Constituição, zika, aborto, hipocrisia e falsidade – Por Léo Rosa de Andrade

17/02/2016

As coisas não naturais têm ideologia por trás delas. As palavras, inclusive. Como nascemos em um mundo natural e historicamente dado, confundimos o mundo historicamente dado com o mundo naturalmente dado. Assim, o mundo que “está” é visto como o mundo que “é”.

Mas, não. O mundo se move: a natureza aos poucos, com quase imperceptíveis movimentos. A História já se moveu com mais vagar (durante a Idade Média, sob controle da igreja católica, quase parou). Atualmente é mais acelerada, em face do que os conservadores vivem em ânsias de reação.

Mas é coisa dos tempos. Hoje somos outras hipóteses além do pensamento religioso. Somos coisas variadas. Volto à questão da ideologia subjacente à compreensão de tudo. Desenvolvo a questão das palavras. Observo como uma pessoa é designada conforme a ideologia de quem o faça.

Um político, se republicano, vê a pessoa como cidadão; em monarquias a pessoa é súdita. O religioso a vê como criatura; seria obra de um criador. Um darwinista a compreende como organismo em evolução. Na linguagem policial, que indetermina mais do que particulariza, a pessoa é elemento.

Há mais a observar: em tempos de personalidades, a humanidade é a soma de indivíduos. Quando a humanidade se dissolve em sociedade de massas, a pessoa se dissipa na multidão. A multidão é objeto de mercados que constituem pessoas como potenciais consumidores. O consumidor individualizado é cliente.

Não faz muito, a humanidade inventou as pessoas constitucionais. Com o advento do liberalismo, muito do poder pessoal foi abstraído de quem o detinha na forma de força fática e transferido para códigos formais. As primeiras constituições visavam garantir as relações jurídicas e a proteção do indivíduo.

De toda sorte, ao estabelecer regras em códigos formais, principiou-se a organizar o poder, a limitar o poderoso que estivesse governando, a permitir que a Sociedade se organizasse e avançasse em conquistas de direitos. Esses direitos passaram a ser afiançados por declarações constitucionais.

Assim como se concebeu a democracia, o liberalismo, o socialismo e outras maneiras de arranjar a convivência através dos tempos, idealizou-se o constitucionalismo, um modo de organizar a vida em que as regras máximas do convencionado estão no topo de uma pirâmide de códigos, seja, na Constituição.

A constituição deve ser estável e a sua guarda confiada a uma corte que terá a última palavra sobre a interpretação do seu texto. A corte guardiã da constituição brasileira é o Supremo Tribunal Federal. As questões de relevância constitucional de qualquer fundo ideológico são válidas ou não conforme a pronúncia do STF.

O Brasil está com uma doença alastrante transmitida por um mosquito que se reproduz onde há descuidos e descuidados. Ela atinge, sobretudo, os mais pobres das cidades mais pobres da região mais pobre do País. A ONU diz que defender direitos das mulheres é essencial para a resposta ao zika e à microcefalia.

O alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein  afirmou que as leis e políticas que restringem o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva contrárias às normas internacionais devem ser revogadas (http://migre.me/sYU5w) (é de saber: acordos internacionais ratificados pelo Brasil têm força constitucional).

Zeid pediu ainda a liberação do aborto e dos contraceptivos nos países mais atingidos pela epidemia de zika, que pode provocar a má-formação congênita em bebês em caso de contaminação por mulheres grávidas (http://migre.me/sYU9j). Claro, essa posição rebuliçou os crentes das ideologias religiosas.

Juristas que leem a questão como se mulheres fossem pessoas jurídicas ficam nas firulas interpretativas típicas da lei ordinária. Então, advogam contra o direito à interrupção da gravidez no caso de contaminação por zika, afirmando que a decisão do STF sobre aborto de anencéfalo não se aplica a feto com microcefalia.

Mas a mulher é pessoa constitucional, portanto o dano material à saúde da gestante, como também o moral que afetaria a sua saúde mental, devem basear a interpretação do conceito de dano à mulher, uma das hipóteses de aborto legal, defende Marco Aurélio, ministro do STF (http://migre.me/sYUKe).

Drauzio Varella, sensível e conhecendo as coisas da realidade, critica a interferência de religiosos no tema e destaca que a questão é ligada à desigualdade social: Tendo-se dinheiro faz-se aborto; o resto é hipocrisia e falsidade (http://migre.me/sYUTS). Marco Aurélio tem razão legal e Drauzio tem razão ética. Fico com eles.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Marcha das Vadias // Foto de: upslon // Sem alterações

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