A decisão de improcedência liminar do pedido é um dos possíveis caminhos que o magistrado pode adotar quando da análise preliminar da petição inicial. Embora tal procedimento já viesse previsto no Código de Processo Civil de 1973, passou por profundas transformações em sua reintrodução no novo código, conforme se verifica do artigo 332 do CPC.
Basicamente, tal dispositivo vislumbra a situação em que o magistrado, enquanto analisa uma petição inicial, julga, em caráter liminar, improcedente o pedido do autor, pois entende que tal causa dispensa a instauração de fase instrutória, pois a pretensão exposta viola uma das hipóteses elencadas no artigo 332.
De uma simples análise do artigo citado, é fácil concluir que a possibilidade atribuída pelo legislador ao juiz de poder encerrar sumariamente a apreciação de pedidos evidentemente fadados ao fracasso advém de uma necessidade por uma maior eficiência do processo civil. Afinal, o magistrado ao coibir o prolongamento da análise de pedidos dessa natureza prestigia uma boa aplicação da tutela jurisdicional, impedindo o gasto de tempo e recursos, constituindo, sem sombra de dúvidas, uma técnica de aceleração do processo[1].
Tal objetivo é claro e vislumbra-se desde a vigência do CPC/73, quando já era possível por fim ao processo em fase de cognição sumária, em razão de questões unicamente de direito ou fulminadas pela prescrição ou decadência.
A inovação trazida pelo CPC/15 fica a cargo da ampliação do rol de hipóteses pelas quais o magistrado pode liminarmente encerrar o processo, de modo que é evidente a influência do sistema de precedentes introduzido principalmente pelos artigos 926 a 928 do CPC.
Com essa ampliação, a incidência de tal instituto poderá se tornar mais corriqueira, de modo que me parece interessante propormos uma análise de como se dará a atuação das partes e do juízo em tal procedimento. O CPC é bem direto em relação de como se opera o funcionamento da improcedência liminar do pedido, entretanto, merece especial reflexão a situação em que o magistrado decide pela improcedência, mas, posteriormente, exerce um juízo de retratação.
Conforme estipula o comando do artigo 332 e seus parágrafos, o juiz, ao decidir pela improcedência liminar do pedido, deve abrir prazo ao autor para que apresente recurso de apelação. Caso opte pela interposição do recurso, inicia-se um prazo de cinco dias para que o juiz pondere se deseja exercer um juízo de retratação sobre a decisão de improcedência. De tal cenário, duas hipóteses: o magistrado promove sua retratação e determina o prosseguimento da ação com a efetiva citação do réu; ou mantém sua decisão, oportunidade em que o réu será citado para apresentar suas contrarrazões no prazo de quinze dias e questão será decidida em segunda instância.
Esmiuçado como opera-se o procedimento, cumpre estabelecermos um problema prático para compreendermos alguns pontos pertinentes sobre o tema em questão.
Suponha-se que em uma demanda o autor tem seu pedido julgado liminarmente improcedente, uma vez que o juiz da causa entende que tal pleito é diametralmente oposto a enunciado de uma súmula do Supremo Tribunal Federal[2]. Inconformado, o autor apela de tal decisão, oportunidade em que o magistrado opta por rever sua compreensão inicial e exercer a retratação, promovendo o normal prosseguimento do processo com a citação do réu.
Dessa situação são extraídas duas questões que tentaremos responder.
Em primeiro lugar, é preciso ponderar se o réu teria a possibilidade de argumentar a violação dessa mesma súmula vinculante em sua matéria de defesa. Honestamente, tal questionamento é fácil de ser resolvido. Como se vê da explanação feita a cima, do momento do exercício de retratação do juiz, o réu ainda não integrava o polo passivo da ação, somente sendo citado após determinado o prosseguimento do feito.
Assim, não há o que se falar em preclusão, nos termos do artigo 507 do CPC. Afinal, para que ocorra tal instituto é preciso que haja ao menos oportunidade para que parte realize o ato, o que, como já muito bem visto, não ocorre para o réu durante o período de apelação do autor e eventual retratação do magistrado. Em verdade, para que se configure a preclusão é preciso que a parte tenha deixado de alegar a questão (temporal) ou já a tenha alegado (consumativa)[3]. Não é o caso.
Do mesmo modo, não há também o que se falar em coisa julgada sobre esse ponto, uma vez que é um ato do juiz praticado em uma relação angular autor-magistrado, sem qualquer participação do réu, não sendo oponível a este. Ademais, no que toca a coisa julgada, saliento que os artigos 502 e 503 CPC fazem referência expressa a uma decisão de mérito. Não me parece que o exercício do juízo de retratação, ainda que desconstitua uma decisão de mérito, seja propriamente uma decisão que verse sobre o mérito da causa.
Portanto, parece-me claro que é possível ao réu questionar se o pedido em questão contraria ou não súmula vinculante, ainda que o magistrado já tenha se manifestado pela admissibilidade do pedido, em face dessa mesma súmula.
Resolvido esse primeiro questionamento, surge o cerne da questão. Uma vez que é possível ao réu alegar violação a esta súmula vinculante, é possível ao magistrado acolher tal pedido? Em outras palavras, pode o juiz ir contra ao seu juízo de retratação?
Ao realizarmos uma análise das disposições do Código de Processo Civil não encontraríamos óbice legal. Entretanto, creio que este seria um perfeito exemplo de desrespeito a boa-fé processual, a qual o magistrado está sujeito nos termos do artigo 5º do referido diploma legal[4].
Como rápida lembrança destaco que o chamado princípio da boa-fé pode ser dividido em boa-fé subjetiva e objetiva. A subjetiva diz respeito ao estado de consciência das partes atuantes, a sua intenção de agir; a objetiva, que é a tratada tanto pelo Código Civil, quanto pelo Código de Processo Civil[5], diz respeito a uma norma de comportamento[6] a ser adotada pelas partes, fundada na lealdade, na honestidade e na retidão.
Pois bem, a boa-fé objetiva se divide em várias “camadas” por assim dizer. Uma destas é a proibição do venire contra factum proprium o qual ressalta o dever de confiança[7] com as demais partes, seja de um processo, seja de um negócio jurídico, ao proibir que um componente da relação adote comportamento contrário ao que vem adotando costumeiramente. Em suma, é a vedação de comportamentos contraditórios.
Dentre os pressupostos trazidos pela doutrina para a configuração de um venire contra factum proprium, para o caso em análise destacaremos os seguintes: I – existência de condutas sucessivas, sendo que a segunda contraria a primeira; II – identidade de partes; III – a situação se produza em um mesmo estado de coisas, um mesmo estado de fatos; IV – que a primeira ação seja capaz de criar confiança no sujeito a qual recai[8].
Ora, todos esses requisitos restam perfeitamente configurados no caso em análise, uma vez que o juiz ao se retratar estabelece ao autor que, em seu entendimento, o pedido formulado na inicial não é contrário a súmula vinculante. Logo, ao se contradizer e acolher eventual pedido formulado pelo réu para o reconhecimento de violação a esta súmula, seu comportamento contraditório produz uma verdadeira quebra de confiança para com o autor[9].
Veja bem, essa confiança não deve ser confundida com parcialidade. O que saliento é que a atuação do juiz precisa se adequar a um padrão de comportamento esperado da posição. Nesse caso, acolher o pedido do réu em relação a uma questão da qual já mostrou sua convicção mostra claramente uma atuação errática do magistrado.
Nesse momento, o leitor pode questionar se realmente há a configuração do mesmo estado de coisas em relação as decisões do juiz. Afinal, quando se retratou da sua decisão, ainda não havia propriamente uma relação processual, mas tão somente uma relação angular autor-juiz; ao passo que ao acolher eventual pedido do réu para reconhecimento de violação a súmula, o faria na relação jurídica completa, oportunidade em que o demandado traria sua argumentação objetivando convencer o juiz de que de fato a causa viola o enunciado da súmula.
Esse raciocínio é falacioso.
É preciso lembrar que a improcedência liminar do pedido implica em causas que dispensem a fase instrutória. Em outras palavras, deveria ser irrelevante qualquer argumentação trazida pelo réu, uma vez que o juiz só poderia aplicar o instituto do artigo 332 se não houver nenhuma dúvida a respeito da questão.
É o que destaca Cassio Scarpinella Bueno: “O que é menos claro no dispositivo e, por isto, merece ser relevado, é que os casos devem pressupor uniformidade fática ou, quando menos, inviabilidade de qualquer dúvida, por parte do magistrado, sobre o substrato fático a partir do qual incidirá o comando jurídico jurisprudencializado. É esta a interpretação que merece ser dada à expressão que abre o caput do art. 332, ‘nas causas em que dispensem a fase instrutória’”[10].
Assim, o magistrado que se retrata já demonstra que agiu mal em relação a decisão de improcedência liminar do pedido, uma vez que deveria ser um ato sem qualquer dúvida. Porém, tal retratação deve, por óbvio, refletir total convicção do juiz de que a causa não contraria umas das hipóteses do artigo 332, como, no nosso exemplo, uma súmula vinculante. Deste modo, acolher o pedido do réu seria um comportamento totalmente contraditório e de má-fé do magistrado.
Em suma, objetivou-se mostrar que uma vez que o magistrado, ao se retratar sobre uma questão da qual julga não ser necessária instrução, produz ao autor uma expectativa razoável (bem razoável) de que tem convicção de que a causa não viola o objeto de sua retratação. Portanto, é dever do órgão jurisdicional, ao ser novamente confrontado com essa questão, independente dos argumentos trazidos, manter sua posição pela não improcedência do pedido.
Notas e Referências
[1] DIDIER JR., Freddie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. p. 667, 19ª ed., Editora Jus Podivm, 2017.
[2] Art. 332. CPC: “Nas causas em que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I – enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça”.
[3] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil, Volume Único. p. 232, 3º ed., Editora Saraiva, 2017.
[4] Sobre a vinculação do magistrado ao princípio da boa-fé objetiva, destaco que tal entendimento é pacífico nos tribunais superiores, oportunidade em que trago destaque também ao enunciado n. 375 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis: ”O órgão jurisdicional também deve comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva”.
[5] Enunciado n. 374 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis: “O art. 5º prevê a boa-fé objetiva”.
[6]GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. pp. 55-56, 11ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2014.
[7] Enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil do CJF: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos artigos 187 e 422 do Código Civil”
[8] DIDIER JR., Freddie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. p. 126, 19ª ed., Editora Jus Podivm, 2017.
[9] Sobre esse ponto destaco comentário de Judith Martins-Costa: “A coibição é à deslealdade impregnada no ato contraditório e o telos é a proteção da parte que confiou fundamentadamente na primeira conduta (o factum)”. MARTINS-COSTA, Judith. “A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium”. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, 2004, n. 376.
[10] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil, Volume Único. p. 332, 3º ed., Editora Saraiva, 2017.
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