Conselhos Tutelares e Comissários de Menores: entre mudanças e permanências

20/02/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Não podemos entender a emergência dos conselhos tutelares no Brasil sem refletir sobre a efervescência política de abertura democrática, que marcou os anos de 1980. A valorização da participação popular, que possibilitou a escolha dos seus representantes no âmbito comunitário, está intimamente relacionada aos princípios do Estado Democrático de Direito. O Estatuto é fruto da democracia cidadã e da justiça social, e os conselhos tutelares é o resultado mais concreto desses princípios fundamentais.

Mas, por que boa parte da sociedade desconhece as atribuições dos conselheiros tutelares ou deturpam suas funções? E por que muitos produzem imagens e representações punitivistas dos representantes dos conselhos tutelares? Para buscar responder tais perguntas é preciso recuperar outro personagem, que teve forte atuação no decorrer da vigência do Código de Menores: os comissários de menores.

Os Comissários surgiram já na primeira edição do Código em 1927, eram voluntários, que estiveram à disposição dos juizados de menores de todo país. Entre suas atribuições: controlar o cotidiano de crianças e adolescentes e suas famílias, consideradas em situação de perigo ou que representavam o próprio "perigo". Promover vigilância em festas públicas ou espaços privados como cinema e parques, recolher meninos e meninas em situação de rua, de trabalho ou em qualquer situação que representasse ameaça os padrões de condutas estabelecidas na época. (Miranda, 2019).

Os comissários de menores faziam parte do complexo tutelar dos juizados e do cotidiano das famílias pobres. Nossas pesquisas sinalizam que a atuação desses agentes atuava fortemente nos centros comerciais e periferias das grandes cidades. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), a função comissários foram abolidas e a partir dos princípios da proteção integral, a proposta dos conselhos tutelares se efetivou. Os conselhos, teoricamente, constituíram-se como espaço de proteção, uma das portas de entrada para o atendimento das crianças e adolescentes.

Cobrar uma prática punitivista dos conselhos tutelares é reforçar à cultura menorista. Entendemos cultura menorista como uma prática construída historicamente, que estabelece práticas de controle e punição, objetificando as crianças e adolescentes, concebendo-as como “menores”. Sob a égide do Código de Menores,  os comissários se fundamentavam na perspectiva do vigilância e coerção, sendo caracterizadas por práticas policialescas e higienistas (Miranda, 2019).

Já a atuação dos conselhos tutelares estão previstas nos artigos 95 e 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente e suas práticas devem se fundamentar na lógica dos direitos humanos e por uma atuação em rede, para garantia dos encaminhamentos referendados nos princípios da Doutrina da Proteção Integral. Os conselheiros são agentes públicos, escolhido pela comunidade, para fazer garantir a dignidade a todas as meninas e os meninos que vivenciam situação de violação dos direitos fundamentais.

O grande desafio político para os defensores dos direitos humanos de crianças e de adolescentes, para o Sistema de Garantia de Direitos e para toda sociedade é  romper com a lógica dos comissários de menores, que por sua vez é marcada pelo menorismo estrutural. Entre mudanças e permanências, o espectro do menorismo ainda permeia o cotidiano da rede de proteção e mesmo depois de mais três décadas da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a luta em defesa da cultura anti-menorisrta é um desafio.

 

Notas e referências

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069/90. Brasília: 2024.

MIRANDA, Humberto da Silva. Operação Papai Noel e as crianças em situação de rua: vivências e testemunhos de infâncias perdidas (Recife - década de 1980). Revista Brasileira de História Oral, v. 21, n. 2, p. 31-42, 2019. Disponível em: https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/824. Acesso em: 08 fev. 2024.

 

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