Coluna Espaço do Estudante
O judiciário brasileiro vem enfrentando uma série de conflitos entre usuários de plataformas que realizam a intermediação dos chamados contratos de short-term rental[1], que contam com expressiva oferta em nível global e são responsáveis por intermediar o contato entre desconhecidos – de um lado, o anfitrião, aquele que oferece um imóvel; de outro, quem busca um lugar para ficar por período determinado, a trabalho ou lazer.
Um dos principais debates decorrentes da temática citada trata da (im)possibilidade de se vedar a disponibilização, por meio dessas plataformas, de imóveis localizados em condomínio residenciais, ou, mais especificamente, se seria possível que a convenção de condomínio proibisse tal a oferta dos imóveis. O julgamento do Recurso Especial n.º 1.819.075/RS, que se debruça sobre o tema, aguarda seguimento Superior Tribunal de Justiça[2]. Contudo, em meio à pandemia e ao cenário legislativo que se vislumbra, surgem novas controvérsias de ordem imediata: ante as restrições de circulação e orientações de distanciamento social, os serviços ofertados por tais plataformas, incluindo anúncios e reservas porventura já efetuadas, devem ser suspensos?
Em que pese essas questões estejam, em alguma medida, sujeitas aos desdobramentos do referido debate junto ao STJ, é necessário reconhecer que não há tempo para aguardar essas respostas, especialmente ante a insegurança jurídica em razão das milhares de regulamentações estaduais e municipais espalhadas pelo Brasil, com as mais variadas normas de enfretamento ao COVID-19[3] - e com impacto direto, por certo, na utilização de serviços de intermediação dos ditos contratos de short-term rental. Para tornar mais factível a análise que ora se propõe, vale mencionar recente caso oriundo da Comarca de Gramado, no Rio Grande do Sul.
Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Município de Gramado em face de uma das plataformas que presta o serviço mencionado (Processo n.º 5000595-42.2020.8.21.0101, em trâmite perante a 2ª Vara Judicial da Comarca de Gramado) visando, em sede de tutela provisória de urgência, à obtenção de medida liminar para fins de suspensão dos anúncios da plataforma, assim como o cancelamento de reservas já efetuadas .
A liminar foi concedida inaudita altera parte, isso é, sem que até o momento tenha havido a citação da plataforma Requerida. Considerando que debates similares devem se replicar em todo o território brasileiro, mostra-se relevante a análise dos principais fundamentos da decisão.
A fundamentação traz atos normativos editados por todas as esferas estatais (União, Estado e Município) visando ao enfrentamento da pandemia do coronavírus. Nesse sentido, insta salientar a referência ao Decreto Federal n.º 10.282/2020 (por erro material, acredita-se, citado como de n.º 10.828/2020), que delimitou os serviços públicos e atividades essenciais de que trata a Lei Federal n.º 13.979/2020, a respeito das medidas nacionais de enfrentamento da pandemia.
De forma acertada, a decisão destaca que a atividade de hospedagem não está contemplada no rol taxativo do art. 3º do aludido Decreto Federal, afastando o seu caráter de essencialidade e possibilitando, portanto, a sua limitação. É aqui que se encontra o ponto fundamental da discussão em pauta, e que remete à questão pendente junto ao STJ: afinal, o serviço prestado por tais plataformas caracteriza hospedagem? A resposta que se desenha na corte superior parece ser negativa, considerando a ampla distinção elaborada pelo Relator, Min. Luis Felipe Salomão, no voto que inaugurou o julgamento.
No específico caso do município de Gramado, entretanto, essa conceituação sequer se fez necessária, vez que a decisão igualmente se baseou nos Decretos Municipais n.º 73/2020 e n.º 90/2020, que trataram de vedar expressamente, em razão da pandemia, atividades de estabelecimentos de hospedagem transitória, inclusive na modalidade de aluguel por temporada (art. 2º, inciso XXVIII do Decreto n.º 73/2020 e art. 6º, § 2º, inciso I, do Decreto 90/2020, respectivamente).
Isso é, fosse como serviço de hospedagem, fosse como locação por temporada, as atividades desses intermediadores no município de Gramado deveriam ser suspensas – e foi o que ocorreu: em consonância com a legislação até então vigente e considerando preenchidos os requisitos para tanto, o Juízo de primeira instância concedeu a tutela de urgência pleiteada.
Todavia, em 06/05/2020, um dia após deferido o pedido liminar, esse cenário jurídico, que ante a amplitude dos Decretos Municipais (que abarcavam as duas possíveis naturezas do serviço) parecia não deixar dúvidas quanto à possibilidade de suspensão das atividades, sofreu uma reviravolta a partir da publicação do Decreto Municipal n.º 103/2020. Explica-se.
A nova regulamentação municipal acabou por condicionar a suspensão dos serviços a sua natureza (se de hospedagem ou locação por temporada), permitindo a retomada das atividades do ramo hoteleiro (art. 6º, § 2º), inclusive de hostels e albergues (art. 6º, §2º, II), mas expressamente proibindo “atividades de hospedagem transitória na modalidade de aluguel por temporada” (art. 6-A). Nesse novo cenário, caberia ao Juízo a interpretação quando à natureza jurídica dos contratos de short-term rental, para então verificar sua vedação (ou não) pelo Decreto Municipal n.º 103/2020.
Ademais, vale ressaltar que a própria literalidade do texto adotado pelo mais recente decreto de Gramado deixa dúvidas conceituais ao adotar o termo “atividades de hospedagem transitória na modalidade de aluguel por temporada” (art. 6-A, Decreto n.º 103/2020). Pela disposição normativa, o aluguel por temporada seria uma espécie do gênero hospedagem transitória, contrariando frontalmente as definições doutrinárias e jurisprudenciais, uníssonas em relação à distinção entre hospedagem e locação por temporada. Ou seja, há evidente confusão conceitual.
Todavia, de volta ao caso concreto, desconsiderando, por ora as incoerências técnico-jurídicas do dispositivo citado, necessário destacar que a liminar concedida ao Município teve seus efeitos removidos pela atribuição de efeito suspensivo ao Agravo Instrumento interposto pela plataforma requerida (Processo n.º 5016417-35.2020.8.21.7000, de competência da 4º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul).
Entretanto, a decisão que deferiu o efeito suspensivo pleiteado não fulmina a controvérsia decorrente da natureza dos contratos de short-term rental. Quando da análise do mérito, caso o Juízo considere que a atividade se distingue do serviço de hospedagem, aproximando-se de uma locação por temporada, como defende o Min. Salomão, haverá vedação expressa ao serviço, permitindo a suspensão determinada anteriormente. Contudo, caso a interpretação seja oposta, como se o serviço de hospedagem fosse, em consonância com o posicionamento majoritário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[4], poderá ser descartada a suspensão dos anúncios e da atividade da plataforma, inclusive para evitar eventual conflito concorrencial em relação a estabelecimentos de hotelaria.
A controvérsia segue, e assim será até a conclusão do paradigmático julgamento do REsp n.º 1819075/RS. A discussão é complexa pois, assim como se pode considerar a locação por temporada de “alta rotatividade”[5], um contrato de hospedagem atípico pode se caracterizar pela exploração de imóvel para fins de habitação temporária[6]. Ambas as características – alta rotatividade e habitação temporária – são aplicáveis à proposta das plataformas que realizam a intermediação dos contratos de short-term rental.
Assim, ao menos por enquanto, os temas voltados ao enfrentamento da pandemia – que, reitera-se, não podem se dar ao luxo de aguardar a decisão da corte superior – , ficarão condicionados à interpretação de cada Juízo, quando da análise normativa in casu, restando a efetiva regulamentação legislativa, abarcando as duas teorias sobre a natureza do serviço da plataforma, como a única forma de conferir real segurança jurídica ao cumprimento das medidas protetivas adotadas pelo legislador, sejam essas de vedação ou não.
Notas e Referências
[1] O termo contrato de short-term rental foi escolhido para evitar a utilização de conceito jurídico, tipificado pela legislação brasileira, incorreto, uma vez que há controvérsia sobre a natureza dos referidos acordos – enquanto uma corrente sustenta que se assemelham à contratos de locação por temporada, a outra sustenta que possuem mais semelhanças com contratos de hospedagem.
[2] O julgamento do REsp n.º 1.819.075/RS teve início em outubro de 2019, com o voto do relator, Min. Luis Felipe Salomão, pela impossibilidade de atividades locatícias serem limitadas pelo condomínio residencial, em razão de que os contratos decorrentes do serviço prestado pelas plataformas de intermediação não estaria incluído no conceito de hospedagem, mas de locação por temporada (art. 48 da Lei do Inquilinato). O julgamento restou suspenso em razão de pedido de vista pelo Min. Raul Araújo, não tendo sido retomado até esta data. Mais informações: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Relator-vota-pela impossibilidade-de-que-condominios-proibam-locacoes-de-curta-temporada-via-Airbnb.aspx>. Acesso em: 17 mai. 2020.
[3] O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão monocrática proferida pelo Min. Marco Aurélio de Mello por oportunidade do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 6.341/DF, reconheceu a legitimidade concorrente dos entes federativos para dispor sobre medidas que tratem do enfrentamento ao coronavírus. Mais informações em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447>. Acesso em: 07 mai. 2020.
[4] Agravo de Instrumento, Nº 70080122955, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Giovanni Conti, Julgado em: 23-05-2019 e Apelação Cível. Nº 70075939884, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em: 26-07-2018
[5] SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato comentada artigo por artigo. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 220.
[6] VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada, doutrina e prática, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 18.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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