COVID-19 E A RENDA BÁSICA UNIVERSAL (RBU): UM NOVO PARADIGMA EMERGENTE. CHEGOU A HORA DA IMPLANTAÇÃO PERMANENTE DA RBU?    

17/04/2020

A Renda básica que hoje está sendo debatida e adotada em alguns países, inclusive no Brasil (chamada de renda básica emergencial), para salvar os milhares de trabalhadores que estão desempregados em função da pandemia da COVID-19, é um tema já discutido há tempos em todo o mundo. Não nos termos atuais, mas com uma função permanente e bem mais ampliada, como uma renda pela simples condição de ser cidadão. A sua aplicação já vinha sendo debatida pelo crescimento do desemprego e desaparecimento dos postos de trabalho ocasionados pela robotização e inteligência artificial, ou seja, o que se chama da “quarta revolução industrial”.

Com a covid-19 os países passaram a utilizá-la como possibilidade de compensar as perdas dos postos de trabalho, mas ocasionadas pelo isolamento e a queda das atividades de milhares de trabalhadores.

Nesse sentido, em função da crise sanitária, foi introduzida no Brasil uma renda emergencial por 3 meses, prorrogável, de R$ 600,00. Na Espanha[1], o governo está trabalhando para gerar uma renda básica universal como parte de uma série de medidas para combater o impacto da pandemia. Mas a maior ambição do governo espanhol é que essa renda básica se torne permanente, constituindo-se um instrumento estrutural do sistema. Os EUA darão a seus cidadãos 1.200,00 dólares, reduzindo gradualmente para quem ganha mais de 75.000 dólares ao ano, a deixar de fora aqueles que recebem 99.000 dólares ou mais. Assim, soluções diversas estão sendo dadas por países dentro de suas possibilidades e de maneira emergencial para a implantação da renda básica. Mas será que esse instrumento que ataca os efeitos negativos da pandemia não poderia ser utilizado de maneira permanente, mais ampliado e utilizado para combater a desigualdade, pobreza e desaparecimento do emprego?

A renda básica, ao contrário do que muitos pensam, é um instrumento de consenso que agrada tanto ideologias de esquerda, como de direita, uma vez que garante ao cidadão suas necessidades mínimas, reduz a desigualdade e a pobreza, ao mesmo tempo faz com que o cidadão assuma a responsabilidade de autogestão, reduzindo o gasto público com os custos das redes de assistência sociais.

A ideia da renda básica emerge em uma nova era, na qual de um lado temos a abundância em recursos, riqueza e alta tecnologia que gera uma maior produtividade; por outro lado, temos um mundo com altos padrões de desigualdade e pobreza.

As transformações tecnológicas desativam o sistema atual dando uma nova forma de organização social e econômica em uma era pós-capitalista. Seria a renda básica universal uma ferramenta político-econômica de transição de um velho paradigma agonizante a um novo paradigma emergente?

Com efeito, a fórmula da Renda Básica Universal aparece como uma evolução do Estado de bem-estar e dos sistemas de seguridade social, em um contexto em que a revolução tecnológica tem transformado a natureza do trabalho em um mundo tecnológico e hiperprodutivo, no qual desapareceram os mecanismos de distribuição de renda segundo a dinâmica do mercado.[2]

O debate para uma RBU permanente ainda gera muitas controvérsias, uma vez que a ideia primordial é a substituição de prestações sociais existentes, com uma mudança nas estruturas sociais.

Como afirma Josep M. Coll e Xavier Ferrás na sua obra “Economía de la felicidade”[3], os avanços sociais mais significativos da história sempre foram vistos como impossíveis de serem realizados quando propostos, como ocorreu no caso da grande depressão de 1930, que gerou a discussão para o embrião da seguridade social nos EUA, quando a pobreza extrema afetava 50% da população americana.

E agora não seria diferente, com a COVID-19 provavelmente passaremos por uma crise e depressão semelhante ou pior que a de 1930, a qual nos coloca em questionamento o papel do Estado e a necessidade de garantir subsídios para a população terrivelmente afetada pelo vírus e seus efeitos econômicos. Será a RBU algo tão irreal e inalcançável como a mudanças sociais que ocorreram após a grande depressão de 30?

Este pode ser um mecanismo para redução da desigualdade em diversos países. Muitos países já estão ou experimentaram programas piloto da renda básica, a exemplo da Finlândia, Ontario (Canadá), Stockton (Califórnia), Barcelona, Quênia, Escócia, Utrecht (Holanda), Reino Unido, Itália e Índia. Para Branko Milanovic, professor da escola de políticas públicas da Universidade de Maryland, para se introduzir o instrumento da RBU têm-se que modificar os mecanismos de proteção social, não devendo haver o financiamento em paralelo ao que existe hoje, uma vez que o sistema não deverá ser pensado como um seguro ao cidadão, mas com uma consequência da própria cidadania[4].

Os que discordam da RBU, argumentam que seria uma renda imoral, uma vez que será concedida a quem não trabalha, quem não a mereceu e assim incentivaria a ociosidade. Coll e Ferrás [5]afirmam que não cabe tal argumento, já que a renda só cobriria um mínimo e já existem estudos nos quais foram detectados uma maior predisposição para as pessoas assumirem riscos, como empreender, inovar ou mudar de trabalho, já que teriam protegidas suas necessidades mínimas pela RBU.

Para o jurista italiano Luigi Ferrajoli o correspondente a RBU seria um salário ou renda mínima garantida a todos, porque significaria a solução para a proteção legal e a ineficácia dos direitos sociais. O jurista considera que esse salário ou renda mínima seria de natureza universal a partir da maioridade e um meio de satisfação “ex lege”, de maneira universal e generalizada, do direito à subsistência. Assim, o benefício representaria uma alternativa mais eficaz ao desperdício da burocracia e toda sua estrutura e às formas vorazes e corruptas criadas para prover benefícios de maneira seletiva e discricionária.[6]

Um questionamento que se faz quanto a RBU é como seria seu financiamento. Para isso devemos ter em conta um período com um novo paradigma, no qual teremos uma produtividade aumentada pela tecnologia, mas sem emprego em massa.

Assim, para custear a verdadeira RBU é necessário avançar para uma economia hiperprodutiva e baseada no conhecimento. Para isso os países devem realizar políticas de estímulo e investimento na ciência e tecnologia industrial, reconstruindo o modelo produtivo. Ademais é imprescindível, conforme Coll e Ferrás, criar um fundo de fiscalidade tecnológica com mecanismos tributários para o Estado receber as compensações de empresas que se beneficiaram com o desenvolvimento tecnológico apoiado pelo governo. Ademais é possível criar uma tributação progressiva sobre empresas que mais se beneficiaram e que consequentemente teriam menos empregados. Para os autores somente após o incremento das medidas necessárias para o desenvolvimento econômico e os ingressos fiscais é que se pensaria em reformar as redes de assistência social, com a inclusão da renda básica. Na verdade a conta seria paga pelo mesmo avanço tecnológico que reduziu o número de empregos.[7]

Esse custo de uma renda básica universal e permanente pode variar muito conforme o país. Na Espanha, por exemplo, a renda mínima proposta pelo ministro da segurança social custaria 3,5 bilhões de euros “se forem descontadas as superposições com outros programas sociais e reduziria a pobreza em 46% a 60%”. Conforme o jornal El País “uma solução mais ambiciosa, como uma renda básica autenticamente universal e permanente de pouco mais 620 euros por mês por residente, representaria uma carga de quase 190 bilhões de euros anuais, aproximadamente 18% do PIB, conforme calculou em 2017 o serviço de estudos do BBVA. Para adotá-la, tanto em países europeus como emergentes, é preciso começar travando “um combate frontal contra a evasão e a concorrência fiscal [entre territórios] e repensar o objetivo da austeridade”, opina Haagh, presidente da Rede Global de Renda Básica (BEM, na sigla em inglês)”[8].

Acredita-se que no Brasil e em alguns países no mundo seja difícil a implantação de uma Renda Básica Universal em substituição ao Estado de bem-estar social, tendo em vista o grau de desigualdade e a deficiência em que se encontra o Estado social. Mas é possível, a princípio, uma renda básica complementar. Para tanto a RBU seria uma possibilidade de proporcionar igualdade de oportunidades dentro de uma sociedade desigual. Nesse sentido, mesmo não sendo possível implantar a renda básica nos moldes descrito acima, com economias já desenvolvidas, é possível pensar, após a crise sanitária da COVID-19 e todas as medidas que já vêm sendo tomadas, em aplicar a renda básica de maneira permanente, gradual e não somente emergencial e, sobretudo, progredir-se para uma economia de desenvolvimento com a integração de Estado e mercado baseada na inovação e crescimento industrial, para assim financiar e aperfeiçoar a renda básica para uma verdadeira renda da cidadania.

 

Notas e Referências

COLL, Josep M.  FERRÁS, Xavier. Economía de la felicidade: las claves de la tecnologia, la desigualdade y el trabajo en el poscapitalismo. Barcelona: Plataforma editorial, 2017,

FARIZA, Ignacio. Coronavírus impulsiona propostas de renda básica, que deixa de ser utopia. El País. Madri. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-06/coronavirus-impulsiona-propostas-de-renda-basica-que-deixa-de-ser-utopia.html>. Acessado em: 10.03.2020.

ORIHUELA, Rodrigo. Spanish government aims to roll out basic income soon. Bloomberg. Disponível em: < https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-05/spanish-government-aims-to-roll-out-basic-income-soon>. Acessado em: 10.03.2020.

SORIANO, Ramón. Por uma renta básica universal: un mínimo para todos. España: almuzara, 2012.

VEGA, Miguel A. García. La renda mínima sale al paso de la fractura social. El País, negócios, nº1.702, Espanha. 2018.

[1] ORIHUELA, Rodrigo. Spanish government aims to roll out basic income soon. Bloomberg. Disponível em: < https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-05/spanish-government-aims-to-roll-out-basic-income-soon>. Acessado em: 10.03.2020

[2] COLL, Josep M.  FERRÁS, Xavier. Economía de la felicidade: las claves de la tecnologia, la desigualdade y el trabajo en el poscapitalismo. Barcelona: Plataforma editorial, 2017, p.94.

[3] COLL, Josep M.  FERRÁS, Xavier. Economía de la felicidade: las claves de la tecnologia, la desigualdade y el trabajo en el poscapitalismo. Barcelona: Plataforma editorial, 2017, p.97.

[4] VEGA, Miguel A. García. La renda mínima sale al paso de la fractura social. El País, negócios, nº1.702, Espanha. 2018, p.02

[5] COLL, Josep M.  FERRÁS, Xavier. Economía de la felicidade: las claves de la tecnologia, la desigualdade y el trabajo en el poscapitalismo. Barcelona: Plataforma editorial, 2017, p.101.

[6] SORIANO, Ramón. Por uma renta básica universal: un mínimo para todos. España: almuzara, 2012, p.93.

[7] COLL, Josep M.  FERRÁS, Xavier. Economía de la felicidade: las claves de la tecnologia, la desigualdade y el trabajo en el poscapitalismo. Barcelona: Plataforma editorial, 2017, p.104-105.

[8] FARIZA, Ignacio. Coronavírus impulsiona propostas de renda básica, que deixa de ser utopia. El País. Madri. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-06/coronavirus-impulsiona-propostas-de-renda-basica-que-deixa-de-ser-utopia.html>. Acessado em: 10.03.2020.

 

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