O Estado pode tudo para não deixar de arrecadar? O jurista Ives Gandra da Silva Martins parece nos oferecer uma resposta, quando diz que “hoje é mais importante arrecadar do que cumprir a lei”. O momento histórico que o Brasil vive atualmente sugere um cenário de deterioração da integridade ética do ordenamento jurídico e nas práticas fiscais, tanto no que se refere à garantia do direito de optar pelo melhor modelo tributário, quanto às consequências nefastas que a reclassificação do registro contábil do ágio traz para a justiça fiscal.
Gostaríamos, com o presente estudo, de chamar a atenção para o tema e de levantar uma bandeira em favor do contribuinte. Afinal, a necessidade de repressão às fraudes fiscais e aos abusos de forma praticados por determinados contribuintes não podem resultar na limitação do direito de planejar o exercício da atividade econômica, ainda quando se trate essencialmente de procedimentos voltados para a otimização fiscal das empresas.
Decisões reiteradas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF contrárias ao contribuinte, no que se refere ao aproveitamento do ágio nas operações de fusão, cisão e incorporação, vêm impondo severo ônus aos contribuintes envolvidos, muitas vezes ferindo seus direitos e garantias constitucionais, caracterizando um verdadeiro abuso de direito por parte do Estado e distanciando a solução do tema de uma justiça fiscal mais coerente e eficaz.
Trata-se aqui de planejamento tributário, ferramenta de grande importância na administração de qualquer empresa. A sua correta aplicação possibilita melhor aproveitamento dos recursos econômicos disponíveis, otimizando os resultados de forma a atingir os fins últimos de toda atividade produtiva, que é o aumento da lucratividade.
O adequado planejamento na forma de condução de negociações de cisão, fusão e/ou incorporação, pode trazer uma economia tributária relevante para a empresa, tornando-se, na atual conjuntura econômico-financeira, uma ferramenta importantíssima para o sucesso financeiro da atividade empresarial.
Com a chegada das normas internacionais de contabilidade, a abordagem do planejamento das atividades do empresário começou a apresentar um novo cenário do ponto de vista tributário. Mas a gradativa adequação da contabilidade brasileira a essas normas enfrenta uma importante barreira, que é a sua adaptação ao regramento da Receita Federal do Brasil - RFB, que determina o que o Estado entende como dedutível ou não.
Conforme nos diz Tonanni (2015):
“A Lei 11.638/2007 (Lei 11.638) e a Lei 11.941/2009 (Lei 11.941) foram responsáveis pela introdução da Nova Contabilidade, por meio da alteração dos artigos da Lei 6.404/1976 (Lei 6.404) que tratam das demonstrações financeiras das sociedades. Essas leis determinaram o processo de convergência da contabilidade brasileira aos padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários...”
No entanto, a par de promover a nacionalização desses novos padrões contábeis, a legislação Brasileira vem sendo alterada de forma a cercar a liberdade do contribuinte, na tentativa de diminuir cada vez mais o planejamento das atividades que buscam a diminuição dos encargos tributários, chegando até mesmo ao ponto de criminalizar tais condutas.
Segundo nos ensinam Novais e Martinez (2015):
“Especificamente quanto ao ágio, a evolução de seu conceito jurídico e as demais mudanças relativas ao novo regime jurídico inserem-se em um contexto de inúmeros questionamento e debates no contencioso administrativo. Como se depreende da análise dos casos julgados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), não há homogeneidade na apreciação da matéria. A atuação das autoridades fiscais, a seu turno, tem sido caracterizada pela limitação da validade do exercício do direito a amortização do ágio com base em construção jurisprudencial, pautada na antecipação da eficácia das normas e padrões internacionais, constantes de regras contábeis, mesmo antes da vigência da Lei 12.973/2014.”(grifo nosso)
Clarificar este contexto é de suma importância, na medida em que verificamos reflexos nefastos nos casos de glosa dos lançamentos contábeis atinentes a desqualificação negocial. Percebemos que, muitas vezes, na ânsia de arrecadar, o fisco intui evasão fiscal em detrimento do planejamento tributário, impondo uma pseudoliberdade no que tange ao planejamento tributário, quando do aproveitamento do ágio por expectativa de rentabilidade futura, gerado nas operações de fusão, cisão e incorporação.
O Brasil passa, atualmente, por um período de grave recessão econômica, com diminuição da produção e do emprego e, consequentemente, da arrecadação tributária. Por seu turno, com menos recursos, o Estado investe menos e inicia-se, com isso, um círculo vicioso que alimenta ainda mais a crise.
É nesse cenário que percebemos com mais clareza a fome fiscal do Estado, na ânsia de manter seus programas sociais, alimentar a máquina pública, prover os investimentos em infraestrutura, etc. Essa fome vem se transformando em aumento do rigor tributário, quer seja pela elevação das alíquotas, supressão de benefícios fiscais, criação de novos impostos ou, o que nos interessa aqui, o cerco a qualquer tentativa de suprimir, reduzir ou diferir tributos, ao ponto não só de invadir a autonomia administrativa e gerencial das empresas, como também de reclassificar e modificar eventos contábeis ocorridos.
No caso particular do aproveitamento do ágio nas operações de fusão, cisão e incorporação, as decisões do CARF que negam ao contribuinte o direito de adotar procedimentos de otimização fiscal, com base em planejamento tributário lícito, podem gerar graves prejuízos financeiros, especialmente quando o contribuinte se encontra sob forte pressão financeira, decorrente, por exemplo, da referida crise econômica.
O fundamento adotado por essa instância administrativa decorre, em linhas gerais, da necessidade de comprovar nessas operações o propósito negocial da mudança societária, de tal modo que a otimização fiscal pretendida seja mera consequência, não o objetivo principal do planejamento adotado pelo contribuinte. Se não for demonstrado esse propósito, o ágio não poderá ser aproveitado.
Neste sentido, Novais e Tonanni (2014) esclarecem:
“O direito à amortização fiscal do ágio é matéria que há anos está sob o escrutínio das autoridades fiscais federais. Por não terem logrado êxito no convencimento do Poder Legislativo quanto à revogação total dos dispositivos legais acima mencionados, as autoridades têm consistentemente autuado os contribuintes que realizaram operações envolvendo o reconhecimento de ágio na aquisição de empresas e exerceram seu direito à amortização fiscal nos temos Lei 9.532/1997.” (grifo nosso)
É necessário, portanto, um grande empenho dos diversos operadores do mundo tributário, para compreender as razões de decidir desse órgão administrativo de julgamentos fiscais, bem como para apontar estatisticamente os casos de deferimento ou indeferimento do pleito dos contribuintes, avaliando a sua conformidade aos princípios constitucionais que regem a matéria, suprindo, assim, uma lacuna no estudo da matéria.
As sucessivas alterações ocorridas na legislação brasileira trouxeram inúmeras mudanças em relação à forma em que o empresário/contribuinte planeja suas ações com vistas à redução da carga tributária. Cada vez mais, o Estado cerca o contribuinte com leis e normas com o fim de coibir o planejamento tributário. Concomitante a isso, o Estado vem, gradativamente, estreitando as leis, a fim de coibir e até mesmo criminalizar os atos do empresário que visam à reestruturação com finalidade de economia tributária.
Indica-se, como exemplo, a conversão da MP 627/2013 na lei 12.973, de 2014, que deflagrou um clima de incerteza quanto ao aproveitamento do ágio nas operações de fusões, cisões e incorporações. É diante desse contexto que entendemos a importância do presente estudo, que tem por ambição despertar para um debate mais aprofundado das controvérsias envolvendo os casos de aproveitamento do ágio em reestruturação societária, especialmente aqueles julgados pelo CARF.
Segundo Dalmagro (2011):
“Por meio da “norma anti-elisiva", preceituada pela Lei Complementar n° 104/2001, presente no parágrafo único do artigo 116, do Código Tributário Nacional, restou autorizada a autoridade administrativa em “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Parece confuso, mas é compreensível a presença de uma norma anti-elisiva no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de combater aqueles atos elisivos abusivos, que envolvem uma aparente elisão fiscal para, na verdade, ilicitamente (evasão, simulação, dissimulação) retardar, diminuir ou extinguir o pagamento do tributo. A reestruturação societária poderá dar-se de diversas formas abrangendo situações como a cisão, a fusão, a incorporação/a incorporação às avessas e a sociedade em conta de participação. Cria-se novas pessoas jurídicas (sociedades). Ressalta-se que, no ato de reestruturação societária, “não existe dissolução ou liquidação de pessoa jurídica, mas sim extinção dos atos constitutivos, que são substituídos por outros” (CARVALHOSA, 2002, p.185). Sob tal ótica, observa-se que nessa alteração, ocorrem ganhos em economia tributária.”
Como já fizemos referência anteriormente, frequentemente, o contribuinte preocupa-se com o bem estar de seus negócios, considerando que calcular o custo tributário faz parte da estruturação dos negócios.
Ora, o planejamento tributário lícito, ou elisão, nada mais é do que toda e qualquer conduta do contribuinte que, amparada pela lei, possa ser tomada com o fim de gerar economia tributária. Um exemplo típico de planejamento tributário é a reestruturação societária, que, em processos de cisão, fusão ou incorporação, podem gerar ágio, o qual, por sua vez, pode ser aproveitado para diminuir o valor dos tributos a serem arrecadados.
No entanto, as decisões do CARF sobre a matéria vêm dando interpretação diversa à matéria, ou seja, de que o aproveitamento do ágio, nos casos estudados, não é lícito, e sim considerado evasão de divisas, gerando, com isso, grave repercussão econômica na vida das empresas.
Com este estudo, pretendemos, portanto, chamar a atenção para o conflito de entendimentos sobre o aproveitamento do ágio gerado nas combinações de negócios citadas, o que vem criando obstáculos para a atividade econômica de diversas empresas.
As decisões do CARF sobre a matéria, contrárias ao contribuinte, criam um clima de insegurança jurídica e negocial, criando embaraços para novos investimentos do setor produtivo e colocando o país na contramão do desenvolvimento econômico global.
Com o debate mais aprofundado da matéria, além das limitações do presente trabalho, será possível criar uma maturidade sobre os procedimentos de otimização fiscal das empresas, dando melhores contornos aos limites entre liberdade do contribuinte e sujeição tributária, notadamente no que concerne ao aproveitamento do ágio nas operações de reestruturação societária.
Notas e Referências:
DALMAGRO, Diego Vitor. A reestruturação societária com o ferramenta de planejamento tributário. Selectwords, 2011.
MARTINEZ, Antônio Lopo, COELHO, Luiz Felipe de Almeida. 2014. Tax Avoidance com Operações Societárias: Critérios de Validade Utilizados pelo CARF. Disponível em: < http://www.fucape.br/_public/producao_cientifica/2/CUE283.pdf>. Acesso em 20/07/2016.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Et Al. Valdir de Oliveira Rocha (organizador) Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo, Dialética, 2014.
NOVAIS, Raquel, TONANNI, Fernando. Ágio – Novo Regime Jurídico e Questões Atuais. In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Coordenadores Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética, 2014. Págs. 325-358.
______, Raquel, MARTINEZ, Bruna Marrara. A Lei 12.973, a Empresa-veículo e Outros Temas. In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Coordenadores Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética, 2015. Págs. 491-518.
TONANNI, Fernando, GOMES, Bruno. O Conceito e a Natureza Jurídica do Ajuste a Valor Justo e seu Tratamento nas Reorganizações Societárias. In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Coordenadores Roberto Quiroga Mosquera e Alexsandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética, 2015. Págs. 210-245.
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