Coluna Por Supuesto
Há no Brasil um debate técnico público sobre a autonomia do Banco Central, a definição de metas de inflação pelo Conselho Monetário Nacional, a dívida pública, os juros, o modelo de desenvolvimento e em geral sobre a regulação da economia e das finanças.
Para alguns comentaristas, este debate é exclusivamente nessas áreas. Uma questão económico- financeira, própria de segmentos especializados da sociedade. Por outras palavras, um debate técnico, mas nem tão público assim. Nas entrelinhas, parte dessa premissa reside na sublimação do mercado como motor da economia, sujeito a suas próprias leis e completamente inatingível por diretrizes jurídicas, muito menos pelas constitucionais.
Por outro lado, para algumas vozes do mundo jurídico, a Constituição de 1988 fala demais, e ao expor sua opinião especialmente fazem menção àquilo que a Carta menciona na ordem econômica. Ou seja, a economia nacional, o Banco Central – BC- e outras instituições como o Conselho de Política Monetária – COPOM - estão – ou deveriam estar - fora da órbita constitucional. Outros se queixam, estes mais recentemente, de nunca terem visto tanta “emenda constitucional fiscal”.
Sempre ousei discordar de tais entendimentos. Uma das questões mais preocupantes em qualquer sociedade organizada consiste em estabelecer um modelo de produção, desenvolvimento e distribuição da riqueza. Isso se verifica tanto naquelas capitaneadas pelos Estados chamados “centrais”, cujos governos ostentam a possibilidade de decidir sobre uma boa parte dos rumos da economia global, bem como aquelas de Estados “periféricos”, que comumente suportam as maiores crises do sistema produtivo internacionalmente imposto. É nestes Estados, como o Brasil, que os pobres são mais vulneráveis e afetados pelo aumento dos preços, gastando a maior parte dos seus precários ingressos com sua alimentação e da sua família.
É indubitável que a questão da distribuição da riqueza está diretamente ligada ao modelo de Estado e à normatividade jurídica económica e financeira. A precarização salarial está diretamente relacionada com os ataques neoliberais ao Estado de bem-estar e ao pacto keynesiano, preocupados com a efetividade dos direitos sociais. Como mencionam vários autores da contemporânea teoria econômica, tudo começa com Hayek e as ideias de Shumpeter, que afirmam a necessidade de resgatar os princípios do capitalismo, como “o excedente empresarial” e o “ambiente favorável aos grandes empresários”, bem como a necessidade de que um país em desenvolvimento tenha “credibilidade” no cenário das finanças internacionais para que possa obter recursos das entidades internacionais de crédito.
Desde logo, tampouco hoje há como negar, até porque autores celebrados como Piketty também já o expressaram sutil ou abertamente, as privatizações, em lugar de se tornarem incentivadoras de distribuição da riqueza, na verdade foram o mecanismo para transferir ativos públicos a riquezas privadas, aumentando a concentração de poder econômico em alguns poucos. Davos 2023 atesta isso, como já mencionamos em outra coluna.
No Brasil, como em outros lugares da América Latina, a Constituição determina as diretrizes mais relevantes em termos de organização econômica. Assim, a Carta de 1988, no Título VII, ao abordar a “Ordem Econômica e Financeira”, mas precisamente no artigo 170, expõe os princípios gerais da atividade econômica.
O artigo não é dos mais simples de interpretar. Exige certo esforço hermenêutico, caso a caso, situação a situação porque estabelece um equilíbrio bastante difícil na prática. Diz o artigo 170, que a ordem econômica é fundada na “valorização do trabalho humano” e de imediato coloca também a “livre iniciativa”. A finalidade da ordem económica consiste em “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e logo estabelece um conjunto principiológico entre os que se destacam, a soberania nacional, a propriedade privada e a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca de pleno emprego e o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Questão importante consiste em examinar as funções do BC, que está inserido no capítulo II – Das Finanças Públicas – do Título VI da Carta – Da Tributação e do Orçamento -. Conforme o artigo 164 da Constituição compete ao BC emitir moeda, concretizando a competência exclusiva da União estampada no artigo 21, VII. Também, nos termos do §3º, a disponibilidade de caixa da União é depositada no Banco Central.
Nos termos do artigo 164-A acrescentado pela EC 109 de 2021, a União e os demais entes federativos devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis.
É singela a compreensão de que a dívida pública é aquela feita pelo Estado com entidades financeiras, seja externa ou interna, regularmente para cobrir o déficit fiscal e impedir a paralisia de uma finalidade pública. A questão da sustentabilidade da dívida também é matéria constitucional, inserida pela mesma EC no inciso VIII do artigo 163.
Destarte, Lei complementar – hoje a LC 101 de 4 de maio de 2000 – deve especificar o tema, isto é, da sustentabilidade da dívida, especificando: “indicadores de sua apuração, níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida, trajetória d convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação, medidas de ajuste, suspensões e vedações e o planejamento de alienação de ativos com vistas á redução do montante da dívida”.
O importante, contudo, é entender que em toda esta lógica não se parte de um modelo que traduza a igualdade. Há quem considere que ainda estamos nos tempos de Adam Smith, e coloquem, como o faz Deirdre McCloskey, que o Estado deve garantir igualdade e a liberdade sem restrições para todos produzir e porque quem mais se esforça, atingirá um lugar mais elevado na escala social. Para quem interpreta de forma tão “propositadamente e supostamente ingênua” não há espaços para a cidadania econômica, nem muito menos para a política. Por outro lado, o pensamento reproduz a “estratificação” própria da crueldade do sistema de castas.
Nessa ótica, escutamos e lemos nos jornais questões como as seguintes: os choques inflacionários decorreram da pandemia ou da Guerra da Ucrânia. A impressão é que são esporádicos ou excepcionais. O que se oculta é a crise estrutural do sistema e sua necessidade de a través da guerra iniciar uma nova etapa de desenvolvimento com maiores graus de detrimento da dignidade.
A Constituição não se posiciona de maneira neutra. Ela apresenta finalidades concretas no artigo 3º e se compromete com a garantia de existência digna, e isso significa, sem tanto discurso, aumentar o nível de compra da população brasileira.
Para quem trabalho respirando, se alimentando e dormindo com o mercado, qualquer alteração que reduza a oferta de bens e serviços desorganiza os padrões de consumo, entra em crise e dispara para todos os lados possíveis, defendendo sua parcela de poder.
Um novo marco fiscal, progressivo e eficiente e uma integração comercial sobre a base da visão de desenvolvimento, no marco de uma comunidade latino-americana de nações, como ordena a Constituição, são elementos claves para avançar.
Com este pano de fundo se inscreve o debate sobre a taxa de juros. De forma simples, sabemos, pelo dia a dia da circulação da moeda, que os juros são aquilo que se paga além do empréstimo obtido por causa, precisamente, de obtê-lo. Ou seja, o que se pega por obter o empréstimo. Essa taxa é fundamental, dentro de uma economia dominada pelo capital financeiro, para que cada pessoa, cada família, tenha possibilidades de decidir sobre saúde, educação, alimentação, moradia e praticamente todos os direitos sociais. Mas, também, não há setor produtivo no país que não deva estar atento a essa taxa, que representa, dependendo do tipo de juros – simples, compostos, dentre outros - quanto pode gastar, quando aplicar e ter uma estimativa de quanto receber se quiser ter uma vida equilibrada nos marcos do sistema.
Por tudo isso, e mais, ainda, a questão de definir a quem serve o Banco Central é fundamental. Não se trata de questão de independência do Banco Central, porque não há essa possibilidade, o Banco trabalha a partir de orientação constitucional e legal. A questão é se pode ele ter a capacidade gerenciar a questão monetária, desligado da política fiscal e dos planos plurianuais.
A maior parte dos argumentos para a autonomia do BC com relação ao Executivo parte de considerar que este órgão, pela sua condição política, começaria a atender interesses eleitorais, de aliados ou meramente conjunturais, sem pensar em estratégias a médio ou longo prazo. Na raiz está a ideia de um BC exclusivamente ligado á emissão de moeda, sem participar de atividades ligadas ao fomento e ao desenvolvimento. Um BC autónomo e exclusivamente ligado a esta finalidade teria “maior credibilidade” – de novo a necessidade de satisfazer as condições das entidades internacionais de crédito - porque estaria distante das decisões políticas, que regularmente atrapalham a obtenção de recursos.
A questão é: se as orientações constitucionais determinam a dignidade, humana, o desenvolvimento, à diminuição das desigualdades regionais e a eliminação da pobreza e da marginalidade, pode um órgão como o BC estar desligado de uma política fiscal e das condições de crescimento econômico, das decisões de estímulo a setores produtivos? A quem obedeceria num mundo de desigualdades e assimetrias, onde as moedas como o dólar, as pressões internacionais, o clube de Davos, funcionam como arquitetos de uma economia mundial que concentra cada vez maior riqueza utilizando a moeda como a grande mercadoria dentro das engrenagens do motor do capital?
As experiencias dos auxílios financeiros aos grandes investidores falidos em países como EUA e ainda, as mais recentes por ocasião da pandemia mostram que a autonomia é decisiva em desfavor de políticas de governo que contestam os elementos dos quais se origina a desigualdade real no marco estrutural do capitalismo, mas não é tanto quando se trato desse tipo de auxílios.
Dificilmente podemos falar de autonomia sem tocar o centro da questão. Ou o Brasil continua na ciranda financeira, em situação de dependência, ou ergue a cabeça e define uma política fiscal – equilíbrio entre tributação e gastos - aliada à atenção das necessidades mais urgentes, colocando o BC a serviço de um programa de desenvolvimento ou simplesmente naufraga, com mais do mesmo.
O tema não é fácil, por supuesto, mas não é uma questão exclusivamente de somas e subtrações, é matéria constitucional atrelada aos fins do constituinte de 1988, é questão de como planejamos fortalecer uma cidadania econômica, valorizando o trabalho humano e a justiça social.
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