Controle judicial das políticas públicas de saúde. Um olhar para a legislação sanitária

19/08/2018

Coluna Advocacia Pública em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta Araújo

Surgiu no Brasil um fenômeno ordinariamente denominado de “judicialização da saúde”, por meio do qual milhares de indivíduos passaram a postular em juízo inúmeros tratamentos, sejam eles padronizados na rede pública e privada de saúde ou não.

Em princípio, pode-se dizer que tal ocorrência envolveu alguns elementos: 1) positivação na Constituição Federal de 1988, da saúde como um direito fundamental, em grande parte, materializado mediante prestações estatais, complementado pela assistência particular; 2) progressivo avanço das condições de vida da população, com uma crescente busca por meios de promoção e preservação da saúde; 3) insatisfação coletiva quanto à prestação estatal dos serviços de saúde, muitas vezes deficiente no nível básico; 4) evolução das ciências de saúde, com frequente inovação de meios de prevenção e combate a doenças, como também de prolongamento da vida humana; 5) impossibilidade do poder público ou da assistência privada oferecerem prontamente os novos tratamentos, em razão da necessidade de observância prévia do arcabouço normativo-sanitário para incorporação de tecnologias, ou mesmo, em razão da questão financeira.

Neste contexto, diversos pronunciamentos favoráveis emanaram da maioria dos órgãos do Sistema de Justiça, com evidente efeito multiplicador. Em linha gerais, defendeu-se prioridade do direito à vida, da dignidade da pessoa humana, proteção do mínimo existencial em detrimento de outros interesses, assim como a possibilidade de exame judicial dos equívocos e omissões das políticas de saúde[i].

O presente trabalho artigo tem por intuito adentrar no tema, no que diz respeito à parte pública da assistência à saúde, com algumas considerações sobre o controle das ações estatais.

Na maior parte das demandas, prevalece a ideia de um certo direito à saúde em sentido absoluto, que não comporta maiores restrições. Predomina também a ideia de que o fator econômico não tem a menor relevância para o deslinde da questão.

A despeito da necessidade de resposta do Poder Judiciário em cada processo, a solução não é simples e diversas dúvidas aparecem. Em muitas ocasiões a ação proposta envolve apenas um indivíduo, mas repercute em todo o sistema.

Basta imaginar um caso de medicamento não padronizado de alto custo, com apenas um ente público como réu, apesar das atribuições de competências prevista na lei federal n. 8.080/1990. Eventual acolhimento da pretensão significa, por vezes, a redução de verbas destinadas à realização de exames ou cirurgias eletivas de média e alta complexidade, com aumento da fila de espera de tais procedimentos.

O exemplo comporta outros aspectos. O produto existe no Brasil ou é importado? Se fabricado no país, já passou por análise da Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias, Conitec, conforme art. 19-R, da lei federal n. 8.080/1990? E se órgão federal rejeitou a inclusão do tratamento no SUS, existe falha ou omissão da política pública?

Em adendo, o art. 19-M e o art. 19-P do mesmo diploma exigem que a dispensação se dê em consonância com as diretrizes terapêuticas em protocolo clínico, ou na sua falta, com base na relação de insumos do SUS. Logo, a interpretação literal dos dois dispositivos indica a inexistência dever estatal de distribuição de produto de fora da rede pública.

Por outro lado, é plausível modificar a ilustração anterior para um quadro processual de tratamento padronizado sujeito à fila de espera. Porém, como adverte João Pedro Gebran Neto, nenhuma decisão que pretenda solucionar a demora, sob a perspectiva do direito individual e fundamental da saúde fará justiça para o caso concreto, quanto mais para a totalidade de pacientes que aguarda atendimento[ii].

Segundo Luciano Benetti Tim o que caracteriza um direito como social é sua não apropriação por um indivíduo, mas estar à disposição de toda a sociedade. O direito de um indivíduo, contra todos da sociedade, de obter um medicamento que poderá provocar o fechamento de um ponto de saúde não é um direito social ou coletivo, mas individual[iii].

Além disso, quando o direito à saúde envolve o fornecimento de alguma prestação material por parte do poder público, parece inegável o desafio da escassez em menor ou maior grau e a utilização de recursos para a implementação de políticas de saúde acessíveis a todos. E o desenvolvimento de novos serviços também depende da alocação de recursos e a aferição das disponibilidades orçamentárias.

Em verdade, um aprofundamento do assunto denota que o panorama da assistência à saúde é extremamente complexo e vai muito além de uma mera opção administrativa do gestor de não entregar um recurso terapêutico a alguém.

No intuito de se ampliar o debate e fomentar novas construções sobre a matéria, ressalta-se que a legislação infraconstitucional sanitária brasileira apresenta outros elementos importantes sobre o funcionamento da assistência à saúde no campo estatal.

Os artigos 14-A e 15 da Lei Federal n. 8.080/1990 impõem às três esferas da federação o dever de elaboração e atualização periódica de um plano de saúde, aprovados por conselhos de saúde. 

Assim, cada ente deve regularmente produzir diagnósticos sobre a assistência à saúde em sua esfera de competência, com: 1) a coleta de dados sobre os desafios detectados no seu limite territorial (sondagem da realidade, urgências, tendências e necessidades); 2) a verificação de meios e recursos essenciais para enfrentar as questões e alcançar os objetivos desejados em prazos determinados; 3) seleção das melhores opções para cada problema; 4) atuação propriamente dita; 5) avaliação de todo o processo, por meio diferentes modos de controle, inclusive social.

E, para que não haja dúvidas sobre a importância também do aspecto financeiro, o inciso X do art. 15 da mesma lei federal, dispõe que a elaboração da proposta orçamentária do Sistema Único de Saúde (SUS), deve se conformar com o plano de saúde.

Noutras palavras, a legislação federal estabelece que a atuação estatal na assistência à saúde se desenvolva com planejamento, ou seja, atuação organizada para produzir decisões e boas ações[iv].

Em termos práticos, os entes produzem um plano de saúde que serve de base para um quadriênio, subdividido por programações anuais de saúde, PAS, com a definição dos desafios e soluções trabalhados pela administração respectiva no período[v].

No âmbito federal, o Plano Nacional de Saúde, PNS, com vigência entre 2016 e 2019, contém uma detalhada descrição de aspectos da saúde da população brasileira e aborda os programas, objetivos ou metas de atuação, com o escopo de fortalecer o direito fundamental à saúde[vi].

Por sua vez, os Estados e Municípios também redigem seu projeto com vigência similar à do plano nacional.

Exemplificativamente, o Estado de Santa Catarina se valeu da convocação de Grupo de Trabalho para avaliar as condições de saúde do povo catarinense, as condições da gestão, definir os problemas prioritários a enfrentar, e publicar o Plano Estadual de Saúde, em vigor entre 2016-2019[vii].

Depreende-se do documento o objetivo de se ampliar as estruturas de saúde bucal de média e alta complexidade, incrementar a oferta de órteses, próteses e medicamentos, melhorar o tratamento das hepatites, aumentar a cura de tuberculose pulmonar etc.[viii]

O percurso pelo conteúdo do plano incute no leitor a convicção de que os envolvidos na confecção do texto, e a própria administração pública, efetivamente perseguem a materialização do direito à saúde para toda a coletividade; com uma lógica coerente de prioridades.

Na sequência, cumpre realçar as diretrizes contidas no Plano de Saúde se submetem a diversos tipos de controle, além do judicial.

No setor estatal, menciona-se o Sistema Nacional de Auditoria, SNA, criado pela lei federal n. 8.689/1993, que analisa a execução, a estrutura, os processos aplicados, aplicação dos recursos, e os resultados alcançados pela atuação da administração pública em prol da saúde [ix].

O SNA corresponde a um conjunto de órgãos, instituídos nas três unidades federativas e coordenados pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS, Denasus. Tem por escopo de fiscalizar a alocação de verbas públicas, assim como a prestação do serviço de saúde, e ainda, pode propor a correção de impropriedades no gerenciamento do sistema, por meio do Termo de Ajuste Sanitário[x]

De outro vértice, faz-se necessário salientar o controle social, por meio de Conferências de Saúde e, especialmente, por Conselhos de Saúde em cada instância da federação.

Em regra, diferentes setores da sociedade, inclusive categorias previamente determinadas como entidades indígenas, associação de pessoas com deficiência, organização de moradores, dentre outras, integram os conselhos, ao lado de gestores e profissionais do SUS.

Seu papel merece relevo porquanto perfectibiliza a participação popular no acompanhamento e na elaboração das políticas públicas, nos moldes da Lei Federal n. 8.142/1990 e, principalmente, porque o ente público respectivo tem o dever de atender às deliberações do órgão colegiado.

Então, o conselho representa um espaço para a população apresentar suas queixas ou formular denúncias, ou cobrar medidas dos serviços de saúde, numa espécie de canal entre a sociedade, administração, e demais instituições fiscalizadoras do poder público.

Esta breve descrição sobre o proceder estatal na área da assistência à saúde por meio dos planos nacionais, estaduais e municipais, e a sucinta apresentação de duas formas de controle da gestão do SUS, não significa que tais fórmulas estejam isentas de desafios. É certo que todas elas enfrentam algum tipo de dificuldade.

No entanto, sua percepção como aspectos fundamentais do Sistema Único de Saúde criado pela Constituição Federal de 1988 e pela lei federal n. 8.080/1990, evidenciam que o serviço estatal de saúde se move (ou deve funcionar) com prioridade, perspectiva e planejamento. Inclusive, na integração entre as finanças disponíveis e os principais problemas a sanar.

Se surge uma intervenção jurisdicional com a determinação de fornecimento de um tratamento não padronizado no SUS e, por conseguinte, não previsto no plano ou na programação anual, as medidas anteriormente estabelecidas pela gestão terminam por mudar, uma vez que o orçamento da saúde é o mesmo.

Não é que que o planejamento seja imutável ou rígido, mas quando as condições financeiras permanecem iguais e sobrevém uma nova ordem de tratamento das questões, o administrador precisa lidar com um conflito de problemas e realocar os recursos, de acordo com a urgência.

Diante deste cenário, faz-se premente uma maior publicidade dos planos de saúde, dos roteiros traçados pelos entes públicos para lidar com os desafios constatados, das suas relações com o orçamento, além do Sistema Nacional de Auditoria.

A assimilação de tais aspectos pelo Sistema Justiça, aliada a uma maior interlocução entre Conselhos de Saúde, sociedade e a administração pública, possibilitam uma melhor compreensão coletiva sobre o cumprimento das leis sanitárias no Brasil. Ainda, representam uma possibilidade de construção de um novo diálogo em busca do progresso da assistência estatal à saúde.

Por último, se não há dúvidas acerca da ocorrência de variadas falhas no SUS, motivo de insatisfação popular e objeto de controle jurisdicional, também é preciso reconhecer que muitas vezes a ideia de omissão e desarranjo do serviço de saúde tem seus equívocos.

 

Notas e Referências

[i] Por exemplo, o julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça: REsp 1657156/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 04/05/2018.

[ii] GEBRAN NETO, João Pedro; SCHULZE, Clenio. Direito à saúde análise à luz da judicialização. Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2015, p. 153.

[iii] TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de diretio e economia? In: SARLET, Ingo Wolgang; TIMM, Luciano Benetti; BARCELLOS, Ana Paula de (org.). Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 61.

[iv] Frisa-se que o inciso XVIII do art. 15 da Lei do SUS, preconiza a articulação da política e dos planos de saúde de cada ente.

[v] Conforme Portaria Nº 2.135/2013, do Ministério da Saúde.

[vi] Disponível em http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2016/docs/planonacionalsaude_2016_2019.pdf Acesso em 09.08.2018.

[vii] Disponível em http://portalses.saude.sc.gov.br/index.php?option=com_docman&Itemid=251 Acesso em 02.08.2018.

[viii] Idem, p. 253.

[ix] Disponível em http://portalms.saude.gov.br/participacao-e-controle-social/auditoria-do-sus/sistema-nacional-de-auditoria Acesso em 07.08.2018.

[x] Conforme Portaria n. 2.046/2009, do Ministério da Saúde. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt2046_03_09_2009.html Acesso em 11.08.2018.

 

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