Consórcio Empresarial e a responsabilidade obrigacional  

30/07/2020

O presente conteúdo busca dar sequência a uma série de textos tratados nessa coluna sobre a importância da cooperação, e neste caso, aponta-se para um contrato típico de parceria empresarial, designado pela Lei 6.404/76 (LSA) como de “Consórcio”, que tem por objetivo a união de esforços para o atendimento de um projeto mais amplo, de maior envergadura, em seu núcleo fundamental o “empreendimento” e a “participação”.

A permissão legal para a formação do consórcio está inserida no artigo 278 da LSA, não se limitando às companhias, estendendo-se para outras sociedades típicas.

O consórcio pode ser definido pela reunião de sociedades em torno de “um contrato do tipo associativo, visando a colaboração, a cooperação entre sociedades na gestão comum de um empreendimento específico, o qual cada uma delas, isoladamente não estaria apta a realizar”[i].

Trata-se de um contrato típico, pois previsto expressamente na LSA, obrigatoriamente escrito, pois do contrário estar-se-ia diante de uma sociedade de fato. É plurilateral, pois reúne várias partes/sociedades e de cooperação, sendo necessário, para repercutir em publicidade e gerar efeitos, o respectivo arquivamento na Junta Comercial do local de endereço. Em que pese à respectiva sociedade não ter personalidade jurídica própria, a administração e a coordenação dos interesses comuns, caberá à sociedade líder, caracterizando-se o mandato. De qualquer forma, apesar do consórcio não originar uma nova empresa, ele detém capacidade processual para figurar no polo ativo ou passivo de uma demanda, ou seja, de uma relação jurídica de direito processual[ii].  

Os requisitos mínimos para o tipo contratual em referência estão estabelecidos no artigo 279 da LSA, sendo recomendável a presença de todos eles, ab initio (desde a formação/construção do pacto).

Ressalva-se, no entanto, segundo Eizirik, que nem todos os requisitos enumerados no respectivo dispositivo legal deverão estar presentes no contrato de consórcio para caracterizá-lo como tal, pois nada impede que regras de governança estabeleçam o modelo de gestão posteriormente à idealização do ato, inclusive quanto à forma de contabilização dos resultados. Por outro lado, deve estar claramente explicitado no respectivo contrato o “empreendimento” que se constitui do objeto e a definição da “participação” de cada consorciada, pois são os elementos típicos do contrato relacional e intersocietário, em cujo cenário as consorciadas têm ampla liberdade para contratar[iii].

Nesse contexto, visando evitar conflitos e trazer transparência para a relação contratual, o autor mencionado esclarece que o trabalho de construção de cláusulas deve ser minucioso, não se podendo descuidar das definições básicas, tais como: orçamento anual; partilha de receitas e despesas; obrigações extraorçamentárias; concessão de garantias; alienação de bens; hipóteses de rescisão ou exclusão de consorciada; adesão de novas e regulação sobre a resilição por mútuo acordo. Adicione-se a isso, a institucionalização do modelo de deliberação, preferencialmente na forma de assembleias entre as consorciadas, cabendo ressalvar que a criação da estrutura de voto é contratual e não segue a esteira do número de quotas ou do capital investido, nem a de aprovação por maioria, diante da intangibilidade das disposições contratuais e ausência de criação de empresa independente. A estrutura de definição de voto é livre, mas deve ser contratada, evitando-se ulteriores custos de transação não programados[iv].     

Sobre o contrato, confira-se a redação dada ao artigo 279 da LSA:

Art. 279.  O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão:

I - a designação do consórcio se houver;

II - o empreendimento que constitua o objeto do consórcio;

III - a duração, endereço e foro;

IV - a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas;

V - normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados;

VI - normas sobre administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver;

VII - forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com o número de votos que cabe a cada consorciado;

VIII - contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver.

Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no registro do comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada.

Assim, em que pese estar caracterizada a natureza jurídica do contrato apenas com a conformação do empreendimento e da participação, ou seja, com o atendimento ao conteúdo dos incisos II, IV e V da norma citada, para a adequada segurança jurídica e redução dos custos de transação, caberá, minimamente, aos contraentes estipular regras mínimas de governança (boas práticas), compliance e o controle do negócio derivado do vínculo do contrato de consórcio, estabelecendo-se condições de viabilidade neste particular, temas caros a cada uma das Sociedades, principalmente da líder de mercado, sobre a qual recairão os maiores efeitos operacionais. Neste aspecto, o dispositivo legal é modelar, cabendo às partes o máximo esforço para que o contrato se idealize conforme previu o legislador, pois, assim o fazendo, as consequências jurídicas de atendimento e ou desatendimento estarão em um contexto de programação.

A observação do caput do referido artigo é ponto fundamental, pois além dos requisitos mínimos proclamados, é óbvio que o contrato deve-se submeter à aprovação do Órgão Competente (interna corporis) de cada Sociedade.

Caso se trate de Sociedade Anônima, ao Conselho de Administração ou Assembleia Geral, enquanto que para as demais Sociedades, aos Sócios (Reunião de Quotistas ou Assembleia), respeitando-se, respectivamente, o estatuto e os respectivos contratos sociais.

Essa é uma posição, invariavelmente, adotada pela doutrina, ao fazer menção ao artigo 142 da LSA, pois o inciso VIII da referida norma, disciplina a competência exigida pelo caput do artigo 279, ou seja, ao atrair para o Conselho de Administração a competência para a alienação de bens do ativo não circulante, atrai para ele a competência para aprovar o contrato de consórcio, salvo estipulação estatutária em contrário ou a inexistência do referido Órgão.  

Como visto, o contrato de consórcio é interempresarial (intersocial), formalizado entre empresas com a obrigatoriedade de arquivamento no registro público mercantil. As Sociedades titulares do respectivo contrato não estarão, necessariamente, constituídas sob a égide de sociedades por ações. A formalização do respectivo contrato não cria uma nova sociedade e é o contrato que estabelecerá as normas de regência. Ressalva-se, no entanto, que os consórcios estão obrigados ao registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ, podendo emitir notas fiscais (NFs), mas nada impede que sejam emitidas por qualquer das empresas consorciadas ou pela empresa líder, respeitado o contrato que definirá a forma de rateio e a distribuição. 

O vínculo entre essas empresas poderá ser temporário ou perene, podendo envolver, respectivamente, uma única ou mais obras definidas no tempo, ou o exercício continuado de uma atividade de produção, industrialização, de distribuição ou de circulação de bens ou serviços[v].

Para que a abordagem não fique desprovida de alguma repercussão de ordem prática, optou-se pela análise de um caso concreto que envolve o consórcio em uma demanda de consumo.

Antes de creditar valor absoluto a uma determinada regra, cabe refletir sobre a jurisprudência a respeito do tema e a repercussão no caso concreto. É o caso do conteúdo do artigo 278, parágrafo 1º da LSA ao estabelecer que entre as consorciadas não há presunção de solidariedade, respondendo cada uma por suas obrigações. O STJ, no julgado abaixo, de um lado da balança colocou a autonomia patrimonial e de outro, o direito do consumidor. Confira-se a ementa:

CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. CONSÓRCIO DE EMPRESAS DE TRANSPORTE COLETIVO. PRESTAÇÃO INADEQUADA DO SERVIÇO PÚBLICO (...). RELAÇÃO DE CONSUMO. SOLIDARIEDADE ENTRE AS CONSORCIADAS. ARTIGO 28, § 3º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. (...)

Como regra geral, as sociedades consorciadas apenas se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade, de acordo com o disposto no art. 278, § 1º, da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976).

Essa regra, no entanto, não é absoluta, havendo no ordenamento jurídico diversas normas que preveem a solidariedade entre as sociedades consorciadas, notadamente quando está em jogo interesse que prepondera sobre a autonomia patrimonial das integrantes do consórcio.

Na hipótese de responsabilidade derivada de relação de consumo, afasta-se a regra geral da ausência de solidariedade entre as consorciadas por força da disposição expressa contida no art. 28, § 3º, do CDC. Essa exceção em matéria consumerista justifica-se pela necessidade de se atribuir máxima proteção ao consumidor, mediante o alargamento da base patrimonial hábil a suportar a indenização.

Não obstante, é certo que, por se tratar de exceção à regra geral, a previsão de solidariedade contida no art. 28, § 3º, do CDC deve ser interpretada restritivamente, de maneira a abarcar apenas as obrigações resultantes do objeto do consórcio, e não quaisquer obrigações assumidas pelas consorciadas em suas atividades empresariais.

Recurso Especial parcialmente conhecido, somente com relação à preliminar de violação dos arts. 489 e 1.022 do CPC/2015, e, nessa parte, não provido.

(REsp 1835585/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/12/2019, DJe 18/05/2020).

Como visto, o contraste ou a contextualização da regra com o caso concreto é fundamental. Desse modo, no momento da formalização do pacto consorcial, o objeto, o que ele abrange e as responsabilidades, deverão estar muito bem delineados, pois são nessas particularidades que a solidariedade poderá emanar como exceção.

Assim, como regra, cada empresa consorciada responde exatamente pelo que se obrigou no respectivo pacto. Está ali, no contrato, a limitação de sua responsabilidade (LSA, parágrafo 1º, art. 278). Todavia, no caso acima, por envolver uma demanda de consumo, o entendimento espraiado pelo julgado foi pela aplicação da solidariedade inserta no artigo 28, parágrafo 3º do CDC, mas não de modo absoluto, pois a solidariedade se perfez apenas em relação às obrigações derivadas do objeto do contrato de consórcio. Então, de um lado, não se respeitaram os limites e as atribuições de cada consorciada estabelecidos no pacto, mas também, de outro, a solidariedade ficou restrita as obrigações originárias do empreendimento ou do consórcio, segundo a interpretação restritiva da norma consumerista.

Para que não fique sem menção, cabe ressalvar a existência da figura jurídica do chamado “consórcio simples”, discutido no âmbito das Micro e Pequenas Empresas. Todavia, neste particular, o legislador não tem sido feliz na construção de um texto ideal para abranger a reunião de empresas em projetos de menor impacto, em comparação aos das grandes empresas, mas, no âmbito de suas realidades, os projetos repercutem em vantagens e aumento da competitividade.

O SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), na série “empreendimentos coletivos” elaborou um rico e objetivo material a respeito do tema, esclarecendo que o consórcio simples (união de Micro e Pequenas Empresas — MPEs) acarreta o aumento da competitividade das empresas, em razão de atividades compartilhadas, a exemplo da estruturação de centrais de compras, centrais de vendas e consórcio exportação. Além da definição, o referido manual trata do consórcio simples dos artigos 50 e 56 da Lei Geral, apontando pontos de divergência e convergência. Ademais, esclarece que a Lei Complementar n. 128/2008, em que pese não eliminar a figura do consórcio simples, optou por estabelecer que a união de esforços em prol de interesses comuns, no âmbito das MPEs, desenvolva-se por meio das Sociedades de Propósito Específico — SPE, optantes do Simples Nacional, que passa ser uma tendência[vi].

Por fim, no que se refere a obras, serviços, compras, alienações, locações etc, derivadas da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Autarquias dentre outros, cujas Entidades estejam subordinadas ao regime jurídico da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos com a Administração Pública), cabe ressaltar que a lei em referência, prevê, expressamente, a possiblidade de participação do consórcio de empresas, desde que o edital do certame expressamente regule a respeito. Todavia, algumas peculiaridades devem ser observadas, destacando-se: a responsabilidade solidária dos integrantes pelos atos praticados em consórcio, tanto na fase de licitação, como na de execução do contrato (artigo 33, inciso V); a necessidade da indicação da empresa responsável pelo consórcio, ou seja, aquela que atenda as condições de liderança (artigo 33, inciso II); caso o consórcio reúna empresas brasileiras e estrangeiras, a liderança deverá recair, obrigatoriamente, sobre empresa brasileira (artigo 33, § 1o).

Conclui-se com a mensagem de que esse tipo de agrupamento associativo/societário por meio do contrato de consórcio não é incomum, e costuma atrair bons resultados para as empresas que participam, contribuindo para gerar riquezas e bem estar social geral, pois, normalmente, grandes projetos e obras de infraestrutura (portos, aeroportos, rodovias, estações de logística, viadutos, ferrovias, usinas hidrelétricas, dentre outras) se desenvolvem a partir de parcerias do tipo, em torno da cooperação e da colaboração mútua e recíproca.

 

Notas e Referências

[i] CAMPINHO, SÉRGIO. Curso de direito comercial: sociedade anônima. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 447.

[ii] CAMPINHO, SÉRGIO. Curso de direito comercial: sociedade anônima. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 448-449.

[iii] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume IV. 2 ed. São Paulo, Quartier Latin, 2018, p. 478. 

[iv] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume IV. 2 ed. São Paulo, Quartier Latin, 2018, p. 478. 

[v] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume IV. 2 ed. São Paulo, Quartier Latin, 2018, p. 484-485. 

[vi]SEBRAE, 2014. Disponível em < https://bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/0a7a480546593e8ab0ba09fdb6f05f4e/$File/5190.pdf.>Acesso em 28 de julho de 2020.

 

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