Coluna Stasis / Coordenadores Luiz Eduardo Cani e Sandro Bazzanella
Era uma vez um povo que se pretendia portador de uma racionalidade alegre, festiva, descontraída, despreocupada. Uma racionalidade que apostava na sua capacidade de improviso, no jeitinho para resolver situações difíceis, senão complexas. No pensamento Ocidental convencionou-se que uma das formas de definir o humano seria pela via da razão. Assim, a racionalidade seria o que distinguiria isso a que chamamos de humanos dos demais animais e formas de vida. Tal racionalidade criou as mais avançadas tecnologias, desenvolveu os mais impressionantes estudos em inúmeras áreas do conhecimento. Descobriu (?) as mais diversas informações sobre o mundo, sobre a galáxia, sobre o universo, sobre os átomos, moléculas, micro organismos, bactérias, vírus. Também desenvolveu a ideia e executou os campos de concentração, o genocídio negro, a exploração de outros seres humanos tão racionais como os que os exploram. Diante dos mais diversos episódios de barbárie, de desrespeito a natureza, de justificação de um evidente sistema político, jurídico e econômico insustentável, podemos questionar a que, ou a quem, serve esta racionalidade, já que não parece servir como meio de conferir igualdade aos homens.
Em terras tupiniquins alguns episódios parecem vir acompanhados do cômico, se não do trágico. Lembremos o quanto uma Revolta da Vacina nos custou, por exemplo. Em perspectiva similar, lembremos da marcha da família com Deus pela liberdade em 1964. Parecia haver há algum tempo algo de estranho, equivocado, com a racionalidade expressa pela coletividade nacional. Talvez não tenhamos nos atentado a isto, diagnosticando tais sintomas como manipulação, protofascismo, cegueira causada pelo discurso neoliberal.
Não nos parece aqui conveniente buscar qualquer saída para tal situação, pois ainda não se consegue diagnosticá-la em sua totalidade. Estamos inseridos nesse tempo e espaço e nossas lentes não nos permitem, ainda, formular um juízo suficiente que dê conta do que está acontecendo e por acontecer. Ainda estamos, e não sabemos por quanto tempo, inseridos nessa onda de uma racionalidade que mistura o trágico, o cômico, a cegueira, o protofascismo, um pouco de manipulação e a cada vez mais evidente ausência de compaixão, ausência de um olhar humano que, muitas vezes, parece ser descartado em detrimento de uma visão cada vez mais individual.
Para atestar isso, não precisamos voltar às eleições de 2018. A pandemia do COVID-19 que vem fechando fronteiras, colocando países em quarentena, matando milhares de pessoas e colocando em risco inúmeras outras, parece ter chego ao Brasil para demonstrar, mais uma vez, a debilidade de certos setores, desprovidos de racionalidade suficiente diante das demandas humanas e sociais. Setores estes que, há tempos, vêm desacreditando a ciência e conferindo mérito a discursos falaciosos. Relativização do aquecimento global, consideração de uma terra plana, mitos como nazismo de esquerda, kit gay, ameaça comunista, e assim por diante.
Essa, que não é uma falta, mas sim um tipo de racionalidade, até então tem trabalhado de modo a confundir a opinião pública, atacar a imprensa, enquanto nos bastidores, aprova reformas, baixa decretos e faz malabarismos para atacar desafetos, e proteger quem lhe convém. Tal racionalidade, inclusive, tem sido aderida por camadas que não concebem sua própria realidade e, ao invés de combater o fantasma que não deixa o Brasil prosperar, puxam uma enxada no próprio pé. Mas esse não é o tema a ser tratado aqui.
O atual momento parece paradoxal. já citada pandemia exige uma postura menos caricata e mais séria de quem se supõe líder. Claramente, não é o que temos visto acontecer. Ao que parece, a estratégia do nosso capitão não apresenta nada de novo: relativização da pandemia, ataques à imprensa, banana a quem não corrobora, falta de uma postura séria por parte de quem foi escolhido para nos representar. O Ministério da Saúde parece encontrar mais um empecilho do que um ajudante no combate ao Coronavírus.
Como se não bastasse, contra toda recomendação séria, estímulos aos atos do dia 15 de março. Atos que não representam apenas uma racionalidade antidemocrática e autoritária, mas uma irresponsabilidade tamanha em relação à saúde pública. Atos que, com o aval do líder maior, atacam instituições que, a seu modo, garantem, em teoria, a talvez ilusão da democracia. Atos que nos lembram da racionalidade anti-científica e conspiradora de parte da população que não parece preocupada com ônibus e metrôs lotados, com superlotação dos hospitais públicos, com a iminência da chegada do vírus que já chegou. Talvez o auge das inacreditáveis reações tenha sido a ironia com que foi tratado o Coronavírus nas manifestações, em cartazes que diziam que a corrupção no STF e Congresso matavam mais que um vírus, e demais expressões da mesma espécie.
Saramago, em seu Ensaio Sobre a Cegueira, nos faz questionar as profundezas da natureza humana. A que ponto chegamos quando nos vemos ameaçados? O que nos dispomos a fazer quando achamos que possuímos algum poder sobre os outros? Para onde vai o espírito coletivo que permeia tantas relações humanas (e animais) em momentos de crise? Saramago, assim como a realidade, nos mostra que a humanidade é conflituosa, egoísta. É capaz de atos quase inconcebíveis para arrancar o menor proveito das situações que lhe aparecem. É capaz de tratar seus semelhantes de modo a desconsiderar seu sofrimento. Tratá-los como seres que não necessitam, ou não merecem, o menor sinal de compaixão, a menor condição digna de existência. Ainda, mesmo que reconheçamos que alguns seres humanos também são capazes de atos altruístas, de sacrifício da própria vida diante de situações de risco em que outros seres humanos encontram-se envolvidos, os exemplos demonstram de forma inconteste que o impulso ao egoísmo tem tendência a prevalecer em momentos de crise.
Num primeiro momento nos parece difícil conceber como é possível tal reação. Porém, basta atentarmos para como o COVID-19 é relativizado por parte da população que parece não ter percebido o perigo batendo à porta, que possui acesso a saúde e, portanto, não trata os menos favorecidos como uma preocupação real. Além disso, o descaso da parte que não considera a possibilidade de ser infectada, vivendo sob a perspectiva de que o problema está longe, está nos grandes centros, está na Europa, em São Paulo, longe da falsa redoma que existe apenas na cabeça de quem parece não querer enxergar o pouco de realidade a que temos acesso. Se quisermos exemplos que não estejam ligados à pandemia, que vejamos como são vistos moradores de rua, por exemplo. Vejamos o quanto de humanidade que lhes é tirada em detrimento de uma imagem quase animalesca.
Estamosm um momento que revela traços vergonhosos de parte da cionalidade social brasileira. Traços marcados pelo autoritarismo, pelo elogio da ignorância, pelo descrédito ao conhecimento, pelo descaso com os que não possuem acesso a proteção e vão lotar hospitais. No Ensaio Sobre a Cegueira há uma personagem que se torna responsável por guiar parte dos cegos. Quem quer que esteja escrevendo o roteiro de Brasil 2020, parece ignorar a importância de tal personagem, colocando em seu lugar um desqualificado e boçal cuja cegueira é de espirito (pensamento), de iniciativa, de criatividade. Cegueira, por fim, da responsabilidade pública que o cargo que ocupa requer.
Imagem Ilustrativa do Post: Inauguración del Hospital Municipal de Chiconcuac // Foto de: Presidencia de la República Mexicana // Sem alterações
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