A advocacia empresarial convive com o tema “fomento mercantil”, em pelo menos três perspectivas: criar estruturas jurídicas para atividades de fomento; dar apoio ao empresário em crise ou que necessite de capital para impulsionar os seus negócios; e criar os instrumentos jurídicos, contendo cláusulas que assegurem a exequibilidade do pacto de parte a parte, sem descuidar da correta regulação sobre ônus, deveres, contraprestações, além da avaliação dos custos de transação e das consequências do inadimplemento.
Os serviços de faturização, na sua relação originária, encaixam-se dentro da concepção dada aos “contratos interempresariais”, considerando-se os sujeitos (Empresários). O contrato também é designado de factoring ou de fomento mercantil, e não está atrelado a uma instituição financeira, portanto, não se trata de um contrato bancário. Assim, factoring, faturização e fomento mercantil, possuem o mesmo significado.
A atividade de fomento decorrente da faturização não é regulada pelo Banco Central, pois é livre e pode ser exercida por empresa que tenha em seu objeto o acompanhamento de processo produtivo ou mercadológico, o acompanhamento de contas a receber e pagar e a seleção e avaliação de clientes, devedores ou fornecedores. Esse é o contexto do contrato de fomento, apresentado no Projeto de Lei n. 13/2007, que inspirou, após o exame de vários conceitos, a seguinte concepção dada por Ricardo Negrão: contrato não privativo de instituição financeira pelo qual aquele que exerce atividade econômica de forma organizada cede, em todo ou em parte, a título oneroso, os direitos creditícios decorrentes de sua atividade a empresa regularmente registrada no Conselho Regional de Administração, apta a lhe prestar, de forma cumulativa e contínua, serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos e administração de contas a pagar e a receber.[i]
Percebe-se o cuidado do autor ao mencionar a necessidade de inscrição, pela empresa de fomento, no CRA (Conselho Regional de Administração), pois considera que a gestão de carteiras e de atividades vinculadas a faturização, dependem de profissional habilitado para tais tarefas.
O STJ consolidou o entendimento acima. Confira-se:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO (...).
EMPRESA DE FACTORING. REGISTRO NO CONSELHO REGIONAL DE ADMINISTRAÇÃO (...) 4. As empresas que se dedicam à atividade de factoring estão sujeitas a registro no Conselho Regional de Administração. Precedentes da Segunda Turma: REsp 497.882/SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 24.05.07; AgRg no Ag 1252692/SC, de minha relatoria, DJe 26/03/2010; REsp 1013310/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 24/03/2009; REsp 874.186/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 21/10/2008; e REsp 638.396/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 24/09/2008.
- Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no REsp 1236002/ES, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/04/2012, DJe 04/05/2012).
Neste contexto, o presente texto abrange o entendimento sobre o objeto, os sujeitos, à prática comercial e a importância para a economia brasileira.
O objeto do contrato de faturização envolve “a venda do faturamento de uma empresa para a outra, que incumbe de cobrá-la, recebendo uma comissão ou juros (...). Assim, factoring é a compra de direitos creditórios (faturamento) resultante de vendas mercantis (e de consumo) ou de prestação de serviços a prazo”[ii].
Como visto, a faturização envolve a transferência de créditos, e essa transferência ocorre por endosso ou cessão de crédito. Endosso para os títulos endossáveis, a exemplo do cheque, da nota promissória e da duplicata, ou pelo contrato de cessão de créditos, quando os títulos não guardarem autonomia ou forem objeto de contratos específicos[iii].
A doutrina e a prática apontam para algumas cláusulas especiais derivadas desta modalidade contratual, destacando-se: “a) a exclusividade ou a totalidade das contas do faturizado; b) duração do contrato; c) faculdade de o faturizador escolher as contas que deseja garantir; d) liquidação do crédito; e) cessão dos créditos; f) assunção dos riscos pelo faturizador; g) remuneração do contrato”[iv]. Observe-se, assim, que a empresa de faturização (faturizador) gerencia a carteira de créditos, antecipa ou paga no vencimento os títulos objeto do pacto e assume os riscos de inadimplência do devedor/sacado. Por sua vez, o faturizado além de prestar as informações sobre os créditos e sobre os documentos de lastro, paga pela contraprestação devida (juros/comissão).
Disso derivam, duas espécies de faturização, a saber: a) Maturity factoring espécie contratual pela qual a empresa faturizadora faz a gestão dos créditos do faturizado, cobra o devedor/sacado, mas não antecipa os pagamentos, apenas os realiza na data de vencimento, uma espécie de terceirização da cobrança (contas a receber); b) Conventional factoring espécie contratual onde há, de igual forma, negociação dos créditos e a cobrança deles pelo faturizador contra o sacado/devedor, todavia, nesta modalidade o faturizador adianta o valor desses créditos à faturizada[v].
É importante observar, que o contrato de faturização não se confunde com o contrato de antecipação de recebíveis disponibilizado pelos bancos, pois nesta hipótese os bancos antecipam com deságio/juros, mas não assumem o risco que as faturizadoras assumem com o contrato de faturização, especial característica do contrato aqui estudado, que justificaria, em tese, maior remuneração (o que não significa abusiva) e desde que, de fato, a faturizadora assuma integralmente o risco do negócio.
Os sujeitos dessa relação jurídica envolvem três pontas, a saber: o centro gira em torno do empresário (faturizado), ou seja, aquele que detém originariamente os créditos e os transfere para outro empresário (faturizador), cujos créditos derivam do devedor/sacado (aquele que tem a relação originária com o faturizador). Em suma, tem-se o faturizado (o que transfere), o faturizador (o que recepciona os títulos) e o devedor/sacado (cliente do faturizado).
A prática empresarial/comercial tem repercussão jurídica. A contraprestação recebida pelo faturizador diz respeito ao juros, estes limitados a 1% ao mês, pois a empresa de faturização não é instituição financeira e, portanto, sofre com a limitação constitucional de juros. Também a título de contraprestação, além dos juros e da atualização monetária pelos índices oficiais, a empresa de faturização recebe certa quantia a título de comissão, em um mercado livre, e eventual abusividade pode comportar revisão pelo judiciário ou pela jurisdição arbitral, a depender do foro eleito.
Em determinadas situações, além da revisão, outras construções contratuais podem estar em desacordo com a natureza jurídica do contrato de faturização, pois eventual supressão dos riscos do faturizador retira força do pacto, pois cabe a ele, que recebe comissão e juros, suportar o risco de inadimplência do sacado/devedor.
Como visto, a caracterização do contrato de faturização tem importância prática. Isto porque, os contratos desta natureza não podem ter cláusula de garantia contra o cedente dos respectivos créditos (faturizado), pois nos contratos de fomento o risco de inadimplência pelos títulos contratados fica a encargo da empresa faturizadora, salvo no caso de existência de algum vício de nulidade nos respectivos títulos, a exemplo da simulação ou fraude, determinantes da perda da higidez.
Nesse sentido decidiu recentemente o STJ. Confira-se a ementa:
AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. NOTA PROMISSÓRIA. AVAL. CONTRATO DE FACTORING. CLÁUSULA DE REGRESSO.
NULIDADE.
- São nulas as disposições contratuais no sentido de estabelecer garantia em favor da empresa de factoring acerca do adimplemento dos títulos cedidos pela faturizada. Precedentes. Súmula 83/STJ.
- "A emissão de notas promissórias como instrumento de garantia pro solvendo em contrato de factoring torna esses títulos inexigíveis em face do devedor principal e do avalista, pois objetiva desvituar a natureza do contrato de faturização, no qual o faturizador deve assumir os riscos pela inadimplência dos títulos contratados" (AgInt no AREsp 862.232/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 02/09/2019, DJe 06/09/2019).
- Agravo interno não provido[vi].
No corpo do v. acórdão, o Insigne Relator faz menção ao seguinte trecho advindo do Tribunal de origem, a saber: “(...) E sei o que preconiza o art. 296 do Código Civil (‘Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor’). Todavia, na esteira dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de se considerar que a existência de cláusula "pro solvendo" em contratos de "factoring" são nulas, na medida em que acarretam onerosidade excessiva ao cessionário que se vê obrigado a garantir o pagamento dos títulos descontados, apesar de alta remuneração ou comissão já exigida pelo tomador”[vii].
Percebe-se, por um lado, a nulidade da cláusula de garantia, conforme o julgado. Por outro lado, cabe ressalvar que a responsabilidade do cedente/faturizado permanece em relação a higidez dos títulos transferidos, ou seja, quanto a sua validade. A título de exemplo, o faturizado responde pelo título emitido sem causa, pois, infelizmente, ainda se vê a emissão, indevida e inadvertidamente, de duplicatas frias (sem origem), na tentativa (sempre frustrada) de preservar o caixa ou o capital de giro, hipótese em que, responde pelos problemas decorrentes, podendo a empresa faturizadora regressar contra o faturizado.
Como visto, o contrato de faturização encontra espaço no mercado brasileiro, e representa importância para o desenvolvimento do País, na medida em que torna os ativos empresariais, aqui relacionados aos créditos, suscetíveis de recebimento garantido pelo faturizado, mediante remuneração (comissão) e juros, com o consequente impulsionamento das atividades econômicas a partir da empresa.
Notas e Referências
[i] NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 386.
[ii] TEIXEIRA, Tarcisio. Direito empresarial sistematizado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 344.
[iii] TEIXEIRA, Tarcisio. Direito empresarial sistematizado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 344.
[iv] NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 388.
[v] TEIXEIRA, Tarcisio. Direito empresarial sistematizado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 346.
[vi] AgInt nos EDcl no REsp 1761098/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 10/03/2020.
[vii] AgInt nos EDcl no REsp 1761098/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 10/03/2020.
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