.

Muito se tem questionado a respeito das inúmeras “possibilidades” (e em possibilidade eu remeto novamente ao ineditismo das medidas, estado de calamidade pública já formalmente declarado e absoluta imprevisão do contexto fático) quanto aos trabalhadores urbanos que precisam se afastar de suas atividades em virtude dos diversos Decretos (federais, estaduais e municipais). Nesse contexto os estudiosos e intérpretes do Direito do Trabalho já vislumbram diferentes medidas, tais como: licença remunerada com prestação de serviços em horas extraordinárias compensatórias depois (o empregado não trabalha, recebe seu salário normalmente, mas faz duas horas extras por dia sem receber por isso por até 45 dias após o retorno); férias coletivas; concessão regular de férias com flexibilização dos prazos legais de comunicação; antecipação de férias para quem não tem período aquisitivo; banco de horas e até mesmo diversas Convenções Coletivas de Trabalho que trazem regulação especial para esse momento tão delicado.

Mas muito pouco tem se falado em uma outra relação de emprego em que não há sindicatos para negociar soluções, não há férias coletivas e a relação é absolutamente íntima e pessoalidade: a dos trabalhadores domésticos. O que fazer diante dessa relação de emprego?

A relação de emprego doméstico é especial por si só, afinal, traz o trabalhador para dentro do lar do empregador. De nada adiantaria o empregador tomar todas as medidas possíveis para sua proteção e de sua família, aderindo à campanha “fique em casa”, se diariamente abre a porta para a possibilidade de contaminação chegar com um empregado doméstico que não está igualmente protegido. Então, antes de refletir a respeito da incidência juslaboral na relação de emprego doméstica, é importante pensar saúde das pessoas envolvidas.

De toda forma, fica a pergunta: é direito do empregado doméstico ser liberado do trabalho, acatando a recomendação pública de “ficar em casa”? Em caso positivo, quais as consequências jurídicas econômicas possíveis? Em caso negativo, quais cuidados poderiam ser tomados?

Antes de tudo, é importante registrar que o Ministério Público do Trabalho elaborou a Nota Técnica n. 04/2020 para a atuação do MPT em relação aos trabalhadores domésticos. A íntegra da Nota Técnica e sua recomendação pode ser encontrada nesse link: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-no-4-coronavirus-1.pdf.

A NT do MPT traz recomendações bastante interessantes para o ambiente doméstico e, em resumo, indica que os trabalhadores domésticos devem ser liberados do trabalho sem prejuízo do salário, salvo se eles se ativarem no cuidado de idosos ou em auxílio a dependentes de quem atua nas atividades essenciais, ou seja, se a família não tem um idoso ou outra pessoa que precisa de cuidados especiais e vai ficar em casa, não há motivo para exigir que o empregado doméstico compareça ao trabalho.

Sob o ponto de vista de preservação da saúde pública, parece-nos bastante adequada a Nota ministerial. Todavia, é importante registrar que Nota Técnica não é legislação e não possui força legal. É claro que, ao descumprir uma recomendação do Ministério Público do Trabalho, o empregador deve estar sujeito a potenciais consequências judiciais, ainda que tenha razão, motivo pelo qual devem sempre ser analisada e levadas em consideração com apreço que o Parquet merece.

E o que se tem a respeito da liberação de trabalhadores em decorrência da pandemia de Covid-19 é a Lei 13.979/2020 que traz em seu artigo 3º:

§3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo.

E as medidas previstas no artigo falam justamente de isolamento e quarentena, além de outras que não afetam diretamente a relação de emprego. Deve ficar em isolamento o trabalhador que tenha confirmada a contração do vírus e em quarentena as pessoas que tiveram contato com alguém contaminado ou suspeito de contaminação.

Percebe-se, de pronto, que a ausência justificada ao emprego prevista no texto legal é apenas aos trabalhadores infectados, que tenham tido contato com potenciais infectados e, agora, em razão de novas recomendações, aqueles que estejam em grupo de risco (com exceção de trabalhadores ligados à saúde) ou gripados, mesmo que não confirmados.

Também é certo que o Decreto Federal n. 10.282/2020 não fez qualquer referência ao trabalho doméstico, assim como também não o fez o Decreto do Estado de Goiás n. 9.633/2020 – o que torna inequívoca a ausência de obrigatoriedade legal automática de dispensa do trabalhador doméstico (apesar de fortemente recomendado).

A partir de agora, passamos para dois cenários a serem analisados:

  1. Quais medidas jurídicas possíveis junto ao trabalhador doméstico dispensado de comparecimento ao local de trabalho?
  2. Quais cuidados devem ser tomados em caso de manutenção da atividade do empregador doméstico?

Em caso de dispensa do trabalhador domésticos, a recomendação primeira do MPT é a de que “a pessoa que realiza trabalho doméstico seja dispensada do comparecimento ao local de trabalho, com remuneração assegurada”. Tal medida seria útil e eficaz se possível fosse aplicação do §3º do art. 61 da CLT ao empregado doméstico, que diz:

“§ 3º - Sempre que ocorrer interrupção do trabalho, resultante de causas acidentais, ou de força maior, que determinem a impossibilidade de sua realização, a duração do trabalho poderá ser prorrogada pelo tempo necessário até o máximo de 2 (duas) horas, durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não exceda de 10 (dez) horas diárias, em período não superior a 45 (quarenta e cinco) dias por ano, sujeita essa recuperação à prévia autorização da autoridade competente.”

No caso do trabalhador doméstico, parece-nos incompatível a exigência de que o trabalhador possa laborar em jornada extraordinária posteriormente para “recuperação do tempo perdido”. A isso se junta outra questão jurídica de grande relevância que não pode ser ignorada: as ausências justificadas do empregador doméstico por motivo de saúde são pagas pelo INSS e não pelo empregador.

Enquanto nas empresas o empregador é responsável pelo pagamento dos salários do trabalhador pelos 15 primeiros dias e o INSS pelo 16º dia em diante, na relação de trabalho doméstica desde o primeiro dia a responsabilidade é da previdência social e não do empregador. De quem seria o ônus de afastamento sem prejuízo do salário? Também não socorre esse caso o constante argumento do “risco da atividade”, uma vez que o empregador doméstico não tem qualquer atividade econômica que justifique assunção de riscos como esses. Tenho que se houver afastamento das atividades do empregado doméstico em decorrência de risco ou exposição ao COVID-19, quem deve pagar pelo período em questão é a Previdência Social.

Desta forma, buscando equilibrar a relação jurídica e salvaguardar os direitos do empregado doméstico, tenho que para o afastamento, a melhor medida a ser feita é concessão de férias ao trabalhador doméstico, ficando afastada a obrigatoriedade de comunicação prévia de 30 (trinta) dias. Também entendo que fica flexibilidade a possiblidade de antecipar férias ao trabalhador doméstico, ainda que ele não tenha completado o período aquisitivo. Desta forma, garante-se o afastamento desejado sem prejuízo de sua contrapartida financeira.

Outra flexibilização mais sensível (defendida por muitos intérpretes) seria a da obrigatoriedade de efetuar o pagamento das férias com dois dias de antecedência ao início da fruição. Levando-se em consideração o risco de ter que se pagar em dobro as férias, tenho que o ideal é obedecer a esse prazo. E, caso o empregador doméstico já antecipe as férias do empregado “a partir de amanhã”, tenho que a melhor medida é pagar as férias hoje e conceder as férias para “depois de amanhã” (o segundo dia subsequente ao pagamento) abonando graciosamente a ausência do dia seguinte.

Por cautela, é importante registrar que essa “flexibilização” das férias não tem previsão legal e é que é mera interpretação de minha parte sua possibilidade, existido, portanto, insegurança jurídica para sua aplicação.

Por fim, pode ser decisão do empregador manter as atividades do trabalhador doméstico normalmente. Nesses casos, alguns cuidados importantes devem que ser tomados – não apenas para a proteção do empregado, mas também do próprio empregador.

Em primeiro lugar, certifique-se que o empregado doméstico não está gripado e oriente adequadamente os cuidados externos que ele deve ter, inclusive em sua própria residência. Se possível, forneça a ele álcool em gel 70º para que ele tenha em sua casa. Além disso, é altamente recomendado que, se possível, possibilite que o empregado doméstico não utilize o transporte público. Para tanto, o ideal é fornecer transporte por aplicativo ou até mesmo realizar o transporte do empregado doméstico (afinal de contas, caso a família esteja em casa, por que não buscar e levar de volta esse profissional?).

Caso não seja possível fornecer algum um meio de transporte que não o transporte público, sugere-se flexibilizar os horários de entrada e saída para evitar que o empregado doméstico utilize ônibus ou metrô nos horários em que há maior lotação, evitando-se a potencialização desnecessária do trabalhador ao risco de contaminação.

Por fim, tenho que não é aplicável ao ambiente doméstico a redução da jornada com redução proporcional ao salário, uma vez que no esteio da Constituição Federal que garante a irredutibilidade salarial, salvo por negociação coletiva (art. 7º, VI) torna incompatível essa possibilidade à relação de trabalho doméstico.

Além dessas recomendações, cabe ao empregado e empregador doméstico tomarem as medidas básicas de precaução – lavar-se bem ao chegar do ambiente externo; utilizar uma roupa diferente no trabalho e, caso o empregado doméstico esteja em contato com alguém que possa estar infectado (como no caso de cuidadores de idosos domésticos ou quaisquer outras pessoas que estejam gripadas), que sejam fornecidos todos os EPIs necessários para isolar o empregado de qualquer risco de contaminação.

São tempos difíceis e de soluções que ainda estão sendo juridicamente interpretativas. O importante é sempre estar presente a boa-fé, transparência, diálogo e, acima de tudo, preservação da saúde de todos.

 

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