Controvérsias na classificação dos transtornos mentais: o caso do normal e o patológico

04/04/2017

Por Ana Luisa Schmidt Ramos – 04/04/2017

1 O normal e o patológico

Não há como falar em psicopatologia sem que se faça referência às ideias – dicotômicas – de saúde e doença ou sobre as nubladas fronteiras entre o normal e o patológico. Não há uma, mas diversas formas de se olhar para o fenômeno, e serão esses enfoques, essas dimensões que dirigirão a atenção – e a(s) maneira(s) de fazê-lo – às pessoas que se encontram em sofrimento psíquico. Sobre essa controvérsia, serão articuladas as ideias trazidas por Benilton Bezerra com os artigos de Octavio Domont de Serpa Junior et al, Paulo Dalgalarrondo et al, R. D. Laing, C. Brenner e J. A. Bergeret.

Desde que se decidiu classificar as – então chamadas – doenças mentais, de forma rudimentar por Philippe Pinel, no século XVIII, e posteriormente, no final do século XIX, por Emil Kraepelin, muito se discutiu sobre o que se pode considerar normal e o que se pode subsumir a uma categoria nosológica pré-dada. Como saber quando uma pessoa adoece? E assim que ela se destaca da espécie dos “normais”, onde enquadrá-la? Como fazer isso e por que fazê-lo?

Benilton Bezerra[1] bem lembrou que o sofrimento psíquico é inerente à existência humana e portanto a demarcação da normalidade é uma constante. O avanço nos estudos na psiquiatria e na psicofarmacologia provocaram o incremento diagnóstico, que se vê, a cada nova edição (ou revisão) da CID e do DSM, mais ampliado e mais inclusivo.

Nesse contexto, como estudar a psicopatologia? Serpa Junior e colaboradores[2] apontam que o ensino da psicopatologia se tem realizado, de maneira hegemônica, sob a dimensão descritiva (ou de terceira pessoa) e apostam na superação desse modelo – na esteira do abandono do padrão hospitalocêntrico e dos regimes verticais entre usuários e equipe – por uma dimensão subjetiva (ou de primeira e segunda pessoa) da experiência do adoecimento quanto aos aspectos relacionais e interpessoais. Significa que o sujeito em sofrimento psíquico deixa de ser visto, por um observador “ideal, universal, livre de compromissos teóricos e isentos de juízos de valor”[3], como um conjunto de sinais e sintomas, para que seja aí incluída a sua subjetividade. É, então, o sujeito da experiência tomado em sua totalidade.

E como estabelecer em qual das bordas de normalidade e patologia o sujeito em sofrimento psíquico se situa? Laing lembra que não há como avaliar o comportamento do paciente sem incluir o comportamento do psiquiatra no “campo behavioral”[4]. Vale dizer: a relação médico-paciente inclui-se no diagnóstico, uma vez que a interpretação que se dá ao comportamento do paciente depende do relacionamento que se estabelece com ele. E mais: considerar suas ações como sinais de doença já lhe impõe as categorias de pensamento do médico. Portanto, reafirma-se a precariedade dos diagnósticos fundados unicamente em observações objetivas do sujeito e chama-se o olhar – e a escuta - para o ser humano único, reconhecendo-se a todo o tempo “sua singularidade e diferenciação, sua separação, solidão e desespero”[5].

Considerando-se esse sujeito total – e único - , não há como afastar, do processo diagnóstico, os fatores culturais a influenciar a psicopatologia. Bezerra[6] faz referência à Drapetomania, criada pelo psiquiatra americano Samuel Cartwright no século XIX, para referir-se a um impulso irracional à fuga de certos escravos, e até mesmo à histeria, comum na época vitoriana, mas diferente nos dias de hoje. Já Paulo Dalgalarrondo e colaboradores[7] alertam para a peculiaridade e utilidade das práticas de cura religiosa no meio brasileiro. Para os autores, os psiquiatras devem conhecer profundamente a realidade social e cultural de seus pacientes, pois há muitas reações e expressões de personalidade que decorrem de condicionamentos culturais, e o psiquiatra mal avisado pode confundi-las com transtornos mentais[8].

Veja-se que, anteriormente às terapias biológicas (o primeiro psicofármaco surgiu na década de 1950)[9], o que havia era a terapia pela fala, sob a influência de Freud e da fenomenologia. O sintoma era algo a ser decifrado e o ponto de partida de interrogar-se o que ocorria com o sujeito em sofrimento psíquico[10]. Freud ocupava-se com a causa dos sintomas[11], predominando a “importância da constituição e da hereditariedade sexual do paciente como fator etiológico”[12].

Todavia, como anota Bezerra[13], esse paradigma – tanto no que diz respeito à psiquiatria como a psicopatologia – mudou, especialmente sob a influência da psicofarmacologia. Houve, ainda, a crise da psiquiatria, entre os anos 1960 e 1970, em que cada psiquiatra diagnosticava de modo muito pessoal. Isso fazia com que a confiabilidade diagnóstica fosse muito baixa e dificultasse as pesquisas.

Portanto, não há como afastar, totalmente, a importância das classificações de transtornos mentais – tanto da CID quanto do DSM. A categorização permite com que os profissionais da saúde, falando a mesma língua, possam formar uma equipe mais eficaz no tratamento da pessoa em sofrimento psíquico. No entanto, não deve o diagnóstico capturar o sujeito nos róis objetivos dos sintomas, tampouco aprisioná-lo sob a rubrica de doente. Afinal, quem é o louco senão todo mundo visto bem de perto?[14]


Notas e Referências:

[1] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

[2] SERPA JUNIOR, Octavio Domont. A inclusão da subjetividade no ensino da psicopatologia. Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832007000200003>. Acesso em: 04 set. 2016.

[3] SERPA JUNIOR, Octavio Domont. A inclusão da subjetividade no ensino da psicopatologia. Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832007000200003>. Acesso em: 04 set. 2016.

[4] LAING, R. D. O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. Trad. Áurea Brito Weissenberg. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

[5] LAING, R. D. O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. Trad. Áurea Brito Weissenberg. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

[6] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

[7] DALGALARRONDO, Paulo; SANTOS, Silvia M. A.; ODA, Ana Maria R. A psiquiatria transcultural no Brasil: Rubim Pinho e as “psicoses” da cultura nacional. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000100015 >. Acesso em: 04 set. 2016.

[8] DALGALARRONDO, Paulo; SANTOS, Silvia M. A.; ODA, Ana Maria R. A psiquiatria transcultural no Brasil: Rubim Pinho e as “psicoses” da cultura nacional. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000100015 >. Acesso em: 04 set. 2016.

[9] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

[10] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

[11] BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1997

[12] BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1997p. 188

[13] BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

[14] VELOSO, Caetano. Vaca profana. Disponível em: < https://www.vagalume.com.br/caetano-veloso/vaca-profana.html >. Acesso em 04 set. 2016.

BERGERET, J. A personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 2007.

BEZERRA, Benilton. A história da psicopatologia no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r-XJtS0A1WQ. Acesso em: 23 jul. 2016.

BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

DALGALARRONDO, Paulo; SANTOS, Silvia M. A.; ODA, Ana Maria R. A psiquiatria transcultural no Brasil: Rubim Pinho e as “psicoses” da cultura nacional. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000100015 >. Acesso em: 04 set. 2016.

LAING, R. D. O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. Trad. Áurea Brito Weissenberg. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

SERPA JUNIOR, Octavio Domont. A inclusão da subjetividade no ensino da psicopatologia. Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832007000200003>. Acesso em: 04 set. 2016.

VELOSO, Caetano. Vaca profana. Disponível em: < https://www.vagalume.com.br/caetano-veloso/vaca-profana.html >. Acesso em 04 set. 2016.


Ana Luísa Schmidt Ramos Morais da Rosa. . Ana Luísa Schmidt Ramos é Juíza de Direito do TJSC, graduanda em Psicologia (UNISUL). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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