Corrente

27/04/2021

Coluna Justa Medida

Refletindo sobre o assédio moral nos espaços corporativos e sua relação com as violências simbólicas voltadas para grupos vulneráveis, precisamos enfrentar o fato de que, diante de estruturas tão cruéis, os trabalhadores estão em constante situação de violência. Combater a cultura de assédio é vital para a saúde corporativa e a recuperação das relações de trabalho no Brasil.

A ausência de regulamentação efetiva leva à suposição (equivocada) de que os padrões de conduta discutidos são válidos; não são. O assédio moral viola a principiologia de igualdade e de dignidade da natureza humana, conforme descrita pelo Quinto Constitucional; para além, é uma afronta sem precedentes à principiologia constitucional de trabalho, violando preceitos de proteção à saúde e segurança do trabalho e tolhendo a dignidade do trabalhador.

Na dinâmica empresarial, muitos acreditam que o riso é sempre inocente; porém, esta é uma das maiores armas para depreciar a identidade das pessoas, a “piada” que não tem graça. Declarações constrangedoras e pejorativas camufladas como humor são recebidas com extremo desconforto por vítimas de assédio moral. Estas assertivas costumam se relacionar com marcadores sociais de diferença, ou abordar de forma invasiva uma característica pessoal da vítima.

Em ambientes corporativos, o silêncio atípico entre colaboradores também denota a ocorrência de assédio moral. Não há abertura para manifestações que alimentem a sinergia produtiva, e não há um canal de comunicação aberto com outros setores da empresa para mediar a situação. Os colaboradores são solenemente desencorajados a qualquer tipo de manifestação, entre si, ou perante os superiores hierárquicos.

A garantia deste silêncio é o monitoramento constante. O ambiente desencoraja suas necessidades fisiológicas, como beber água, comer, ou ir ao banheiro, para manter sua produtividade alta, e monitora a maneira de desenvolvimento desta produtividade.

A logística de disponibilização de bebedouros e banheiros facilita o controle de tempo; trabalhadores são comumente questionados, e até importunados, se ocupam estes espaços por mais de três minutos, e duramente admoestados pelo uso de telefones celulares mesmo em horário de almoço.

É importante ter atenção à dinâmica inversa. Empresas podem dificultar o acesso a bebedouros, banheiros e refeitórios, de forma a desencorajar seu uso para aumentar produtividade, ou mesmo relocar as instalações para aumentar o tempo de deslocamento e aplicar punições aos que precisam utilizá-las. É instrumento eficaz de pressão; para não levar mais advertências e ficar vulnerável a uma dispensa por justa causa, o trabalhador prejudica a própria saúde, evitando comer, beber água, ou usar o banheiro.

Câmeras são espalhadas por todo o ambiente, e intervenções nos sistemas operacionais derivadas de redes privadas virtuais - ou VPN, para Virtual Private Network - são comuns; o trabalhador pode assistir mensagens de e-mail serem inteiramente refeitas com estas ferramentas, por suas palavras serem consideradas reveladoras demais.

Todos estão sempre perguntando que e-mails foram enviados, que planilhas foram feitas, e a que horas, quais metas foram cumpridas - e por vezes insistindo em seu não cumprimento com o argumento de visualização das agendas.

Quando o colaborador questiona essa conduta, geralmente recebe um comentário pondo suas capacidades em xeque, em meio a uma onda de ataques - sempre envoltos em gentilezas. Nestes momentos, comentários negativos sobre a forma de vestir, andar, calçar, falar, comer, pentear, e outros atributos da pessoa, com sugestões “construtivas” de mudança para “melhorar a imagem profissional”, são costumeiros.

Para pessoas fora do escopo corporativo em contato com a vítima, alguns sinais se sobressaem. Tais práticas têm reflexos na saúde do trabalhador, interferem na convivência familiar e apresentam sintomas palpáveis para amigos e familiares. O desenvolvimento de irritabilidade excessiva, especificamente em discussões que tenham relações com as competências profissionais das vítimas, é um sinal de alerta máximo.

É ideal a avaliação médica; pessoas sob jugo intenso de assédio moral podem desenvolver problemas cardíacos e gastrointestinais sérios, eis que os sistemas digestivos e cardiovasculares respondem de forma mais intensa ao stress. Famílias negras devem ter a atenção redobrada, considerando que a população negra, mais vulnerável à prática de assédio, têm maior predisposição a problemas de pressão arterial, o que pode agravar problemas cardíacos.

O meio de prova mais eficaz para o assédio é o registro de áudios e vídeos de forma intermitente; para coibir a prova, empresas estão proibindo o uso de aparelhos celulares em seus estabelecimentos. As entidades sindicais têm sido produtivas neste aspecto, já que o registro de denúncias e arquivos de  investigação podem embasar a tomada de providências e beneficiam a todos.

Há uma falha grave nestes procedimentos, que pedem a identificação de denunciantes. Os trabalhadores em situação de assédio estão vulneráveis, e em situação de violência; por vezes, não possuem condições de deixar o ambiente tóxico em que se encontram.  Sua identificação, e posterior revelação de identidade em procedimento investigativo que inevitavelmente envolverá a empresa, torna o trabalhador ainda mais vulnerável. Precisamos da anonimização como forma de proteção dos trabalhadores em situação de violência. Não é medida estranha à norma.

A Constituição assegura o direito de não revelar uma fonte de informações, quando tal revelação puder prejudicar o desempenho desembaraçado de funções. A principiologia é comumente aplicada a jornalistas; entretanto, não se restringe a tal categoria profissional, podendo ser estendida a outras nas finalidades determinadas pela Carta Magna.

Cumpre observar que o sigilo é norma profissional de outras categorias, como a da própria advocacia. Como afirma Celso de Mello, o sigilo da fonte não é um privilégio de jornalistas, mas meio essencial de plena realização do direito constitucional de informar. É dever do Estado e do Poder Público respeitar esse direito, que se origina na própria Constituição Federal, e não cabe ao poder geral de cautela, utilizado por muitos juízes para fundamentar decisões atentatórias a tal princípio, o desrespeito ou à violação deste dispositivo constitucional.

Em sendo o objetivo de procedimentos investigativos informar a autoridade pública competente – o Ministério Público do Trabalho – acerca das irregularidades cometidas por dada entidade inserida em categoria patronal, bem como informar e fundamentar providências a serem tomadas pelo Sindicato, é cabível a supressão de dados de identificação de vítimas, depoentes, denunciantes e outros envolvidos, cujas declarações sirvam para melhor informar e evidenciar os fatos investigados.

Insta salientar que o sigilo é uma forma de proteção da informação, e também daquele que faz uma denúncia ou que comunica o conteúdo de um dado sensível. Muitas pessoas não denunciam crimes ou indícios de ilícitos de que tem conhecimento por medo de represálias. Não é por outro motivo que existem diversos canais de denúncia que protegem os denunciantes sob o anonimato e, em outra seara, há os mecanismos de proteção a testemunhas. Essa proteção ao sigilo da fonte tem a peculiaridade de proteger a livre disseminação da informação.

Ainda, a Lei Geral de Proteção de Dados institui no ordenamento jurídico o conceito de privacy by design ao dispor que o tratamento de dados deve respeitar a privacidade de seus titulares, com preferência à sua anonimização. Nestes termos, a aplicabilidade da garantia de anonimato, mantendo identidades sob sigilo, é válida, e traria mais segurança e acolhimento aos trabalhadores em situação de violência.

O combate ao assédio moral seria mais eficaz se entidades sindicais, entidades de classe e o Ministério Público do Trabalho colaborassem de forma permanente; a naturalização do assédio moral no ambiente de trabalho, impulsionada pelas estruturas discriminatórias no tecido social, é um risco iminente aos trabalhadores e uma ameaça às relações de trabalho, cuja defesa e proteção é missão precípua desses órgãos.

Este, no entanto, não é o cenário que temos. Precisamos falar sobre o assunto. Precisamos encontrar a coragem de debater, nos espaços empresariais - aos quais a advocacia é familiar - e organizacionais, as consequências nefastas da manutenção destes padrões. Precisamos munir a classe trabalhadora de informações para a própria defesa; e precisamos, acima de tudo, envidar nossos melhores esforços no acolhimento e na busca de justiça para os trabalhadores em situação de violência.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Metas nacionais do Poder Judiciário // Foto de: Divulgação/TJGO // Sem alterações

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