Cortar, ou não cortar? Eis a questão

04/05/2016

Por Rodrigo Chandohá da Cruz – 04/05/2016

No ano de 2006 a atriz Angelina Jolie foi escolhida pela revista “People”, um equivalente à revista “Caras” dos Estados Unidos da América, como a mulher mais bonita do mundo. Nada mal, para quem em 2004 tinha conquistado o posto da “mulher viva mais sexy” por outra revista. Note-se que a palavra mulher foi sublinhada duas vezes, para se fazer os seguintes comentário e reflexão:

Anos depois, a atriz publicou dois artigos no site do jornal “The New York Times”. No primeiro, publicado em 14 de Maio de 2013[1], a atriz relatou que havia realizado cirurgias, para remover ambas as mamas, procedimento este chamado de “mastectomia preventiva dupla”. No segundo artigo publicado, quase dois anos depois, em 24 de Março de 2015[2], a atriz relatou que havia se submetido a um novo procedimento, para remoção de seus ovários e de suas tubas de falópio. Em ambos os casos, os procedimentos cirúrgicos foram realizados para prevenir câncer, em todos os órgãos indicados: mamas, ovários e tubas de falópio. Angelina Jolie havia feito exames específicos que indicavam que a mesma tinha uma grande probabilidade de ter câncer nestes locais, e além disso, já havia perdido sua mãe e sua avó para a mesma doença. Com o intuito de beneficiar mulheres que tivessem uma situação similar à sua, a atriz decidiu compartilhar estes acontecimentos, para que as mesmas pudessem se prevenir e, acima de tudo, decidir como proceder.

Visto que esta linda mulher, de lábios carnudos, e casada com um dos homens mais desejados do mundo, removeu suas mamas, seus ovários e suas tubas de falópio, ou seja, todos os órgãos sexuais com as quais as mulheres naturalmente nascem, faz-se a seguinte pergunta: Angelia Jolie ainda é uma mulher? Ou seria ela agora meia-mulher?

Ressalta-se que não se faz estes questionamentos com o intuito de ferir ou injuriar pessoas que passam por esta situação, tanto homens quanto mulheres que lutam contra o câncer. O câncer é uma doença séria, e atinge cada vez mais à população, independentemente do seu gênero. Mas esta reflexão é relevante, pois é isto que ocorre com os transexuais. Os mesmos lutam com este paradigma, o paradigma de que somente homens têm pênis e testículos, e somente mulheres têm mamas e ovários. Mas e se um homem tiver câncer no testículo, e tiver que remover um deles? Ele será menos homem? Uma mulher sem ovários, será menos mulher?

Do ponto de vista biológico, o corpo sofrerá com a remoção destes órgãos, pois eles são chamados de gônadas, e produzem hormônios. No caso do homem, a testosterona é produzida pelos testículos, e no caso das mulheres, o estrogênio e a progesterona são produzidos pelos ovários. A testosterona garante que o homem tenha características masculinas, como pelo facial, voz grossa, crescimento do pomo de Adão, dentre outras funções[3].

Enquanto a progesterona auxilia a reprodução, o estrogênio garante à mulher características femininas, como o desenvolvimento dos seios, distribuição de gordura aos quadris e seios, dentre outras funções[4]. Portanto, sem os órgãos que reproduzam estes hormônios, será necessária uma reposição destes hormônios, pois no caso da mulher, por exemplo, ela entrará em uma “menopausa antecipada”.

Mas e do ponto de vista social? Piadas de mal gosto serão ouvidas, com certeza, principalmente no caso dos homens. Veja, além de passar por um procedimento invasivo, para a remoção de um órgão, e de, dependendo do caso, ter de se submeter à quimioterapia ou radioterapia, você ainda pode ganhar o apelido de “mono-bola”, por ter só um testículo. Você está vivo, graças ao milagre da medicina, poderia ter morrido, e mesmo assim, será motivo de piadas de mau-gosto.

E do ponto de vista jurídico? Como ficará a sua situação? Ela ficará a mesma. Para o direito, mulher é a pessoa que nasce com os órgãos sexuais femininos, e homem é a pessoa que nasce com os órgãos sexuais masculinos. Ponto. Se você nasceu com eles, mas veio a removê-los ou alterá-los ao longo do caminho, não se preocupe. Há uma “segurança jurídica” neste saco, quer dizer, neste caso.

Mas agora imagine a seguinte situação: você nasceu com um pênis e com testículos, mas não gosta deles, não se sente bem com eles, e ainda por cima sente uma identificação com o gênero oposto ao seu. Você quer ser uma mulher, mas tem nome de homem, órgãos de homem, roupas de homem, quarto de homem, tudo de homem. Neste caso, você é um transexual. Você quer pertencer ao sexo, ao gênero oposto ao seu.

Nestes casos, em que o cidadão queira ser uma mulher ou homem, você pode buscar tratamento médico, não para se “curar”, mas para se adequar ao gênero desejado. No caso do transexual Mpf (masculino para feminino), você pode tomar hormônios feminilizantes, e realizar procedimentos cirúrgicos para remover pelos corporais, como a barba, remover o pomo de Adão, colocar prótese de silicone nas mamas, para que se pareçam com seios femininos, além de outros procedimentos disponíveis.

No caso dos transexuais FpM (feminino para masculino), você também pode tomar hormônios, só que masculinizantes, além de realizar procedimentos cirúrgicos para remover as mamas, por exemplo.

O “X” da questão está relacionado, literalmente, com os países baixos dos transexuais. Como ficará a questão da construção de um novo órgão sexual? No caso dos transexuais MpF, o procedimento é “mais fácil”, pois existe material para ser utilizado na construção de uma vagina. Já no caso dos transexuais FpM, existe maior dificuldade no procedimento, pois ainda existe dificuldade em construir um pênis com os órgãos sexuais femininos. Os testículos são construídos com implantes de silicone, ou outro material semelhante, mas a construção de um pênis ainda apresenta dificuldades.

Visto isto, têm-se um novo questionamento: É necessário ter uma vagina para ser uma mulher? É necessário ter um pênis para ser homem? Honestamente, até pouco tempo atrás, era o entendimento deste autor que todos os transexuais queriam ou a remoção do pênis e dos testículos, no caso dos transexuais MpF, ou a construção de um pênis e o fechamento do canal vaginal, no caso dos transexuais FpM.

Esta opinião era baseada em documentários, filmes, seriados, etc., que mostravam que todos os transexuais (mas todos mesmo) queriam a completa remoção de qualquer vestígio do sexo anatômico com o qual nasceu. Mas assim como toda regra, existem exceções de transexuais que não sentem nem a vontade, nem a necessidade de remover os órgãos sexuais. Isto ocorre muitas vezes por medo, de não sentir mais prazer sexual, ou por medo de que o procedimento cirúrgico não seja bem-sucedido, entre outros motivos.

É ainda possível ver depoimentos em sites como o “YouTube”, em que transexuais e defensores dos mesmos, afirmam que a remoção obrigatória dos órgãos seria o equivalente a uma “castração obrigatória”. A questão da remoção dos órgãos sexuais está relacionada com outro objetivo dos transexuais: o de realizar a alteração do nome/prenome, e do gênero, em seus documentos de identidade, no seu registro civil, para que possam portar documentação compatível não somente com sua identidade de gênero, mas também com sua nova aparência, a aparência adequada.

Antes da aprovação dos Enunciados nº 42 e 43[5] do Conselho Nacional de Justiça, não era dispensável a cirurgia de transgenitalização. Por isto, algumas decisões judiciais anteriores a estes Enunciados, indicavam que havia a necessidade da cirurgia de readequação sexual para que fosse autorizada a retificação do registro civil. Ou seja, somente com a remoção do pênis você seria pela lei uma mulher.

Com os Enunciados, não há mais esta necessidade. Veja, o procedimento de readequação sexual não ocorre da noite para o dia. São diversos procedimentos, várias doses hormonais, é um processo longo. Além disto, a pessoa que se submete a este procedimento não o faz de forma temerária. É algo que exige muita convicção, muito autoconhecimento, e também uma dose de coragem.

Imagine você, sair com a aparência de Maria, mas com um documento que diga que você é João. Seria algo, no mínimo, constrangedor. Você não conseguiria arrumar um emprego, ir ao banco, fazer um passaporte para viajar, tampouco embarcar em um avião.

Outro fator que acaba por atrasar o procedimento de transgenitalização, é a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.955/2010, a qual determina em seu artigo 4º[6] a exigência de no mínimo 02 anos de acompanhamento conjunto, além de idade mínima de 21 anos, e ausência de características físicas apropriadas, ou seja, em uma interpretação ampla, seria o equivalente a não ter rastros de ter nascido com o sexo oposto ao almejado.

E é justamente isto que barrava tudo. Sem idade, sem cirurgia. Sem cirurgia, sem retificação do registro civil. Agora isto mudou. As decisões dos Tribunais já indicam a aplicação destes Enunciados, facilitando em muito os transexuais no sentido de adquirir documentos compatíveis, não somente com sua aparência, mas também com sua identidade de gênero. Não mais uma obrigação ao transexual que o mesmo tenha que realizar uma cirurgia extremamente invasiva, sem realmente querer, ou sentir-se seguro, para ser reconhecido pelo ordenamento jurídico.

De forma alternativa, e extremamente recente, foi publicado o Decreto nº 8.727, em 28 de Abril de 2016, o qual “dispõe sobre o uso do nome social” dos transexuais e travestis. Como funcionaria este “nome social”? Órgãos ou entidades da administração pública federal direta, autarquias e fundações têm que oferecer um espaço, “deverão conter o campo “nome social” em destaque, acompanhado do nome civil, que será utilizado apenas para fins administrativos internos” [7]. Além disto, o transexual ou travesti poderá requerer a inclusão do nome social em documentos oficias ou em registros[8].

Vamos a uma avaliação breve deste Decreto. Pontos positivos: Isto garantirá que, quando o transexual ou o travesti se direcionar a algum órgão federal, da administração pública, ele possa fazer uso do seu nome social. Isto garantirá menos constrangimento. Entretanto, o artigo 3º do referido Decreto somente entrará em vigor um ano após a publicação do Decreto do qual o mesmo faz parte, conforme indica o artigo 7º do mesmo, além de não haver extensão às entidades privadas.

Da mesma forma, o próprio decreto ainda faz menção de que o nome civil poderá ser empregado, “acompanhado do nome social, apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda de direitos de terceiros” [9]. A questão de salvaguardar os direitos de terceiros ainda não fica clara, pois, o que será um direito de terceiro? O direito de um chefe saber se seu funcionário, o João, tinha nome de Maria e nasceu com uma vagina?

O “nome social” oferece vantagens, mas ainda oferece muitas interpretações desfavoráveis aos transexuais, somado ao fato de que a Lei de Registros Públicos já oferece a opção da substituição do prenome por apelido público e notório[10]. Isto não ocorreria, por exemplo, no caso de haver a retificação do registro civil, previsto em lei específica, havendo a alteração do prenome civil, nem qualquer adição de “transexual” ou “travesti” a este registro, sendo ainda o primeiro registro, o qual foi alterado, mantido em sigilo, em segredo de justiça. Aí sim, haveria uma segurança para este cidadão. Não se trata de vergonha por ser um transexual ou travesti, mas sim de respeito, e de ter sua vida privada mantida privada, sem a intervenção desnecessária de terceiros.

Os transexuais querem ser reconhecidos, mas nem todos querem que a sociedade saiba que um dia tiveram uma anatomia oposta a que apresentam hoje. Isto é uma opção própria, que cabe a cada um. Para ser mais claro, ofereço o seguinte exemplo, principalmente depois do artigo anterior e da defesa dos rótulos. A mulher quer ser respeitada e protegida pelo ordenamento jurídico, mas a mesma não quer que o número de vezes que vai ao ginecologista seja exposta perante à sociedade. Nem todas as mulheres querem ser como Angelina Jolie, no sentido de divulgar que removeram as suas mamas.

O que faz de uma mulher, uma mulher, e de um homem, um homem, não são pênis e vagina, e sim caráter e seu pleno conforto em pertencer a um gênero, mesmo que seu corpo não corresponda a este desejo. Felizmente, a Medicina e o Direito evoluíram, para que os transexuais tenham direitos efetivados e sua vontade alcançada, por meio dos procedimentos médicos oferecidos. É importante destacar que, antes de remover qualquer órgão, é IMPERATIVO que você seja e se sinta esclarecido, e que você procure um profissional adequado para este procedimento. Fala-se isso, pois a internet é ambiente rico para relatos de cirurgias que não foram bem-sucedidas, ou de casos de pessoas que realizam ingestão de hormônios por conta própria, ou até mesmo procedimento estéticos caseiros, oferecendo enorme risco para sua saúde e integridade física. Sempre deve-se procurar um médico especializado para que o resultado almejado seja alcançado.

Tanto no caso de Angelina Jolie, como no caso do transexual, é imprescindível que haja segurança ao realizar qualquer tipo de procedimento, e o mais importante, certeza de que esta é a decisão correta a ser tomada.


Notas e Referências:

[1] JOLIE, Angelina. The New York Times. The Opinion Pages. My Medical Choice. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2013/05/14/opinion/my-medical-choice.html>. Publicado em 14 de Maio de 2013. Acesso em 01 de Maio de 2016.

[2] JOLIE, Angelina. The New York Times. The Opinion Pages. Angelina Jolie Pitt: Diary of a Surgery. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/03/24/opinion/angelina-jolie-pitt-diary-of-a-surgery.html?_r=0>. Publicado em 24 de Março de 2015. Acesso em 01 de Maio de 2016.

[3] Sargis, Robert M. Endocrine Web. Home. Endocrinology Overview. An Overview of the Testes. Testes secrete the male hormone testosterone. Disponível em: < http://www.endocrineweb.com/endocrinology/overview-testes>. Acesso em 01 de Maio de 2016.

[4] Sargis, Robert M. Endocrine Web. Home. Endocrinology Overview. An Overview of the Ovaries. Estrogen, Progesterone, and Reproduction. Disponível em: < http://www.endocrineweb.com/endocrinology/overview-ovaries>. Acesso em 01 de Maio de 2016.

[5] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados Aprovados na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça em 15 de Maio de 2014 – São Paulo - SP. Enunciados Biodireito.

ENUNCIADO N.º 42 Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil.

ENUNCIADO N.º 43 É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização.

[6] BRASIL. CFM – Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1955/2010. Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm>. Acesso em 01 de Maio de 2016.

Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios a seguir definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:

1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;

2) Maior de 21 (vinte e um) anos;

3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.

[7] BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de Abril de 2016. Art. 3º: Art. 3o Os registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão conter o campo “nome social” em destaque, acompanhado do nome civil, que será utilizado apenas para fins administrativos internos.

[8] BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de Abril de 2016. Art. 6º: Art. 6o A pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

[9] BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de Abril de 2016. Art. 5º: Art. 5o O órgão ou a entidade da administração pública federal direta, autárquica e fundacional poderá empregar o nome civil da pessoa travesti ou transexual, acompanhado do nome social, apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda de direitos de terceiros.

[10] BRASIL. Lei 6.015, de 31 de Dezembro de 1973. Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.


Rodrigo Chandohá da CruzRodrigo Chandohá da Cruz é Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Advogado regularmente inscrito nos quadros da OAB/SC, Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e autor da obra “A Concessão de Aposentadoria ao Transexual Equivalente ao Sexo Adequado”, publicada em 2014 pela Editora CRV. Além disto, é defensor dos homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais, e luta por maior igualdade entre os cidadãos, independentemente de sua preferência sexual.


Imagem Ilustrativa do Post: Artista en la marcha por la diversidad // Foto de: Javier Ignacio Acuña Ditzel // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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