As palavras adquirem significados diferentes, às vezes contraditórios. Ignorante é um exemplo: o Houaiss registra: “sem malícia; puro, inocente”. Mas, também: “mal-educado, grosseiro; pretensioso, presunçoso”.
Entre o cândido e o tosco, interessa-me outra acepção: “que ou quem não tem conhecimento por não ter estudado, praticado ou experimentado”. Quero dizer: que não sabe por desinformado, não por inaptidão.
Ignorantes têm mais dificuldades de se estabelecer em lugares de poder. Não parece difícil entender os motivos: ignorantes detêm menos informações para desenhar panoramas e tomar decisões.
Acontece que há ignorantes extremamente inteligentes. Inteligentes, apesar da ignorância, muitas vezes obtêm sucesso em suas empreitadas. Administram tão bem seus saberes limitados que logram sucesso.
Não é incomum ignorantes inteligentes que alcançam posições de poder transformarem seu lugar de sucesso pessoal em desastre público. Podendo muito, agindo muito, estragam muito.
É extremamente difícil interagir com o ignorante inteligente que obteve sucesso. Para o ignorante bem-sucedido, o seu sucesso mesmo é-lhe prova bastante de que ele está no caminho certo.
Então, com poucos argumentos, mas em lugar de destaque, o ignorante inteligente se fecha em defesas. A quem esse tipo de ignorante se abre? A outros ignorantes tais e quais ele mesmo.
Nesse caso, o quadro se complexifica (ou se complica). Um ignorante inteligente que deu certo cercado de outros ignorantes inteligentes que deram certo são uma equipe inalcançável, muito difícil de lide.
Mas há situações mais adversas. Há o ignorante inteligente vitorioso (abichou poder) que, cercado de outros ignorantes inteligentes, supõe que esses ignorantes que o cercam sabem alguma coisa.
Todos ignorantes, todos, porém, inteligentes. Todos reciprocamente se alimentando de suas condições ignaras, todos esgrimindo as habilidades dos astutos, manhosos, espertos, finórios que são.
Ignorantes inteligentes e poderosos, se eles têm uma causa (ideias, princípios, propostas e “soluções” que defendem), catalisam a “ignorantzia”. Eles se convertem não em líderes, mas em mitos.
Mito: “Imagem simplificada de pessoa ou acontecimento, não raro ilusória, elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu comportamento” (Aurélio).
Destaco o “não raro ilusória”. Acrescento: “Ideia falsa, sem correspondente na realidade” (Aurélio). Seria terrível termos um mito ignorante, inteligente e “bem” acompanhado de ignorantes inteligentes?
Seria, certamente. Pois é o triste caso do nosso Brasil. Temos um ignorante inteligente com poder mitificado pela massa ignara. E não há dúvida de que variados ignorantes inteligentes o circulam.
Ninguém poderia paragonar melhor a turbamulta. Eis uma relação “ótima”, catalisada por ideologia e temperada pela violência (e violentos) sistêmica que traspassa as nossas relações sociais.
Somos ideologicamente cristãos; cristãos fervorosos dados a profissões públicas de fé nos governam. Somos socialmente violentos; um grupo cujo núcleo comandante discursa violência nos governa.
Ah!, os costumes: cristãos fundamentalistas e violentos alinhados ao retrocesso. Valores e crenças medievais retornaram à pauta como um miasma ameaçador, obscurecendo nosso Iluminismo incompleto.
Presidente Bolsonaro, o senhor é militar da Artilharia. O senhor entende, pois, suponho, de balística. Desse saber eu sei o suficiente para saber que dele sei pouco ao tempo que o senhor sabe muito.
Então, eu sou ignorante em balística enquanto o senhor não o é. O senhor, por sua vez se disse, e o é, ignorante em Economia. Então o senhor buscou o Guedes. O Guedes tem boa formação na área.
Concorde-se ou discorde-se, Guedes tem Lattes para apresentar (não obstante estupidezes). Eu lhe perguntaria: por que o senhor, nos campos ideológicos do seu governo, não procedeu da mesma forma?
Seja: por que o senhor, sabendo que além de Economia ignora outros assuntos, sobretudo os atinentes à Cultura, à Educação e aos costumes gerais, não se socorreu de quem tivesse o que oferecer?
Por que o senhor, inteligente, não obstante ignorante (conforme expliquei e exemplifiquei), foi buscar lições de um ignorante com passado de astrólogo (coisa anticristã) para formar equipe de governar?
Quero significar: assim como eu sei que não sei balística, o senhor não sabe que seu guia intelectual é um ignorante em teorias educacionais, em relações internacionais, em filosofia política etc?
Por que falo disso? Devido ao seu comportamento diante do coronavírus. O senhor comete uma ignorância atrás da outra relativamente aos protocolos de segurança médica adequados à crise que vivemos.
Tenho uma hipótese para o seu comportamento ignorante: o senhor ignora o que está fazendo e se inspira na ignorância dos que o cercam intelectualmente e afetivamente. Falo do seu guru e dos seus filhos.
Pelo que tenho acompanhado nos jornais, eles todos acreditam que as universidades são um antro de perdição, creem pouco na ciência e supõem que há uma conspiração mundial para tomar o Brasil.
Apelando à sua inteligência e (re)alertando-o sobre a sua ignorância e a ignorância dos seus, retorno à Artilharia. Para o bem e para o mal (isso é critério valorativo) a ciência produziu armas eficientíssimas.
O senhor e sua escolha ignorante de conselheiros ignorantes está usando, seja para governar de modo geral, seja para enfrentar crises específicas, de bodoque, flecha, tacape. O senhor traiu a ciência da Artilharia.
Nota o seu ministro Mandetta. Temos a boa sorte de ele saber o que faz. Ele usa as boas armas (Artilharia) que a ciência lhe oferece para o combate ao Coronavírus. Já o senhor... O que o senhor faz?
O senhor, como o bom ignorante que é no assunto saúde, comporta-se como em uma guerra primitiva, sem a menor noção do trágico dano que causa a toda a nação que governa, incluindo seus eleitores.
Por quê? Efeito simbólico. O senhor, como presidente da República, simboliza muitas coisas. Um gesto seu, uma palavra sua, um comportamento público seu, tudo isso gera efeito que o senhor não controla.
Num país de formação educacional precária, mentalidade mística, violência social exacerbada como o nosso, o senhor e a sua inteligência combinada com a sua ignorância das coisas nos deixam mal.
Mal nos negócios, nas relações com outros países... Mal de cultura, de vida intelectual. Mal no equilíbrio das Instituições. O senhor talvez não tenha percebido, mas o senhor é um Chávez, nada mais.
Senhor Bolsonaro, não sou seu eleitor, mas sou seu concidadão. Eu sempre o vi como um atraso civilizacional, mas o reconheço vitorioso e presidente do Brasil (o senhor é que suspeita da sua eleição).
Ah!, não componho o partido seu principal opositor. Vejo-os (falo de certos dirigentes) uma quadrilha. Ademais, são esquerda de direita: mentem, roubam, se confundem com religião, cultuam personalidades.
Não lhe escrevo, pois, senhor presidente, com tendência partidária. Também não o faço com qualquer rancor. Escrevo-lhe para lembrá-lo da sua inteligência e da sua ignorância. Ambas são consideráveis.
Termino repetindo o que lhe alcança: Artilharia, armas de que o senhor tanto gosta. O senhor combateria sem o melhor? Não! O senhor buscaria em todo os lugares pelo que houvesse de mais sofisticado.
O melhor não é a ignorância, tampouco o são os ignorantes, senhor Bolsonaro. Os cientistas não são ideologicamente neutros, mas não são rasos. Busque-os. A ciência ainda é o melhor. Pode acreditar.
Senão, a Bíblia: Levítico 11:28: 13:1-5: Deuteronômio 23:13. Práticas higiênicas recomendadas. Regulamentos sobre isolar pessoas com doenças infecciosas. Outras recomendações. Já serve, pois não?
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