Considerações sobre o julgamento do STF a respeito do Direito ao Esquecimento

27/02/2021

O STF julgou o caso da Aída Curi sobre Direito ao Esquecimento. Antes de adentrarmos aos argumentos, fundamentos e divergências que permearam os votos dos Ministros, vale a lembrança sobre o que se trata o caso Aída Curi, bem como o entendimento do que seria esse tal de Direito de Esquecimento ou Direito de ser esquecido.

O caso é relativo à ação proposta pelos irmãos de Aída Curi contra a TV Globo, após o programa “Linha Direta” retratar o crime, quase 50 anos após seu acontecimento. O crime em questão faz parte da história do bairro de Copacabana-RJ e do Brasil, por sua crueldade. Aída Curi foi vítima de estupro grupal e posteriormente arremessada do 12º andar de um prédio, em 1958.

A ação pleiteava a indenização em decorrência dos danos causados aos parentes da vítima pela exibição do programa, uma vez que queriam deixar no passado fato tão doloroso sobre suas vidas. O processo chegou até o STJ, no qual o Ministro Relator Luís Felipe Salomão decidiu não ser possível retratar o caso Aída Curi sem que a vítima fosse mencionada, julgando assim improcedente o pedido (negou provimento ao Recurso).

Ao longo dos últimos anos, o Direito ao Esquecimento ganhou uma grande elasticidade conceitual, sendo utilizado para as mais diversas situações, sobretudo como uma consequência da hiper exposição, um dos reflexos da sociedade da informação. Nos diversos casos julgados ao redor do mundo, e que marcaram de algum modo a construção desse direito de ser esquecido, encontram-se decisões que entenderam ora pelo direito de eliminação/apagamento de dados, ora pela desindexação de um nome dos motores de busca, ora pela desvinculação de adjetivos ligados ao nome de alguém nos motores de busca e ora para impedir a vinculação de notícias verídicas que faziam parte do passado de alguém.

É sabido que esse instituto muito fora moldado a partir de importantes casos julgados na Europa, como o conhecido Caso Lebach, julgado na Alemanha nos anos 60, em que um preso processou uma emissora de TV para que esta fosse impedida de divulgar um documentário onde relembraria o crime que havia participado há anos, e seu pleito teve como fundamento o fato que estaria ele com sua dívida social paga (vez que estaria prestes a cumprir sua pena), de modo que a veiculação do tema poderia atrapalhar a sua vida futura, fora da cadeia. O caso fora julgado improcedente, ficando conhecido como Caso Lebach I, mas a ele fora concedido o tal ‘direito ao esquecimento’ pelo Tribunal Constitucional Alemão, naquele que ficou conhecido como Caso Lebach II. O julgamento deste Caso marcou a discussão sobre a existência desse novo direito.

Mas no que consiste esse direito ao esquecimento? O ordenamento jurídico brasileiro abarca esse direito de forma expressa ou implícita?

Antes de entendermos e fixemos o que se entende por Direito ao Esquecimento, é importante que distingamos o que é eliminação, desvinculação, desindexação e esquecimento.

Eliminação de dados pessoais: trata-se da exclusão de dados pessoais de um determinado banco de dados, sendo esta prática aplicada no âmbito da LGPD como uma das hipóteses de tratamento de dados pessoais (art. 5º, inciso XIV da LGPD), não se tratando de um direito absoluto. Esse pedido de exclusão não depende do curso do tempo ou de comprovação de danos ao titular. Por ser uma forma de tratamento de dados, consistindo, em linhas gerais, em seu apagamento, não há que se dizer que se trata realmente de uma espécie de Direito ao Esquecimento. É verdade, e isso precisa ser dito, que essa eliminação de dados pessoais, no RGPD, ganhou a alcunha de “direito ao esquecimento”. Mas é apenas isso: o mesmo rótulo para institutos distintos, que mais confunde do que ajuda.

Desindexação de dados pessoais: consiste na desindexação do nome de um titular do dado de um determinado link/URL presente em um mecanismo de busca[1], encontrando limites nos direitos da liberdade de expressão, informação, interesses históricos, coletivos e públicos. Não existe expressa menção na legislação brasileira, sendo a sua construção jurisprudencial e doutrinária. Esse não pode se confundir com exclusão de dados, pois aqui o dado do titular não é excluído/apagado, e sim desindexado de um determinado link. A desindexação não garante, assim, a remoção do conteúdo, permanecendo este presente nos sítios eletrônicos, mas apenas deixando de associar o link ao nome do titular; além disso, não tem como garantir que aquele conteúdo será esquecido, de modo que também não pode ser considerada como uma espécie de Direito ao Esquecimento. Outro importante ponto em relação à desindexação, é que não se trata de um sinônimo de desvinculação.

Esquecimento: consiste na possibilidade jurídica da adoção de um Direito ao Esquecimento sempre que um fato verídico sobre o passado é divulgado, de forma lícita, depois de transcorrido um longo período, sendo que esta divulgação seja passível de causar danos ao titular daqueles dados/informações divulgadas. Neste caso ter-se-ia que a divulgação desses dados, ainda que de interesse público, causariam maiores danos ao titular de dados (por violarem direitos inerentes à personalidade), do que à liberdade de expressão, informação e à história. Trata-se de uma proibição genérica à publicação e veiculação de fatos do passado, verídicos, com potencial de causar danos no presente. Consistiria, então, no pedido para remoção de conteúdo lícito sobre o passado, devendo ser atribuído caso a caso.

Desvinculação: já este instituto, muitas vezes confundido com a desindexação, refere-se à exclusão dos termos “sugeridos” dos mecanismos de busca, quando uma pesquisa é feita. Estes termos, muitas vezes trata-se de adjetivos irreais ou que, de alguma forma, violam a imagem e a honra da pessoa, motivo este que faz com que esse direito à desvinculação seja decorrente do direito à identidade pessoal[2]. Exemplos clássicos no Brasil são os casos envolvendo a cantora Preta Gil e o Templo de Salomão, da Igreja Renascer. A natureza jurídica deste pedido está mais relacionada ao direito à honra e à imagem do que propriamente a um direito a ser esquecido.

Assim, o conceito de Direito ao Esquecimento é tema bastante controverso na doutrina, existindo quem defenda todas as diferentes vertentes e quem defenda apenas uma, ou algumas, delas. O fato é que, ainda que se possa colocar o direito ao esquecimento como gênero (lato sensu), essas diferentes facetas (espécies) são muito diferentes entre si, inclusive em relação à natureza jurídica, e precisam ser pensadas de forma individualizada[3].

Atualmente, a norma Europeia que abarca de forma expressa esse direito é o RGPD – Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia de 2016 (entrando em vigor em 2018), que dedica um capítulo para tratar do tema Direito ao Esquecimento. Entretanto, ao mencionar este direito, o RGPD o qualifica como Direito ao apagamento dos dados («direito a ser esquecido»). E esse apagamento de dados, como é expresso no art. 17 do RGPD, muito se assemelha ao supra citado Direito de Eliminação dos dados pessoais.

Na jurisprudência brasileira, o direito ao esquecimento possui fundamento em diversos institutos espalhados pela legislação brasileira, tais quaiso princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto na Constituição Federal; ou mesmo do art. 7º, inciso X do Marco Civil da Internet (o que na verdade diz respeito ao apagamento de dados com o fim de uma relação contratual) dentre outros. Essas bases fazem com que o Direito ao Esquecimento ganhe essa dimensão gigantesca e ampla, sendo também uma consequência da já mencionada hiper conexão.

O Caso Aída Curi talvez demonstre um pouco da dimensão elástica que o Direito ao Esquecimento tomou com os anos, trazendo ao STF uma difícil decisão na ponderação de direitos, bem como na necessária delimitação conceitual.

A partir desses entendimentos, vejamos no que consistiu a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o caso.

A missão dos Ministros foi a de decidir se existiria ou não um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, enfrentando algumas situações, quais sejam, a garantia da liberdade de expressão de acesso à informação, em contraponto com o respeito à dignidade da pessoa humana, inviolabilidade da imagem, intimidade e da vida privada, bem como o cabimento de indenização pelos danos causados pela veiculação da reportagem no programa Linha Direta.

O advogado dos recorrentes se manifestou em plenário evidenciando o drama sofrido pelos familiares, diante da eventual exploração comercial realizada pela emissora de televisão, trazendo o direito ao esquecimento como uma forma de tutela. Em resposta, o advogado da recorrida, argumentou que não existe explicitamente e nem implicitamente o direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, além de que, não poderia falar em prescrição ao direito de informação.

Contando com a participação de 8 amicus curiae, 6 deles se manifestaram sobre o perigo que o reconhecimento desse direito traria para futuros julgamentos. Em síntese, as colocações trouxeram argumentos no sentido de que se deve partir da premissa que não existe respaldo jurídico para esse reconhecimento, sendo que a LGPD, que foi inspirada da RGPD, escolheu não expressar em seu texto o Direito ao Esquecimento, diferentemente do ordenamento europeu que prevê o instituto. Além disso, outras argumentações foram trazidas pelos amicus curiaes, como por exemplo, a de que se deve ter uma preocupação quanto aos diversos conceitos que surgem do direito ao esquecimento, quanto aos seus limites e como esse direito se harmonizaria com outros direitos fundamentais, pois esse Direito ao Esquecimento muito se assemelha a uma categoria emocional e não uma categoria jurídica; seu reconhecimento seria um risco à democracia, uma vez que não existe aprovação constitucional para tanto; e que a questão não seria sobre esquecimento ou não, e sim quanto ao que é licito e ilícito. Além desses pontos, permearam argumentos quanto a importância da história ser contada para as gerações futuras, e o reconhecimento desse direito ao esquecimento limitaria o acesso à informação, assemelhando-se a censura, e impediria que as gerações futuras aprendessem com os erros.

Em contrapartida, dois amicus curiaes defenderam a importância do reconhecimento, na medida em que: é um direito inerente e fundamental aos Estados democráticos de direito, não havendo que se falar em ofensa à democracia; o STJ já reconheceu o direito ao esquecimento no caso da Chacina da Candelária; e também que este direito, em essência, seria um direito em favor da verdade.

Por último, o MP argumentou que o direito não tem a capacidade de mudar a história e a realidade; de sorte que a análise deve recair na questão da (i)licitude da conduta - aquilo que foi dito licitamente poderá ser dito licitamente no futuro, e aquilo que não pôde ser dito, continuará com impedimentos.

Em seu voto, o Ministro Relator Dias Toffoli decidiu, analisando diversos histórico, julgados e legislações nacionais e estrangeiras, pelo não provimento do Recurso Extraordinário e pelo não provimento do pedido de reparação de danos. O entendimento do Ministro é o de que não existiria uma proteção constitucional ou infraconstitucional ao Direito ao Esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, sendo ilegítima a alegação feita pelos recorrentes, a fim de obstar a veiculação de fatos que são sabidamente verídicos e obtidos licitamente à época do fato. O decurso do tempo não tornou abusiva ou ilícita a sua divulgação. Assim, o seu impedimento seria o mesmo que restringir o exercício de direito à liberdade de expressão, de informação e de imprensa.

Pontuou, ainda, que todos os crimes são dotados de interesse social, principalmente aqueles com maior contexto de brutalidade por se tornarem parte da história do país; consequentemente, eles acabam por se tornar alvos de grandes registros. Mas esses fatores não tornam a sua rememoração uma violação da honra ou da imagem dos envolvidos, não devendo os eventuais lucros auferidos pelos meios de divulgação serem fundamentos para violação dos direitos da personalidade.

Desta forma, Ministro, em seu voto, estabeleceu o seguinte conceito de Direito ao Esquecimento: “a pretensão apta a impedir a divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtuais, de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado descontextualizados ou desconstituídos de interesse público relevante”[4].

Todos os Ministros que votaram acompanharam o entendimento do Relator quanto à inexistência de um Direito ao Esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, com exceção do Ministro Edson Fachin, que posicionou-se no sentido de que o direito brasileiro alberga um Direito ao Esquecimento, decorrente da Dignidade da Pessoa Humana e dos direitos da personalidade, encontrando limitações apenas quando há exercício lícito da liberdade de expressão e informação, interesse público, cumprimento de obrigação legal, defesa em processo judicial, arquivo de interesse público ou investigações de natureza científica, histórica ou estatística. Mesmo entendendo pela existência desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro, enfatizou que quando em conflito com a liberdade de expressão e de informação, devemos sempre considerar a posição de preferência ocupada pela liberdade de expressão no juízo de ponderação, sem deixar, é claro, de garantir a tutela dos direitos da personalidade.

Os Ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques também abriram divergência; não quanto à existência desse instituto (ambos entendem que seu reconhecimento é contrário à Constituição), mas quanto ao pagamento de indenização. O Ministro Gilmar Mendes entendeu haver violação à vida privada, à imagem e aos direitos da personalidade, em decorrência da forma vexatória que a reportagem fora feita, cabendo, assim, o pagamento de indenização. De forma não muito distinta, o Ministro Nunes Marques entendeu também restar cabível o pagamento de indenização, pois houve violação à imagem da vítima e de seus familiares, além do fato que a narrativa do caso fora feita “fora dos padrões jornalísticos”. Disse o Ministro:

Não cogito de apagar os fatos nem de proibir a sua divulgação oportuna, respeitosa com a vítima sempre que a conveniência do momento a justifique. O que é inaceitável é tripudiar sobre a memória da falecida, trazendo à tona velhas feridas sem propósito informativo. A exposição do nome da vítima torna-se um verdadeiro bullying, se o objetivo era entreter, deveriam ser utilizados nomes fictícios.

Em síntese, o não acolhimento da aplicação do chamado Direito ao Esquecimento ao caso Aída Curi, fora fundamentado tangenciando o raciocínio de que o seu reconhecimento implicaria em uma censura prévia, esbarrando naqueles princípios e direitos que não só são de grande importância para a sociedade, como expressam os valores mais importantes da democracia – liberdade de expressão, de imprensa e de informação.

Nesse sentido, a Ministra Cármen Lúcia elucidou que esquecer da história seria perigoso e contrário a tudo aquilo pelo que se luta, colocando ainda que:

Num país de triste desmemória como o nosso, discutir o direito ao esquecimento como direito fundamental, de alguém poder impor silêncio ou segredo de fato ou ato que pode ser de interesse público, seria um desaforo jurídico para a minha geração. A minha geração lutou pelo direito de lembrar.

Com votação finalizada, restou fixada a tese proposta pelo Ministro Relator, qual seja:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.

A partir desta tese, nos parece razoável o entendimento de que o STF, ainda que não tenha reconhecido a existência do instituto como uma decorrência da Dignidade da Pessoa Humana e dos direitos da privacidade e da personalidade de uma forma geral, não excluiu completamente a existência desse direito. O que deve acontecer é a análise ponderada em cada caso em que o Direito ao Esquecimento é invocado, entendendo que existem limites que devem ser respeitados, sem que o seu reconhecimento, naquele caso em específico, implique na violação de outros direitos, tais como os direitos fundamentais aqui já mencionados.

É muito importante perceber o quão facilmente o conceito de direito ao esquecimento pode fugir do controle, e isto é muito preocupante, sobretudo quando não se tem um conceito juridicamente estruturado que balize a sua invocação. Não há dúvidas de que o Caso Aída Curi tem uma importância histórica imensurável, mas, dadas as suas particularidades, talvez não fosse o melhor caso de onde retirar um precedente de tamanha importância e relevância para o nosso ordenamento jurídico.

 

Notas e Referências

[1] Os mecanismos de busca consistem em “um conjunto de programas de computador que executa diversas tarefas com o objetivo de possibilitar a localização de arquivos e Websites que contenham ou guardem relação com a informação solicitada pelo usuário”. (LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de Internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005.

[2] CHIAVASSA, Marcelo de Mello Paula Lima; ANDRADE, Vitor Moraes. Manual de Direito Digital. São Paulo: Tirant: 2020.

[3] CHIAVASSA, Marcelo de Mello Paula Lima; ANDRADE, Vitor Moraes. Manual de Direito Digital. São Paulo: Tirant: 2020.

[4] STF - RE nº 1.010.606. Min. Rel. Dias Toffoli. Data do julgamento: 11.02.2021.

 

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